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segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26165: Notas de leitura (1745): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Aqui se versa a história do comércio de escravos, a era colonial e o quadro das independências no continente africano. A par de dados inequivocamente rigorosos, é nítido o desconforto de Basil Davidson a analisar o pacto estabelecido ao longo de séculos pelas chefaturas africanas e os comerciantes de escravos. É fidedigno o relato deste crescendo comercial polarizado para as Américas, tocou o Brasil, o Caríbe e a América Central e uma boa parte do que é hoje os Estados Unidos da América, prende-se com o açúcar, o tabaco, o algodão, a prata e o ouro e os diamantes, o trabalho do engenho, das plantações, das minas, até mesmo como na África do Sul o negro era escravizado ou induzido ao trabalho forçado. Houve escravos que resistiram, foi o caso do Haiti, revoltaram-se e foram massacrados pelos exércitos franceses.. Estes escravos africanos foram pioneiros do Novo Mundo,na Virgínia, Carolinas, na Geórgia, reformularam a estrutura do Brasil. A era colonial que despontou no século XIX entrará no ocaso no fim da Segunda Guerra, dos anos 1960 em diante o quadro político irá transfigurar-se. Desgraçadamente, ainda se pode utilizar o título de uma obra de René Dumont, "A África negra começou mal", este mesmo agrónomo escreverá mais tarde sobre a África estrangulada e o drama dos africanos nordestinos, em particular na região do Sahel.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (3)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Chegou o momento de nos centramos no comércio de escravos, em devido tempo já se observou que Davidson é francamente omisso quanto à natureza do comércio de escravos que se fazia dentro do continente, do Norte de África na bacia do Mediterrâneo e através do Norte de África para a Península Arábica e arredores. Dirá, de raspão, que o comércio de escravos remontava à época romana e que fazia parte importante da vida quotidiana da Europa, fala em escravos europeus, e dirá em dado passo:
“Estados cristãos, especialmente as cidades-Estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e Ásia Ocidental. E quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também.”
Suaviza a vida destes escravos, dizendo que eram muito bem tratados porque eram caros e acrescenta:
“Enquanto o comércio de escravos se confinou à Europa e África pouco mais foi do que um comércio de cervos domésticos e artífices, dado que as condições de vida dos escravos eram muito semelhantes às da maioria da gente pobre desses tempos.”

Há algo de muito cor-de-rosa nesta narrativa, para contrastar com a brutalidade do tráfico negreiro que se processará por europeus de África para as Américas, tráfico que envolveu portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e dinamarqueses, sobretudo. Tornara-se vital encontra mão de obra para a indústria açucareira, seguir-se-á o cultivo de algodão e a pesquisa de ouro e pedras preciosas. Os chefes africanos entraram no comércio de escravos, fizeram acordos amigáveis, aceitaram auxílio militar ocasional de piratas, ficaram satisfeitos por comprar produtos europeus, venderam ouro, marfim, pimenta e as provisões alimentares às tripulações dos navios europeus. Estes reis, ávidos de riquezas, lançaram-se em guerras para ter mais prisioneiros que seriam feitos escravos. Davidson encontra uma explicação para este comportamento dos chefes africanos: sentiam a atração por possuir esses produtos longínquos e queriam comprar armas, medida que irá merecer a reprovação de muitos, há mesmo testemunhos de quem protestava dizendo que aquela venda de armas era como entregar aos africanos uma faca para cortar os nossos próprios pescoços. Davidson elenca o funcionamento do comércio e depois o seu termo, e as consequências futuras destes africanos que passaram a integrar o destino dos povos americanos. Releva igualmente a importância dos escravos na fase pioneira do Novo Mundo trabalhando como mineiros, agricultores e criadores de gado.

