quarta-feira, 2 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22249: Historiografia da presença portuguesa em África (265): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (2) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala Algarve


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
 
Já se abarcou o período inicial das sessões, encetadas em 1876, estamos em 1882 e pareceu-me útil uma contextualização do pensamento destes sócios-fundadores, há diferentes abordagens sobre as suas motivações, inicio aqui uma digressão interpretativa, desta feita dada pelo historiador Valentim Alexandre, que me parece elucidativa. 

São inúmeras as referências aos exploradores que vão da costa à contracosta, aliás dentro da Sociedade de Geografia é a Comissão Africana que tem o trabalho preponderante, Angola e Moçambique são os pratos de substância de labuta dos sócios. Enfatiza-se o realce dado aos caminhos-de-ferro em calorosos debates, tanto em Angola como em Moçambique e aqui se respigam alguns parágrafos sobre a importância que os sócios dão ao caminho-de-ferro em Angola. 

Valentim Alexandre recorda que o caminho-de-ferro de Moçambique aparece com ligação ao Transvaal, não é por acaso, ali se começam a explorar diamantes e ouro. Como é evidente, estamos a caminhar a passos largos para a Conferência de Berlim, há potências como a Bélgica, a França e a Alemanha que não estão a gostar mesmo nada das partilhas acordadas entre Portugal e a Grã-Bretanha. Caminhamos para uma época de viragem, Berlim irá impor regras de ocupação que irão abrir portas a um novo patamar de ocupação político-militar, Portugal não escapará a essas regras.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (2)

Mário Beja Santos

Continuando a leitura das atas das sessões dos primeiros anos da Sociedade de Geografia de Lisboa, justifica-se plenamente uma tentativa de contextualização do pensamento destes homens que se reuniam tão assiduamente para falar das explorações no interior africano de Serpa Pinto, ou de Capelo e Ivens, que discutiam tão ardorosamente a questão dos caminhos-de-ferro, a criação de instituições superiores de Administração Colonial, entre outros importantes tópicos.

Recorre-se ao que escreve o historiador Valentim Alexandre em "Velho Brasil, Novas Áfricas, Portugal e o Império (1808-1975)", Edições Afrontamentos, 2000. A propósito da emergência do nacionalismo radical, que preside a atmosfera destas reuniões, escreve o autor:

“Na década de 70, a política colonial portuguesa ganha um novo fôlego. Para isso contribuem elementos de vária natureza, uns de ordem geral, outros ligados mais diretamente à vida do Império. Conta-se entre os primeiros a conjuntura de relativa prosperidade financeira vivida após o fim da guerra entre o Brasil e o Paraguai, em 1870, que propiciou o aumento das remessas dos emigrantes, facilitando a aplicação de fundos, antes muito escassos, nas empresas coloniais, públicas e privadas. 

Quanto ao Império, o facto fundamental fora o fecho do mercado de Cuba às importações de escravos, pondo finalmente termo ao comércio negreiro transatlântico realizado a partir da costa ocidental de África. Assim se libertavam capitais e energias para outras atividades; em Angola, cresce a navegação no Quanza, como eixo de comunicação comercial com o Interior, dando-se início ao ciclo da borracha; em Moçambique abrem-se novas perspetivas por virtude da descoberta de diamantes e posteriormente de ouro no Transvaal e também da inauguração do canal de Suez, em 1869, que aproximava a região da Europa.

É neste quadro que se insere a ação de Andrade Corvo, Ministro do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros durante grande parte dos anos 70. A ideia central da sua política estava na abertura do Império ao exterior, associando Portugal às demais nações da Europa na tarefa de ‘civilizar’ a África 

(…) Andrade Corvo defendia igualmente um expansionismo moderado em África, não excedendo nunca os limites dos recursos disponíveis (…) O anti-escravismo de Corvo refletiu-se na lei de 29 de Abril de 1875, que extinguiu o trabalho civil no Ultramar (…) Mas o nacionalismo imperial não tinha a sua única voz no campo político. Para além de influenciar as posições dos dois grandes partidos do constitucionalismo monárquico – o Regenerador e o Progressista – , a corrente nacionalista radical exprimia-se com a maior virulência nos órgãos do Partido Legitimista e sobretudo do Partido Republicano, recentemente formado, que ganha força e capacidade de mobilização precisamente na campanha contra o Tratado Lourenço Marques, por ele repetidas vezes atacado como uma manifestação de enfeudamento do país à Grã-Bretanha”.

