segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339,(1968/69) > No final da comissão, em Novembro de 1969, o "autocarro do Amor" está pronto a deixar o "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamavam os guerrilheiros do PAIGC, e embarcar no Uíge de regresso a casa...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339,(1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça, ao centro, num dos abrigos subterrâneos do aquartelamento, onde as fotos as estrelas de cinema (Catherine Deneuve ?) ajudavam os jovens, nos seus verdes anos, a alimentar e a sublimar o ardente desejo... de viver! Com Lisboa e o Porto, tão longe... e Bissau (1) pelo meio, mas só para alguns privilegiados....


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga> CART 2339,(1968/69) > No início da comissão, nos dias tranquilos, um guerreiro devidamente ataviado... E ainda havia, escondida, na camisa, a Manelinha, a 6.35, que fez jeito (ou melhor, deu alguma tranquilidade...) numa certa noite no Pilão, a oito dias do embarque no Uíge... É uma bela estória, Torcato! Se não a constasses, os teus filhos, os teus amigos, os teus camaradas, ficariam privados do conhecimento desta tua escapadela ao Pilão... e do prazer da tua escrita.

Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

1. Texto do Torcato Mendonça. Enviado do Fundão com a nostalgia própria de um domingo outonal, 18 de Novembro de 2007.

Meu Caro aí vai o resto [da estória] do Pilão. Ao lado, a RTPN mostra A Guerra, em repetição. Que dizer? Digo boa noite ou bom dia…

Um dia falo disso, dos Estudos Ultramarinos, do Prof. Adriano Moreira, outras vidas de minha vida…


Um abraço,

Estórias de Bissau ( ) > O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô
por Torcato Mendonça


(i) Rotinas


Pela manhã ligar o computador, tomar o pequeno-almoço e voltar para espreitar o Blogue. Rotinas.

Hoje dez fotos, recentes, a mexerem comigo e certamente mais nos que por aqueles locais passaram. Trouxeram-me, não prazeres da memória, mas só, isso sim, memórias de um passado distante.

Sentei-me à mesa, com caneta, bloco e escrevo, como sempre ao correr da pena, nesta manhã fria, neste domingo com o Sol a entrar pela porta entreaberta da varanda aquecendo-me, a mim e ao Pluto, com os seus raios do calor de Outono. Ao fundo a Serra da Gardunha, o Monte de S. Brás e Alcongosta – capital da fruta – envoltas pela leve neblina do levantar da geada e orvalho.

Mais ao alto, muito mais alto, num céu muito azul, traços deixados por dois aviões, um vindo o outro indo para Lisboa. Cidade que foi Capital, dizem, de um Império glorioso. Paro em breve reflexão e abano a cabeça em discordância. Continuo a olhar o céu azul e o traço de dois, e mais um, três aviões, certamente a caminho dessa Europa ou sei lá.

Imagino viagem para terra distante. Para a Guiné? Porque não rever aquela terra, as suas gentes, sentir o calor e, nesta época, talvez ainda a chuva. Cumpriria assim a promessa feita em Amedalai, quando do regresso ao meu País. Eu volto. Nunca o fiz. Certamente não o farei. Sinto uma certa mágoa, um certo aperto no peito, uma vontade de voltar aos verdes anos. Hoje, já velho, iria em busca de outros velhos e velhas, mas em paz ou a acertar contas com ela, finalmente. São recordações de prazer e tormento. Fico aqui. Vou sempre ficando aqui, em tempo cada vez mais curto. Paro novamente. Sinto a tristeza do desejo não realizado e a solidão a entrar. Só. É isso, só. As dez imagens, o recordar outras, deixaram-me só.

Se passar à tecla e enviar aproveito para fazer a declaração de voto. Porque não recordar Bissau e o Pilão ? ! Agora não. Vou beber mais um café.


(ii) Declaração de voto

É difícil, muito difícil, pensar hoje como nos meus verdes anos. Regredir quarenta anos não é fácil. Depois, o medo de errar no relato dos factos ora passados. Hoje vejo tudo de forma diferente. Só que os relatos feitos são os do passado e analisados como tal. O ter durante tanto tempo recalcado na memória, bem lá no fundo, tudo isso não dará uma deformação ou erro ao relato actual? Assumamos contudo o que escrevemos hoje. Objectividade, honestidade e, sempre, a tentar relatar o que efectivamente aconteceu.


Difícil responder á sondagem sobre o Pilão!

Não sei se o azeiteiro, chulo ou proxeneta, não terá razão, ao avisar para os perigos da noite no Pilão. Todos, ou praticamente todos, os que passaram pela Guiné deram uma volta pelo Pilão. Qualquer graduado pediu aos militares que comandava para, no Pilão ou noutro lugar da “noite guineense”, terem cuidados redobrados. Desde que se seguissem as regras elementares, próprias daqueles “locais”, o perigo era menor. Todos conhecem as regras, a maioria visitaram cá em Portugal locais de diversão nocturna. Essas regras são estabelecidas pelos donos da noite.