E assim chegámos ao último capítulo da obra, caminha-se para a África moderna, entre a era colonial e a África de Estados independentes. Enumeram-se as razões que conduziram povos europeus ao colonialismo africano e não se esconde que os africanos pagaram um preço extra pelo envolvimento dos seus reis e mercadores no comércio de escravos. Este processo colonialista fez-se acompanhar, obviamente, de uma lógica de extração de riqueza, depois da Conferência de Berlim as potências coloniais foram implicadas na ocupação efetiva do território e Davidson faz uma súmula de quatro períodos principais:
“Como funcionou o sistema colonial? Qual o seu significado para a África? As respostas a estas perguntam podem achar-se se observarmos o que aconteceu entre cerca de 1880 e 1960. Podemos distinguir quatro períodos principais.
Primeiro, o período de invasão e conquista anterior e posterior à Conferência de Berlim de 1884-1885. Durou até cerca de 1900
Segundo, o período de montagem do sistema colonial e de destruição dos últimos remanescentes da resistência armada africana. Este prolongou-se até 1920, ou mais tarde em algumas colónias.
Terceiro, o período central do domínio colonial. Na maioria dos casos, este estendeu-se de cerca de 1920 até cerca de 1950, embora também com exceções.
Quarto, o período em que uma nova e sempre bem-sucedida forma de resistência política africana contra o domínio estrangeiro ocupou o centro do palco. Isto começou a acontecer cerca de 1950. A nova forma de resistência política chamou-se nacionalismo. Era um nacionalismo orientado, não para a conquista de outros, mas para a recuperação da independência africana adentro das fronteiras coloniais, que os africanos agora aceitavam como sendo as fronteiras das novas nações independentes que queriam construir.”

Conhecemos bem as guerras que ocorreram dentro deste quarto de período. O autor procura fazer uma reflexão sobre os insucessos africanos, é o caso do baixo nível tecnológico, a desunião no interior dos Estados africanos, a propagação de tribalismo, as debilidades da educação colonial (que refletiam atitudes das classes dominantes da Europa). Conta-se sumariamente a história das vias de resistência africana, a importância que teve a Segunda Guerra Mundial na desarticulação dos ideais imperiais, a alvorada da liberdade política e os casos de luta armada.

Os graves problemas não desapareceram com as independências, é o caso das fronteiras. “A ideia europeia de Estado, legado aos africanos, é que ele deve consistir numa única nação, com uma fronteira a limitá-lo. Para além da fronteira ficam outras nações diferentes. Contudo, esta asseada ideia de que devia ser um Estado não foi a ideia que os europeus efetivamente aplicaram em África. Eles retalharam a África em cinquenta colónias, ao sabor dos puxões e empurrões dos interesses e rivalidades europeus, e de maneira nenhuma de acordo com os interesses dos povos cujos países invadiram.
Muitas vezes os europeus limitaram-se a traçar linhas em mapas, mesmo quando tinham apenas uma vaga noção acerca dos povos e dos países através dos quais as linhas passavam. O resultado foi que poucas das fronteiras coloniais faziam qualquer sentido para a gente que vivia lá dentro.”

O Congo é um exemplo flagrante.

Subsistem os perigos da herança colonial e de um nacionalismo estreito. O fim da Guerra Fria parecia anunciar a retoma da via democrática, em muitos casos estes países imobilizaram-se e aguardam vias para o desenvolvimento, isto a despeito da ajuda da cooperação internacional se fazer com inegáveis benefícios, como é flagrante a gradual descida da mortalidade infantil e de doenças devastadoras.

Basil Davidson (1914-2010)
Mercado de escravos na região do atual Senegal
Aguarela sobre papel "Engenho manual que faz caldo de cana", Jean-Baptiste Debret, 1822
Divisão de África, finais do século XIX
Grupo ligado à Casa de Estudantes do Império, Amílcar Cabral é o segundo de pé à direita
Nelson Mandela
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Notas do editor

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Último post da série de 15 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
Desta edição em português se fez outra destinada ao Ministério da Educação da República Popular de Angola, em 1981. A este país recentemente independente interessava um relato que não se cingisse à visão colonial ou mesmo à história monumental da UNESCO. Confiou-se no poder divulgador de Davidson que pesquisou em diferentes livros o passado africano, e há que reconhecer que fez um levantamento corretamente cingido a investigações de referência. Mas ao abordar a questão ainda hoje muito tensa do comércio de escravos tudo se irá polarizar no negócio europeu, passa-se uma esponja sobre o tráfego praticado entre a Arábia e o Norte de África, a vida destes impérios do norte, centro e sul do continente onde se praticava o comércio negreiro e onde ninguém possuía direitos. Ora o que ele vai enfatizar é o comércio negreiro praticado pelos europeus, o outro, praticado durante séculos entre gente da mesma cor, não conta. Assim se pretendia fazer lavrar o mito de que tinham sido os colonialistas europeus a definhar África através do comércio mais ignóbil do mundo. Mas Davidson era um homem comprometido com estes movimentos de libertação e fez parte fraca. O passado de África teve os seus momentos de glória e as múltiplas fraquezas e ações ignóbeis que encontramos nos outros impérios.