E aqui se destaca um outro parágrafo:

“Do ponto de vista institucional, a resposta ao Tratado de Lourenço Marques encontrou expressão na Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875, com grande peso na política colonial do último quartel de oitocentos. Em geral, a sua atividade era a de um formidável grupo de pressão, em defesa dos ‘direitos históricos’, resultantes das descobertas e de antigos atos de posse e de exercício de soberania no continente negro”.
Estamos agora em 1882, a chamada Comissão Africana está ativíssima, quem preside à Direção da Sociedade já não é o visconde de S. Januário, é Barbosa du Bocage. Em janeiro, informa-se que Paiva de Andrada visitara a região de Zambeze e apresentara uma proposta com caráter de urgência para que um emissário de Sua Majestade fosse regular as questões de Manica e Sofala, propunha que fosse criado o Comando Militar de Manica, que ao Capitão-Mor de Manica, como ao Capitão-Mor de Inhambane fosse dada a graduação de coronel. Os sócios discutem que era dado como inadiável alargar a ocupação portuguesa pelo interior de Moçambique.

Neste enquadramento, aparece a proposta inédita do sócio senhor Alan para que se abandonasse o Forte de Ajudá, para que a bandeira portuguesa não continuasse a sofrer certas afrontas. Atenda-se ao teor da proposta:

“Considerando que a ocupação do Forte de S. João Baptista de Ajudá não tem objetivo algum, económico, político ou social; Considerando que essa ocupação só tem sido e é origem contínua de afrontas humilhações para a bandeira portuguesa e que se torna impossível desafrontá-la digna e briosamente, em consequência da especial natureza do terreno e difíceis comunicações com o mar, proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa consulte o governo acerca da inadiável necessidade de desocupar aquele ponto em nome da honra e do decoro nacional”.

Discutiu-se o parecer a enviar ao Governo sobre a construção do caminho-de-ferro de Lourenço Marques, houve debates acesos, mudando-se de agulha houve quem dissesse que o caminho-de-ferro em Angola era uma questão de vida ou de morte. E surgiu uma proposta para erigir em Lisboa, na Praça do Restelo, ou outro local, uma estátua ao Infante D. Henrique, que seria feita por subscrição nacional e para a qual se solicitaria ao Governo de Sua Majestade a cedência das peças necessárias, procedentes das nossas fortalezas e navios de guerra, dadas como inaproveitáveis para o combate. 

E que a meteorologia já fazia parte dos avanços da civilização, tome-se nota da proposta para criar um posto meteorológico na ilha de S. Vicente que estivesse em relações com o Observatório Meteorológico do Infante D. Luís, visitável no Jardim Botânico, ao lado da Escola Politécnica. Em 20 de junho de 1882 fala-se pela primeira vez da Guiné Portuguesa. Luciano Cordeiro acusou a receção de carta do governador Pedro Inácio de Gouveia manifestando empenho que se constituísse uma secção da Sociedade de Geografia de Lisboa para o que pedia que fossem nomeados sócios ou indivíduos da lista proposta pela mesa.

Em dezembro de 1882, a Sociedade de Geografia proclama Luciano Cordeiro como seu Secretário Permanente, como distinção especial. Um aspeto que não deixa de chamar a atenção nestas sessões é que os sócios também falam da metrópole, e foi calorosa e entusiástica a forma como alguém fez a exaltação do termalismo no Gerês, referindo que se trata de água para medicação de um grande número de doenças do fígado ou complicações gástricas.

Mas são os debates sobre os caminhos-de-ferro que geram a apresentação de propostas bem substantivadas, é o caso do importante documento sobre a necessidade e urgência do caminho-de-ferro em Angola, vejam-se os seguintes parágrafos:

“Fácil é mostrar que a construção de algumas vias férreas naquela província ultramarina é não só necessária mas ainda urgente, como meio de assegurar o nosso domínio naquelas regiões, e como um dos instrumentos mais poderosos e essenciais da sua civilização e progresso. Em aqueles dilatados domínios portugueses falecem totalmente os meios de comunicação, que o mesmo é dizer que o transporte das coisas e pessoas se faz empregando o homem como animal de carga.

