sábado, 5 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22255: Os nossos seres, saberes e lazeres (454): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (1): Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Cumpriu-se o destino, na Sertã coube-me receber a primeira dose da vacina e aqui se regressará para a segunda. A Sertã é-me familiar, como aqui se conta, há 20 anos bem vividos. Aproveitou-se para fazer uma romagem de saudade, cirandar pela Sertã e projetar no regresso a ir a locais onde nunca se entrou, é o caso do seminário das missões e o ateliê do pintor Túlio Vitorino, em Cernache do Bonjardim. Mas regressou-se de Pedrógão Grande, as saudades são muitas, visita-se sempre a biblioteca onde há um acervo de alguns milhares de livros em memória de uma filha falecida. Vinte anos em que se assistiram a incêndios devoradores e a natureza a regenerar-se, o coberto vegetal continua assombroso. Aqui vivem-se as agruras da interioridade, felizmente que há gente talentosa que busca recursos para tornar a região um apetecível roteiro turístico, o património natural é exuberante, em vales e fragas, há belas praias fluviais e estão bem organizados os passeios pedestres, e o património histórico não é dispensiendo. Por isso vale a pena continuar a falar da Sertã e das suas redondezas.

Um abraço do
Mário


Na Sertã, no dia em que aqui recebi a primeira dose da vacina (1)

Mário Beja Santos

A minha relação com a Sertã vem de longe, como o brandy e constantino. Com casa rústica numa freguesia de Pedrógão Grande, passeava-me pelas imediações e era inevitável ir espreitar a barragem do Cabril e bisbilhotar o chamado Bairro da EDP, então numa fase ainda de grande degradação. E aconteceu que um dia ali se adquiriu uma vivenda arruinada com vista esplendorosa, com o rio Zêzere ao fundo, o Penedo do Granada, sendo bem visível a foz da Ribeira de Pera, que ali conflui com o Zêzere. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades, 20 anos depois a vivenda mudou de dono, só que os vínculos afetuosos permanecem pelos dois concelhos, o de Pedrógão Grande e o da Sertã, mais de 20 anos entre frondosa vegetação deixa marcas profundas. Ali arranjei médico de família e insiste em manter-me vivo até aos 150 anos, nenhum exame ao interior e ao exterior desta carcaça lhe escapa. E não me surpreendeu o telefonema para comparecer à primeira vacina, nos Bombeiros da Sertã. E disse para os meus botões: aproveita, desfruta e dá a conhecer aos teus confrades algumas belezas da região, pode ser que se sintam atraídos quando se suavizar o confinamento, roteiro turístico não falta, sobretudo no património natural, o Vale do Cabril é coisa única, a biblioteca tem uma vitalidade assombrosa, é indispensável ir a Pedrógão Pequeno e descer à Ponte Filipina, chegado à vila da Sertã há que procurar alguns belos vestígios do passado e percorrer a Alameda dos Carvalhos (onde também pontificam os plátanos), passar pela Ponte Velha ou Ponte Filipina e admirar o recuperado Convento de Santo António, hoje uma admirável instalação hoteleira fruto de uma intervenção imaginativa. E descer ao Jardim da Cerrada, na outra margem da Carvalha, bem agradável passear naquele verde e ver o murmúrio das águas em cascata. Tudo é uma questão de tempo de que dispõe o forasteiro, a Albufeira do Cabril tem panoramas admiráveis e dir-se-á o mesmo das albufeiras da Bouçã e de Castelo de Bode. Em Pedrógão Pequeno, convém acrescentar, aguarda quem dispõe de curiosidade uma descida ao Moinho das Freiras, há ali marcas do passado, um túnel escavado na pedra calcária do vale, veio do tempo em que a Companhia Nacional de Viação e Eletricidade ali projetou, ainda na década de 1910, edificar uma central elétrica; desce junto ao Zêzere para contemplar os maciços rochosos por onde corre o rio, até pode acontecer que passem por ali caiaques ou haja pescadores. Não esquecer as belas praias fluviais da região.