Um abraço do
Mário


À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Já viajámos por impérios do passado, Gana, Mali e Songai, seguidamente o autor transporta-nos para a África Oriental e Central, dá-nos uma descrição da cultura Suaíli, o viajante árabe Ibn Battuta, que referenciou Tombuctu e as cidades do Mali e Songai, rumou para o sul, esteve onde é hoje a capital a Somália, Mogadíscio, e depois Quíloa, o principal centro do comércio do ouro e do marfim da África Oriental, situada numa pequena ilha junto da costa da parte sul da Tanzânia. Tudo vai mudar em 1498, com a viagem de Vasco da Gama, ele não encontrou Quíloa na sua primeira viagem, esteve em Mombaça e depois Melinde. Davidson refere os reinos Xonas, foram visitados por portugueses que partiam de Sofala e que avançaram para esta região entre os rios Zambeze e Limpopo. No século XV, quando os Xonas se lançaram num importante período de expansão política, eles já tinham criado importantes Estados e haviam completado as altas muralhas do Grande Zimbabué, residência dos seus governantes mais poderosos, cerca de 1400.

Impõe-se uma referência ao reino de Angola, há a considerar o reino do Congo e o dos Quimbundos, a sul, na atual parte ocidental e central de Angola, chamava-se Ndongo e o rei tinha o título de Ngola. Em 1500, os portugueses do Congo confundiram o título do rei com o nome do país, entrou em uso o nome de Angola. O autor recorda a correspondência entre os reis de Portugal e os do Congo. E voltamos à África Ocidental, fora a região mais densamente povoada do continente, sabe-se que tudo mudara com a avassaladora extensão do deserto, foi aqui que se deu o impacto do comércio de escravos do Atlântico, levaram para a América as artes, as técnicas e o trabalho da gente negra. O autor dá-nos o quadro do passado recente antes da vinda dos europeus:
“Os africanos ocidentais comerciavam com o Norte e o Leste. Vendiam os produtos das suas florestas, o ouro e a noz de mascar aos mercadores viajantes do Sudão, do Mali e a gente do território dos Haússas. Toda a África Ocidental era atravessada por uma rede de rotas comerciais ligadas às cidades mercantis, tais como Djenne, Tombuctu e Kano. Os africanos ocidentais ao sul do Sudão também comerciavam muito entre eles próprios.” O autor fará referência aos reinos Iorubas, ao império do Oyo, ao império do Benim, que manteve boas relações com os portugueses. “O povo de Benim viu que os europeus estavam desejosos de comprar a pimenta que eles cultivavam em quantidade, pois a pimenta era então um produto valioso na Europa. Descobriram também que os europeus tinham grande admiração pelos excelentes algodões tingidos e queriam comprá-los. Em contrapartida, o povo do Benim achou que os europeus possuíam coisas úteis para lhes vender, nomeadamente artigos de linho e de metal.” As obras de arte produzidas deste intercâmbio são hoje altamente disputadas pelos museus e grandes colecionadores.

Uma palavra agora para o reino do Achanti, que englobava a maior parte do que é agora a República do Gana. Depois de 1700, os Achantis dominaram um vasto território durante quase 200 anos. E depois de uma descrição feita deste reino de Achanti, Davidson descreve o sistema político africano, a governação, as linhagens, as sociedades secretas, mas também a religião, o encontro entre o cristianismo e o Islão, a feitiçaria, a tecnologia prática, o tratamento dos metais, a fiação, tintura e tecelagem; e igualmente pormenoriza a arte de viver, a literatura, a música, o teatro. E assim chegamos à história do comércio de escravos entre África e o Mundo Ocidental.