A ligação dos centros de ação e direção governativa e civilizadora com diferentes entrepostos afastados da costa, e que devem ser escolhidos como chaves de toda a circulação interna, e que como pontos capitais estratégicos, não só na acessão restrita e militar da palavra, como no sentido das operações comerciais ou de qualquer caráter civilizador, é também necessidade patente.

No estado presente das coisas não há verdadeira personalidade política ou administrativa naquela província ultramarina. Há apenas diferentes agrupamentos de indivíduos em um estado rudimentar de civilização, situados a grandes distâncias uns dos outros e sem nexo algum entre si. Nestas circunstâncias a ação governativa não tem a força necessária para exercer-se com toda a eficácia na manutenção e respeito das leis e dos princípios de moral, justiça e humanidade que regem as sociedades policiadas.

Tem a província de Angola poucas águas-correntes suscetíveis de converter em linhas de navegação, e se recorrêssemos a esse expediente que nem seria pouco dispendioso, nem muito adequado para linhas-gerais de comunicação, só alcançaríamos tardiamente alguns rios canalizados sem comunicação entre si.

Com o caminho-de-ferro conseguirá o Governo outras vantagens que não alcançaria com as estradas. Além dos lucros da exploração ou sua partilha, poderá reembolsar em um prazo mais ou menos longo os capitais despendidos na construção. Vê-se em tudo quanto fica dito que não há fundamento sólido que possa ser invocado para preferir as estradas ordinárias aos caminhos-de-ferro, quando se trata de estabelecer comunicações a grande distância”
.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22226: Historiografia da presença portuguesa em África (264): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

7 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Já é chover no molhado dizer-se que a situação que encontrámos em África foi consequência de muitos e muitos "erros" que se foram cometendo ao longo de séculos.
Agora, porém, com este texto produzido na SGE (Lisboa) as coisas pioraram.
Vejam o que aconteceu ao Forte de S. Baptista de Ajudá. Abandoná-lo em nome da "dignidade" não seria correcto. Optou-se por prolongar a "situação" durante quase um século e depois, tudo acabou daquela forma caricata que bem conhecemos. No entanto creio que o Forte foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Como estará ele hoje? Pouco importa...
E as propostas da SGE que nem sequer devem ter sido ouvidas ou, pior ainda, não passaram à prática por... falta de verba.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Angola teve três linhas de Caminhos de ferro descomunais, atendendo â miséria em que os nossos reis traziam o país (dos livros).

Conheci e trabalhei junto e ao longo de grande parte desses três linhas e é de espantar aquele esforço feito nos anos 1880 até mais ou menos 1920.

Caminho de ferro Luanda-Malange com um ramal de Calomboloca (?), aprox 500 Klm.

CF Moçâmedes-Lubango, mais tarde até Serpa Pinto (Menongue) aprox. 750 Klm.

CF de Benguela- Catanga mais de 1300 Klm.

Se para a Sociedade de Geografia a prioridade era o caminho de ferro, em Angola fez-se essa vontade.

Foi um esforço de engenharia muito grande, financeiramente ouvi muitas coisas complicadas, mas não sei apreciar.

Toda estas linhas eram atlàntico/interior, Oeste/Leste

Estava em estudo em 1961, uma linha Luanda para norte até Noqui, a guerra fez esquecer o projeto.

Sabemos que estas linhas ficaram inoperacionais com a guerra após a independência, perto de 30 anos, mas parece que os chineses e o petróleo puseram aquilo em movimento.

Foi o sucesso económico e militar em Angola, que fez com que aguentássemos (ilusoriamente) 13 anos aquela guerra do Ultramar.

Em Angola após aquele pesadelo de 1961, (terrorismo tribalista da UPA), os sonhos da Sociedade de Geografia provavelmente ficaram realizados no seu todo.

Valdemar Silva disse...

Consultando a Wikipédia, encontramos na interessante e exaustiva Lista dos Territórios do Império Português (1415-1999), com cerca de uma centena de territórios, a seguinte informação:
-São João Batista de Ajudá - forte subordinado ao Brasil (1721-1730); subordinado a S. Tomé
e Príncipe (1865-1869); anexado a Daomé (1961).