Na segunda vacina falaremos mais detalhadamente do castelo da Sertã, resta pouco, andou séculos arruinado e ouvem-se críticas para a requalificação a que se sujeitou este espaço. Da Ponte Velha ou Ponte Filipina só oiço dizer bem das intervenções recentes. A Ponte foi construída no início do século XVII, tem cerca de 64 metros de comprimento e assenta sobre 6 arcos redondos. Vale a pena vê-lo à distância, é imponente o sistema de reforço composto por talha-mares triangulares. No volume primeiro de As mais belas igrejas de Portugal, 1988, referencia-se a Igreja Matriz da Sertã, de que se falará noutra oportunidade. Mas convém reter: “A atual Matriz, da invocação de São Pedro, eleva-se em privilegiado sítio, alto terreiro miradouro da lindíssima paisagem da vila, sabiamente disposta entre montes florestados e no encontro da Ribeira da Sertã com a de Amioso. Ao redor da igreja o espaço é amplo, florido, debruado com murete convidativo para contemplar o panorama. Mas o próprio exterior da Matriz, sóbria remodelação pós-renascentista, oferece perspetivas admiráveis pelo seu movimento de volumes – corpos acrescentados, telhados a diferentes alturas, ângulos reentrantes, janelas, num jogo arquitetónico de surpreendentes efeitos”.

O tempo escasseia para quem vem à vacina, noutra circunstância se falará de outros pontos de visita, mal de mim se não vos falasse de uma joia arquitetónica que são os paços do concelho da Sertã, projeto de Cassiano Branco, um dos nomes sonantes da arquitetura modernista portuguesa. Trabalhava ele no Mercado de Santarém e já estava enfronhado no projeto dos paços do concelho da Sertã, isto em 1925, mas o edifício só ficou concluído em 1933. O velho edifício fora devorado por um incêndio, escolheu-se um outro local, o Alto do Soalheiro, sonhava-se com uma ampliação urbana, tudo foi preterido para pôr aqui o novo edifício num ponto dominante. O que há nesta obra que traga pasmo e admiração? Elementos do passado dentro de uma exposição simétrica e de uma cobertura que goza de inspiração francesa. Surpreende a dimensão dos alçados, uma escadaria um tanto recuada que faz com que o visitante fique especado com o tamanho e a dimensão dos alçados, das arcadas do andar superior e a luz que não deixa qualquer sombreado naquele interior. A sobriedade é imensa, o que não lhe retira imponência, o edifício foi recentemente intervencionado para dispor de confortos atuais, mas houve o extremo cuidado de não prejudicar a conceção das peças essenciais do genial arquiteto. Convém ao forasteiro, caso goste muito de arquitetura, de pedir previamente ajuda de um guia, será regalado com comentários esclarecedores a tão bela obra.

Posta esta visita, chegou a hora da vacina, a boa disposição está inalterável, à cautela, e porque todos os restaurantes ainda estavam encerrados, voltou-se à Carvalha para despachar o piquenique. E ainda houve tempo para ir a outras paragens, como se deixará exarado neste espaço.

(continua)
Casa brasonada e apalaçada, virá o dia do merecido restauro
Pormenor de uma bela casa apalaçada que aguarda obras
Fachada da Igreja de São Pedro, a Matriz da Sertã
Sertã, entrada para o castelo
Alameda dos Carvalhos
A Ponte Velha cercada de calçada portuguesa
Fachada do edifício camarário concebido por Cassiano Branco
Outro aspeto da fachada
Imagem do envidraçado que proporciona a bela luminosidade da escadaria concebida por Cassiano Branco para a Câmara Municipal
Cadeiras Arte Deco, muito provavelmente dos tempos primeiros da década de 1930
Um dos corredores que percorrem várias direções os gabinetes da Autarquia
A majestosa escadaria, uma amostra da poderosa imaginação de Cassiano Branco na mistura de estilos e na exigência da supremacia de um espaço aéreo que quase esmaga quem pela primeira vez aqui entra
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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22233: Os nossos seres, saberes e lazeres (453): A estação de Metro dos Anjos, Maria Keil intemporal, a obra como ela a deixou (Mário Beja Santos)

1 comentário:

alma disse...

Só uma? Esperava que apanhásses quatro...