É difícil votar em N/ discordo, N/concordo…. Voto em Discordo. Até porque não gosto de meias tintas e muita gente do Pilão e de outros Pilões são gente boa, igual á que habita por tanta cidade com a “noite”, ali ao lado.


(iii) Bissau e o Pilão


Bissau foi para mim uma cidade de passagem. Chegadas e partidas de e para a Metrópole e uma vinda até ao Hospital Militar. Ao todo, cerca de oito chegadas e partidas que certamente não totalizaram mais de quinze ou vinte dias de estadia. Não sei ao certo. Nesses dias confesso que procurei “viver”. Mas o que era viver numa cidade daquelas? Comer, beber e beber, ter encontros e fazer as visitas possíveis. Visitei pois o Pilão, o bordel, o hotel, a pensão, o quarto particular, o café, o restaurante e até, em Santa Luzia, a piscina.

Conheci gente boa e recomendável, gente, dita, menos boa e não recomendável. São factos que a todos aconteceram. Uns contam-se, outros ficam no arquivo da memória. Um do Pilão, quase no fim da comissão conto; de Santa Luzia, não.

Só um breve relato, certamente aconteceu a muitos, algum ou alguns desejos loucos. Já no fim da comissão tinha dois desejos: comer uma sandes de fiambre e manteiga, acompanhada com uma Cola gelada e depois beber um café duplo… lentamente. O outro era passar debaixo da Ponte do Tejo – 25 de Abril, hoje, pois nessa altura, era Salazar.

Levanto só um pouquito de outre desejo… comer uma branca…ponto!

Satisfiz os desejos?! Razoavelmente. O pão da sandes era bera e não vi bem a parte debaixo da ponte… Era arruivada… a ponte claro… por debaixo.


(iv) O Pilão em Novembro de 69

Bem. Fica para amanhã ou num outro dia qualquer. Nem só o sujeito dos conselhos era chulo. Este, o que me calhou na “rifa” no Pilão, tratava da vidinha por dez réis. Quantos, bem colocados, não a tratavam por milhares?

(…) Em finais de Novembro de 1969, vim para Bissau à espera do embarque. Devido ao Capitão L. Henriques ter menos tempo de comissão e o Alf Cardoso (2º Cmdt) estar no Hospital Militar, doente – felizmente esperava-nos em Lisboa – fiquei eu a comandar a Companhia.

Todos os dias, pela manhã, tinha que aturar o 1º Clemente com a papelada. Depois ia de jipe ver os militares e tratar de vários assuntos. O condutor, bom conhecedor de Bissau, encurtava viagem atravessando o Pilão. Eu ia vendo, fixando lugares e, confesso, ia sempre armado e atento. Foi isso que talvez me tenha safado, no mínimo de levar uma valente tareia, dias depois. Mantive esse costume.

No verão quente de 75, mesmo antes e depois, quando atravessava o Alentejo era mandado parar muitas vezes. Revistado por GNR, aprumados militares e civis, grandes defensores dos valores revolucionários e democráticos. Enojava-me. Só abri a boca, se bem me lembro, duas vezes. Uma para dizer a um GNR:
- Cuidado, esse saco tem fraldas com caca do meu filho… - E.a outra para “pedir” a um oficial, barba e cabelo grande, farda em desalinho:
- .Respeite o uniforme que enverga. - Olhou-me e calou-se. Nunca viram que eu estava armado. Mas que tem isto a ver com o Pilão? Pouco ou nada, a não ser o andar armado.

A tarde ou o fim dela, ficava livre para passear por Bissau. Eram horas então de lanchar/jantar nos lugares habituais. Ostras, camarão, mais um sólido ou outro e muito líquido. Seguia-se a digestão com auxílio de uísque e ida aos lugares de todos conhecidos. Um deles era A Meta. Ainda não ouvi aqui referência a ela. Não se entrava fardado, tinha uma pista de carros e pouco mais. Era do Viriato, ex- Fuzileiro ( como o meu amigo Sargento Fuzileiro “Piçarra” – alcunha devido a cantar bem – o nome era Ludgero e estava talvez na terceira ou quarta comissão). Outras vidas.