Consultando a Lista verificamos que o Império Português começou em 1415 com a conquista de Ceuta e acabou em 1999 com a entrega de Macau, o quer dizer que com cedências, perdas em conquistas e independências teve a duração de 584 anos, e se compararmos os 503 anos do Império Romano do Ocidente (27 a.c. a 476) podemos muito bem dizer "Carago, pequenos mas com grandes feitos!" (*)

Abraços
Valdemar Queiroz

(*) parece que nas Condecorações do 10 de Junho ouvia-se "Carago, pequenos mas com grandes
peitos".

Antº Rosinha disse...

Aquele discurso da Sociedade de Geografia deve ter tido mais repercussão no desenvolvimento em Moçambique.

Quem vivia em Angola notava que apesar de Angola ter mais riquezas naturais (diamantes, petróleo, mármores, etc.) do que Moçambique sabia-se que desde Caminhos de ferro, estradas e industrias várias, Moçambique estava mais desenvolvido.

Para quem somos nós, historicamente pouco empreendedores, somos gente apenas de rompantes, houve de facto para Moçambique naquela época um "grande rompante", aquela provincia ultramarina era um autêntico luxo a nível comparável com a África anglofona.

(também foi um rompante, a guerra do ultramar contra o mundo inteiro, porra!)

Moçambique hoje, em vias de extinção, quem o viu ou quem o vê, com apartheid ou sem, aquilo é mesmo para desaparecer, tristeza!

Dizia Machel para Ramalho Eanes e para a "Manela", que todos tinham Papé, só Moçambique não tinha papé.

Não temos mesmo pedalada para os ajudar, nem mesmo para recuperar Olivença!

Valdemar Silva disse...

A propósito do Império Romano, com a colonização da antiga Lusitânia, que na região ocidental fazia parte o actual território de Portugal, teria havia forte resistência dos povos indígenas incluindo revoltas comandadas por um tal Viriato que gritava 'ewch i'ch gwlad'(*) quando se emboscava e heroicamente se atirava às legiões de Roma.
Parece que este herói Viriato só apareceu na nossa História no século XVI para separar a Península Ibérica (sob o total domínio filipino) em Hispânia e Lusitânia, até aquela data em nada é referido. Depois até aparece nas estátuas dos heróis no Arco da Praça do Comércio, em Lisboa, e num monumento salazarista dos anos 40, em Viseu, com um não sei quê da "raça" a expulsar os invasores romanos, que por cá foram deixando estradas, pontes, extracção de ourinho, o direito e a língua.
Mas isto dos indígenas se revoltarem organizando ataques em guerrilha contra o colonizador, alto lá! A partir de 1961 o Viriato deixou de estar muito bem visto e desde esse ano não mais voltou a ser destacado como herói nacional e, até, desapareceu como figura histórica nos livros escolares.

Abraços
Valdemar Queiroz

(*) outras fontes dizem que seria 'rach do dhùthaich'

Fernando Ribeiro disse...

O Forte de S. João Baptista de Ajudá está convertido em Museu de História do Benim e pode ser vista uma fotografia dele, datada de 2015, em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Musee_d'Histoire_in_Ouidah_2015.jpg.

Tanto quanto julgo saber, as três linhas de caminho de ferro de Angola foram recuperadas pelos chineses e estão operacionais a 100%, ligando Luanda a Malange (Caminho de Ferro de Luanda), Lobito ao Congo (Caminho de Ferro de Benguela) e Moçâmedes a Menongue, ex-Serpa Pinto (Caminho de Ferro de Moçâmedes). Podemos ver um pouco de uma "viagem" no Caminho de Ferro de Benguela no seguinte vídeo musical da cantora angolana Pérola, cantado em língua umbundo (não confundir com quimbundo, que é uma língua diferente): https://www.youtube.com/watch?v=3RIKJARgeqQ.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Semos uns gajos bestiais! Kum escafandro! Atão não é cu império romano durou menos tempo cu nosso! Um espécie de Portugal-Itália a contar para o campeonato dos países com império.
E o desenvolvimento kakilo lá em Ingola mandava!
Se não fossem os estafermos dos estudantes da CEI, ainda hoje se poderia ir de Angola à Contra-costa de comboio.
Mas a maior culpa foi da Sociedade de Geografia, aqueles subversivos, aqueles colonialistas que vinham fazer aqueles relatórios malfazejos e maledicentes a dizerem que "lá" se vivia mal e que era necessário desenvolver. Mintirosos! Num paraíso daqueles!...
Há jente muinta má! Kum kamandro!

Um Ab.
António J. P. Costa