Chama-se a atenção do leitor que Davidson, não se sabe bem porquê, não tem uma palavra sobre o comércio de escravos antes da chegada dos portugueses e outros, ora a escravatura vem desde os tempos antigos, em qualquer conquista entre povos africanos se escravizava população e esta era comerciada pelo continente. A sua narrativa começa exclusivamente com a chegada dos portugueses, mas antes, porém, socorre-se de uma descrição mirabolante, truncada do que fora a escravatura no passado. Vale a pena reproduzi-la para se ver a onde nos leva a manipulação e a ignorância:
“As primeiras incursões em busca de cativos negros que pudessem ser vendidos na Europa têm de ser encaradas no contexto da época. Em 1441, quando Antão Gonçalves zarpou da costa portuguesa, o comércio de escravos já era muito antigo na Europa. Remontava à época romana e, mais atrás ainda, à Grécia antiga. Continuou parte importante da vida quotidiana na Europa até ao fim da Idade Média e mesmo posteriormente. Tratava-se sobretudo de comércio de escravos europeus. Estes vinham, normalmente, dos países eslavos da Europa Oriental, porque os povos eslavos converteram-se ao cristianismo mais tarde que os outros europeus; e os cristãos, como os muçulmanos, não viam nada de errado em escravizar os não-crentes. Este comércio não se confinava à Europa. Estados cristãos, especialmente as cidades-estados da Itália, tais como Génova e Veneza, vendiam muitos escravos europeus para os reis do Egito e da Ásia Ocidental e quando o fornecimento de não-cristãos baixava, eles compravam cristãos e vendiam-nos também. Os genoveses eram tão ativos na venda de cristãos que o Papa Martinho V, em 1425, emitiu uma ordem de excomunhão contra eles. Mas o destino destes cativos era muito diferente do dos escravos transatlânticos de épocas posteriores. Tal como em África, eles tornavam-se pessoas sem direitos que podiam ser compradas e vendidas, ou oferecidas de presente, para servirem como pessoal doméstico ou artífices especializados. Podiam ascender a postos de autoridade, casar no seio das famílias dos amos, trabalhar para reaverem a liberdade. Eram muito bem tratados, porque eram caros. Apenas os ricos podiam tê-los. Por conseguinte, Gonçalves e os seus colegas capitães, trazendo prisioneiros africanos para Lisboa, não viam crime no que faziam e sabiam que a carga era valiosa.”

Assim se passa uma esponja sobre a história do comércio negreiro africano que antecede o comércio negreiro europeu em África…

(continua)

Basil Davidson (1914-2010)
Bronzes do Benim, coleção do Museu das Belas Artes de Boston
A Grande Mesquita, Djenne, Mali
Gao e o rio Niger
Mapa do império Mali, cerca de 1337
Saleiro de Marfim, arte cingalo-português, séc. XVI, império do Benim, peça do Museu Britânico
Saleiro, séc. XVI, arte cingalo-portuguesa, peça do Museu Nacional de Arte Antiga
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Notas do editor

Vd. post de 4 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar 1878-1926", por Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26114: Notas de leitura (1741): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
A obra de Basil Davidson não esconde os objetivos subjacentes: mostrar como houve civilizações e culturas prodigiosas antes da chegada do europeu, é uma escrita com o seu poder elegíaco, e se assim não fosse não tinha havido uma edição a pedido do Ministério da Educação da República Popular da Angola. Tendo sido um ativista fervoroso pelas causas dos movimentos independentistas (PAIGC, MPLA e FRELIMO), também aqui deixa a sua marca da água, veremos adiante que trata a questão da escravatura na África pré-colonial como cão por vinha vindimada, era quase tudo compra de gente que ficava em família, segue-se então o comércio ignóbil dos europeus, que deixou os seus filhos e filhas povoarem vastas regiões das Américas e das Caraíbas, e que deram um contributo vital para o desenvolvimento do Novo Mundo. A despeito de óbvia parcialidade no tratamento das chamadas "questões quentes", Davidson é um excelente escritor e o seu livro uma lição de divulgação, uma boa obra de consulta para certos investigadores e universitários que queiram procurar aprender a escrever para o grande público.

Um abraço do
Mário



À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (1)

Mário Beja Santos

A edição original é de 1978 e a tradução portuguesa de 1981, Sá da Costa Editora, que também produziu uma edição para o Ministério da Educação da República Popular da Angola. Basil Davidson, jornalista e escritor, tem vasto currículo ligado aos movimentos independentistas de língua portuguesa, recordo que foi ele que propiciou a ida de Amílcar Cabral a Londres em 1960, o líder do PAIGC (então PAI) apresentou um significativo documento sobre as colónias portuguesas, deu conferências e conversou com parlamentares, estabeleceu apoios. Este livro é uma introdução à história dos africanos, decorre às vezes numa atmosfera de intenso elogio ao contributo dos africanos para o progresso do Mundo Antigo, enfatizará a ascensão e esplendor de civilizações famosas do vale do Nilo, e iremos ver referências a mercadores e impérios, o Gana, o Mali e o Songai; haverá uma exposição quanto à importância da África Oriental e Central, como é óbvio procuraremos relevar o que ele escreve sobre a África Ocidental. Em tom francamente divulgativo, seguem-se exposições quanto ao modo de vida dos africanos, uma exposição sobre o comércio de escravos e, por fim, um capítulo dedicado ao colonialismo e independência.