Em noite de bom consumo de bebida, acompanhado de dois amigos, fomos até ao Pilão. O taxista largou-nos junto a um dancing ou night-club qualquer. Por ali andei e, como a música não me agradava, vim apanhar ar. Aproveitei um táxi que largava”malta”. Pedi ao taxista para me levar onde houvesse uma cabo verdiana. È já perto. Parou pouco depois, saiu e voltou rápido. Tudo certo. Paguei bem a “corrida” e lá fui. Era jeitosa a Nônô. O resto foi o normal. Só que eu queria ficar mais um pouco, ela a dizer ser tarde e a ficar inquieta. De repente batem forte à porta. Ela olha-me a tremer. Sentei-me na cama, os últimos restos de álcool evaporaram-se. Puxei para junto de mim a cadeira onde estava a roupa. Pus a mão na camisa. Ela abriu a porta a um furacão. Um chulo branco.
- Que raio é isto ? - vociferou o matulão - Veste-te e desaparece.
- Ia já, respondi-lhe.

Puxei a camisa e poisei as mãos na Manelinha (a 6.35,e coitada) e na Zézinha (faca com cerca de palmo e pouco de bom aço). O tipo olhou-me. Fundiram-se olhares de ódio ou de bestas. Ele foi-se, batendo fortemente a porta. Ela estava aterrada. Vesti-me e pedi-lhe:
- Baixa a luz do candeeiro e abre a porta.

Sabia que havia, frente à porta uma vala funda e um pequeno passadiço. Só depois estava a estrada.

Ela abriu, a medo, a porta. Empurrei-a para a rua e saltei, baixo, para o lado. Esperei pouco. Vim rua abaixo, coração a bater e sentidos alerta, pensamento a dizer-me:
- Parvo, a menos de uma semana do embarque.

Estrada com candeeiros de luzes fracas e postes muito distanciados. Aparece um mercado à esquerda e à direita vislumbro dois ou três tipos. Sinto que me olham. Sei onde estou e a estrada, Santa Luzia/Bissau estar logo ali. Chego lá rápido e espero pouco. Ao fundo vejo luzes de uma viatura. Quando se aproxima salto para a estrada com braços ao alto. Pára um jipe, com dois militares. Meto a mão ao bolso e identifico-me. Estava à civil e a custo levaram-me.

Voltei a Santa Luzia na carrinha que parava, salvo erro, próximo da Amura.

No outro dia depois do almoço vim, como era habitual, estar com a Companhia. Descobri a casa dela. Pedi para parar e fui lá. Bati à porta e ela abriu. Olhou-me admirada e recuou. Entrei e acalmei-a.
- Desculpa o empurrão. - Conversamos e fizemos as pazes. Voltei lá mais vezes.

Ela disse-me quem ele era. Encontrei-o junto ao táxi. Reconheceu-me e ficou expectante. Eu tinha as mãos nos bolsos. Sorrimos, porque compreendemos o ridículo da situação.

Falamos e disse-me ter ficado em Bissau a tratar da vidinha. Cá, em Portugal, não tinha grandes hipóteses. Prometeu, em palavra de chulo, não voltar incomodar branco. Ainda utilizei o táxi e bebemos um copo.

O resto arquiva-se.

Poucos dias depois, a 4 de Dezembro de , embarquei. Entrei no barco com medo de me virem buscar para a Comissão Liquidatária. Só pedia:
- Desatraca e anda, Uíge dum cabrão!… - E partiu finalmente.

Ficou o Capitão, para agrado dos Sargentos, a tratar da papelada. Coisas de profissionais.

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Notas dos editores:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

(2) Vd. posts de:

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Torcato:

É interessante o teu depoimento... Levantes aqui um pouco a ponta do véu: no nosso tempo, na "portuguesíssima província" da Guiné havia já redes organizadas de prostituição, tal como as havia na Metrópole, até como consequência do proibiccionismo saloio de Cerejeira/Salazar... Vinte e cinco mil a trinta mil militares, oriundos da Metrópole, mobilizados para uma guerra violenta, e com algum poder de compra, eram um mercado mais do que suficiente para alimentar a "indústria da noite"...

A tua Nônô e o seu chulo, taxista, tuga, ex-militar, deveriam ser um subproduto do Pilão... Não me parece que o PAIGC fosse pescar nessas águas: como bom marxista, Amílcar Cabarl tinha razões de sobra para desconfiar do chamado "lumpen", das camaradas mais socialmenet marginalziadas dos bairros populares de Bissau, que, de resto, mais facilmente colaborariam com a PIDE/DGS e com as NT do que com a guerrilha... Naturalmente que haveria simpatizantes a até militantes do PAIGC no bairro popular do Cupelon, mas generalizar era abusivo e sobretudo era racista...

Seria interessante tentar perceber por que é que se estigmatizou o Pilão no nosso tempo, e quem estava interessado nisso... Os gajos da "indústria da noite" que queriam eliminar a "concorrência desleal" das Nônôs e dos seus pequenos chulos ?

L.G.