Tudo começa com a descoberta em 1888 das ruínas de grandes edifícios de pedra na região do Zimbabué, quem teria construído aquelas grandiosas muralhas de pedra e sabido fazer elegantes pulseiras de ouro batido? Os primeiros arqueólogos não encontravam resposta. Hoje sabe-se que estas paredes do Zimbabué terão cerca de mil anos. Como se sabe que houve povos africanos pioneiros no último período da Idade da Pedra e a paleontologia dá como certo e seguro de que o homem, tal como o conhecemos, tem aqui a sua origem.

O povo mais bem-sucedido foi aquele que vivia nas margens do rio Nilo, no território que depois foi o Egito. Davidson dá-nos um quadro de tão portentosa civilização e a sua cronologia. Ali perto nasceu outra civilização, o reino de Kush, construído em duas fases, a primeira sobre a influência egípcia e a fase em que a capital era Méroe, a cerca de 140 km a Norte da moderna Kartum, a capital do Sudão, o poder e a influência de Méroe durou aproximadamente oito séculos. Estes kushitas eram grandes viajantes e comerciantes, inventaram um alfabeto novo com signos para 23 letras (os cientistas ainda trabalham na sua decifração); hábeis agricultores, mas também fortes na guerra, utilizavam a cavalaria, domesticaram o elefante africano; no auge do seu poderio, entre aproximadamente 300 a.C. e 200 d.C., os kushitas dominavam a parte das parcelas do Norte e do centro do Sudão Oriental.

O autor volta-se agora para os povos berberes; antes do ano 2000 a.C., uma grande parte do que é atualmente o deserto do Saara consistia em pradarias bem irrigadas onde viviam e labutavam muitos grupos africanos da Idade da Pedra; as alterações climáticas reconfiguraram estes povos saarianos, deram-se impressionantes migrações; os Tuaregues estão entre os descendentes destes primeiros saarianos; aqueles que viviam no Norte de África aprenderam a metalurgia com os vizinhos do outro lado do Mediterrânio, na Hispânia. O autor refere Cartago e Roma em África e dá um enfoque aos primeiros reinos cristãos de África. O Egito chegou a ser terra cristã; mas a comunidade mais original é a Igreja Copta, criou elegantes igrejas, belas bibliotecas, muitas pinturas e esculturas religiosas; tiveram diferendos com Bizâncio, mas ficaram independentes; há também a registar o cristianismo núbio.

África foi sempre um continente difícil, se bem que possuidor de territórios aprazíveis, ao longo de alguns dos grandes rios, ou nas margens dos lagos, ou nas férteis terras altas orientais que constituem atualmente o Quénia, a Uganda, o Norte da Tanzânia, o Ruanda e o Burundi; mas a maioria dos africanos só pode sobreviver e prosperar respondendo a severos desafios de clima e solo.

“Por vezes foram ajudados pela exuberância da natureza de África, pelas suas altas florestas ou grandes manadas de animais de boa carne, tais como antílopes e búfalos; mas estas mesmas vantagens também acarretavam desvantagens. As florestas eram de difícil penetração; com frequência era difícil viver nelas. Os animais incluíam perigosas feras. A maioria dos africanos teve também de resistir às doenças peculiares das regiões tropicais. Estas incluíam a malária, transmitida pelos mosquitos; certas outras doenças, tais como a bilharzíase, transmitida por caracóis aquáticos ou a debilitação provocada pelos ancilóstomos (infeção parasitária); e, entre as piores, a doença transmitida pela mosca tsé-tsé.”

A despeito destas adversidades, a população fixou-se, desenvolveu a sua agricultura, utilizou o ferro, gerou civilizações. Podemos falar do mundo africano dedicado ao comércio, em duas regiões distintas. A primeira foi o império de Monomotapa, ligado ao comércio mundial pelos mercadores suaílis que, das cidades da costa oriental, penetravam no interior; a segunda, foi a África Ocidental a sul do Sudão, dotou-se de mercadores sudaneses e berberes do Saara do Norte de África. Os africanos produziram e exportaram muitas centenas de toneladas de ouro.

É a vez de ser referenciado o Andaluz, em inícios do século VIII muçulmanos do Norte de África ergueram uma civilização nas regiões meridional e central de Espanha que durou até 1492, quando os Reis Católicos conquistaram Granada. É descrita esta brilhante civilização andaluza, a sua arte e os seus eruditos.

A sul do Saara temos os impérios das savanas. Estes povos centravam-se principalmente em ricas cidades-mercados onde os seus reis e mercadores viviam, eram povoados como forte atrativo para outros negociantes. E fala-se do Gana, teve o auge do seu poder cerca do ano 1000, os seus reis controlavam as rotas que levavam para o Sul, do Gana para o país que ficava à volta das nascentes do rio Níger, tinha o domínio da exportação do ouro, produziam moedas que circularam em dois continentes. A ascensão do Mali foi em grande parte obra do povo Mandinga de Wangara. Depois de 1250, o Mali expandiu-se até se transformar num dos maiores Estados do seu tempo. São desconhecidas as datas dos reinados dos primeiros monarcas do Mali. Sabe-se mais do bem-sucedido Kankan Mussa, que tomou o poder cerca de 1312, reinou até 1337. Dele sabemos mais através de um viajante árabe Ibn Batuta que nos deixou um relato palpitante do rei e da sua civilização. Este Kankan Mussa ficou na história por uma famosa peregrinação a Meca. “Diz-se que Mussa levou com ele cerca de 80 carregamentos de ouro do Mali, 500 dos seus servos traziam um bastão de ouro com o peso de 2 quilos. O imperador deu a maior parte deste ouro no Cairo, enquanto os cortesões também se serviam do ouro para fazerem compras nos mercados elegantes da capital egípcia.” O autor faz uma descrição deste império e depois fala-nos dos Songhai do Sudão Central que se impuseram depois da derrocada do Gana.

Deles iremos falar adiante, bem como de Tombuctu, haverá uma curta referência às cidades da costa Oriental e voltaremos à África Ocidental.


Mário Pinto de Andrade, Ana Maria Cabral, Pedro Pires e Basil Davidson, Cidade da Praia. 1980. FMSMB - Arquivo Mário Pinto de Andrade
Basil Davidson (1914-2010)
Ruínas localizadas a 20 km de Masvingo, sul de Zimbabwe. Era o centro de uma poderosa civilização conhecida como Império Monomotapa, cobrindo áreas do Zimbabwe e Moçambique.
Um pormenor do que foi o reino de Kush
Igreja de São Jorge em Lalibela, Etiópia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26111: Notas de leitura (1740): "Poemas de Han Shan" (China, séc. VIII), organização, tradução e apresentação de António Graça de Abreu, no Centro Científico e Cultural de Macau, Lisboa, 26/9/2024

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25413: In Memoriam (502): Historiador René Pélissier (1935-2024), que dedicou vasta obra literária às antigas possessões portuguesas em África

IN MEMORIAM
René Pélissier (1935-2024)

1. Com a devida vénia, reproduzimos o texto publicado no dia 3 de Abril de 2024 na página do Centro de História da Universidade de Lisboa, enviado ao Blog pelo nosso amigo e camarada, Mário Beja Santos:

Faleceu o historiador francês René Pélissier, estudioso do terceiro império português. René Pélissier (Nanterre, 1935) obteve, em 1975, o Doctorat d’État ès lettres pela Universidade da Sorbonne, com a tese intitulada Résistances et révoltes en Angola 1845-1961, investigação pela qual foi distinguido, em 1978, com o Prix Kastner-Boursault da Academia Francesa. A sua carreira de investigador esteve ligada ao Centre national de la recherche scientifique (CNRS), onde chegou a Directeur de recherche.

René Pélissier foi autor de uma vasta obra sobre as colónias portuguesas, em que se destacam as monografias Les guerres grises. Résistances et révoltes en Angola (1845-1941), 1978, La colonie du Minotaure. Nationalismes et révoltes en Angola (1926-1961), 1979, Naissance du Mozambique. Résistances et révoltes anticoloniales (1854-1918), 1984, Timor en guerre. Le crocodile et les Portugais (1847-1913), 1996, Naissance de Ia Guinée. Portugais et Africains en Sénégambie (1841-1936), 1996, e Les campagnes coloniales du Portugal (1844-1941), 2004. A sua obra foi editada em Portugal e alguns dos seus livros conheceram várias edições. Abordando, principalmente, os aspectos militares das conquistas portuguesas e das resistências locais durante o terceiro império, a sua obra constituiu uma novidade no período em que foi publicada e mantem-se actual. Dedicou-se, igualmente, à divulgação da bibliografia sobre o império português e os países de língua oficial portuguesa, tendo elaborado inúmeras recensões críticas e ensaios bibliográficos.


Ao longo do seu percurso como historiador reuniu uma extensa biblioteca com mais de 12.000 volumes, a maior parte deles sobre o antigo império português, a qual doou à Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

A 3 de Março de 2022, foi-lhe atribuído o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lisboa, sob proposta da Faculdade de Letras, como reconhecimento de mérito académico, científico e profissional no estudo e na divulgação da história de Portugal. A cerimónia de entrega do diploma e das insígnias decorreu em Paris, na Embaixada de Portugal em França.

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Notas do editor:

(1) - René Pélissier tem 39 referências no nosso Blog. Mereceu por parte do nosso camarada Mário Beja Santos várias referências e recensões aos seus livros. Talvez o Mário possa elaborar, para publicação, um trabalho sobre este brilhante historiador que dedicou alguns dos seus livros à África lusófuna, originando por vezes algumas discordâncias com os antigos combatentes portugueses.

(2) - À sua família deixamos o nosso pesar pela perda do seu ente querido.

(3) - Último post da série de 10 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25259: In Memoriam (501): António Lobato, maj pil av, ref (Melgaço, 1938 - Lisboa, 2024), autor de "Liberdade e Evasão: o Mais Longo Cativeiro": Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão, escreveu ele, citando o filósofo Emmanuel Mounier. A sua vida foi também ela uma luta contra o esquecimento e a ingratidão. Repousa, finalmente, em paz, em Rio de Mouro

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25060: O nosso blogue em números (91): Temos esperança que a Guiné-Bissau ultrapasse a China em 2024,... pelo menos em número de visualizações de páginas do nosso blogue!

Figura n.º 2 - Mapa-múndi com a distribuição do número de visualizações de páginas, do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (n=12,8  milhões), desde maio de 2010 a final de 2023.

Fonte: Blogger (2024)

Figura n.º 2 | Gráficos n.ºs 7 e 8 > Principais localizações dos nossos "visitantes" (leia-se:  visualizações de páginas, entre maio de 2010 e o final de 2023): no "Top 10", o destaque vai para Portugal (com 40% do total), seguido dos Estados Unidos da América (24,7%) e o Brasil (4,8%)... 2. mantem-se no essencial.

Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)


1. Sem falsa modéstia gostamos de (e podemos) dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande"...

A principal origem dos que visitam o nosso blogue, quase dois terços, é Portugal (40%) e os EUA (25%) (Gráfico nº 8)

Segue-se, à distância, com menos de 5% cada, o Brasil, a Alemanha e  a França.  Tudo somado, são quase 80%.

Este perfil não se tem alterado desde 2014, ano em que o Brasil perdeu o 2º segundo lugar para os EUA.  

Os  EUA (que tinham  7,6% do total de visualizações em 31/12/2013), deu então um salto  para os 17,6%). E o Brasil ficou-se pelos 7,8%... Mas Portugal também vindo a perder peso relativo: em 2014 tinha uma "quota" de 48,2%

Há uma explicação: a crescente penetração da Internet em todos os países do mundo...(Veja-se  o crescente peso relativo do "Resto do Mundo", que era de 13,2% em 2015).

No mundo globalizado em que vivemos, somos vistos em muitos lados... Seguem-se por ordem decrescente (com menos de 1%) (entre parênteses indicam-se os números absolutos, em milhares) os seguintes países que aparecem no "Top 20", entre as posições 10 e 19 (no período em referência, junho de 2006 a final de dezembro de 2023),e que constituuem o "resto do mundo" (n=2,1 milhões)(16,4%) do Gráfico nº 8:

10 > Canadá > 78,7 mil
11 > Espanha > 73,5 mil
12 > Ucrânia > 62 mil
13 > Região desconhecida > 58,5 mil
14 > Itália > 56,4 mil
15 > China > 50,6 mil
16 > Guiné-Bissau > 41,4 mil
17 > Países Baixos > 39,4 mil
18 > Irão > 36,5 mil
19 > Hong Kong > 35,9 mil
Outros > 1,59 milhões

Ficamos felizes por saber que , no nosso "Top 20",  estão  3 países lusófonos: Portugal (1º), Brasil (3º) e Guiné-Bissau (16º).

E, nos restantes, há também muitos portugueses e outros falantes da língua portuguesa que seguem ou visualizam, com regularidade, o nosso blogue, nomeadamente nos EUA, França e  Alemanha, sem menosprezar a Suécia, o Reino Unido, o Canadá e a Espanha...

Recorde-se, mais uma vez, que estes números respeitam apenas ao período que vai de maio de 2010 ao final do ano de 2023, ou seja, desde quando passámos a ter o contador do Blogger (ver aba, do lado esquerdo do blogue). Há, portanto, 1,8 milhões de visualizações, que ficam de fora, desde abril de 2004 até abril de 2010.

2. O caso da "nossa" Guiné-Bissau é interessante: 

(i) há dois anos atrás (2021)  estava em 19º lugar,  com 23,5 mil vizualizações; 

(ii) dois anos depois,  sobe 3 lugares, está com um total acumulado de 41,4 mil visualizações...e temos esperança que ultrapasse a China em 2024... (Os valores da China, todavia,  são os mesm0s de 2021, deixou de aparecer nos útimos dois anos,)

Cabo Verde, por sue turno, já não aparece no nosso "top 20", como aconteceu num ano atrás.

Estes números são interessantes, reflectem também a crescente penetração da Internet na nossa "pequena" Guiné Guiné (que, de resto, quadriplicou a sua popukação em 50 anos: de 0,5  para 2 milhões!).

De acordo como quadro a seguir, a Guiné-Bissau passou de 1500 utilizadores da Internet em 2000 para 900 mil em 2021. O grau de penetração da Internet e agora de 44%, ligeiramente superior ao totald e África, mas mesmo assim aquém dos 62% de Cabo Verde.

De qualquer modo, parece poder concluir-se que há mais interesse pelo nosso blogue na Guiné-Bissau do que em Cabo Verde... E seguramente do que na China!

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25049: O nosso blogue em números (90): A pequena Guiné-Bissau vem na lista dos 12 primeiros países onde somos mais vistos, e por pouco não ultrapassava, em 2023, a Suécia (11.º lugar)...

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24775: Notas de leitura (1626):"Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização", por Pedro Rabaçal; Marcador Editora (Editorial Presença), 2017 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Trata-se de uma iniciativa de divulgação, abarca a presença portuguesa em vários continentes, o capítulo dedicado à Guiné afigura-se-nos no essencial correto, menos correto o capítulo que dedica a descolonização, a bibliografia apresentada é muito precária e alguns dislates não impedem de considerar que a obra cumpre a sua função meramente expositiva e didática.

Um abraço do
Mário



Portugueses em África: uma breve história da nossa presença na Guiné

Mário Beja Santos

A
obra intitula-se Portugueses em África, Uma Breve História, Da Conquista de Ceuta à Descolonização, por Pedro Rabaçal, Marcador Editora (Editorial Presença), 2017. É uma obra de divulgação por alguém que tem no seu currículo o gosto por investigar, veja-se os títulos do que já publicou na Marcador Editora: 100 heróis e vilões que fizeram a História de Portugal; Imperadores Romanos, a vida de 30 Césares; Os grandes ditadores da História; 100 datas que fizeram a História de Portugal. Abarcando todas as parcelas do Império Português, ao longo de cerca de 150 anos, seleciona-se o que sobre a Guiné escreveu.

Tem um capítulo autónomo intitulado Guiné, a rebelde. Inevitavelmente fala nos lançados e tangomaus, no Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Alvares de Almada, nos piratas e presídios, na edificação da fortaleza de Cacheu, no enorme refluxo marcado pela Dinastia Filipina e a tentativa, após a Restauração, para melhorar a presença portuguesa; dá-nos um breve quadro da missionação e dos seus magros resultados; estamos chegados ao tráfico negreiro, a par do assédio francês e britânico, dá conta de que altas figuras da mestiçagem prosperavam com o comércio negreiro, caso de Caetano Nosolini e a sua mulher Aurélia Correia, e faz uma exposição digna de destaque:
“A atividade negreira de Caetano Nosolini correspondia à maioria da média anual de 2000 negros vendidos a Cuba. Enquanto não eram vendidos, trabalhavam nas suas plantações de café, amendoim, arroz, milho. As acusações e protestos contra Nosolini não passaram de uma brisa aquando das suas nomeações para governador interino da Guiné. Uma delas era a do homicídio do capitão mercador francês Dumaige, seguida da sua prisão e absolvição. A anulação da indemnização não teve efeito, dado a marinha francesa ter confiscado várias toneladas de mercadorias de Nosolini, sob a ameaça do uso da força.

O combate ao tráfico de negreiros significou o fim da prosperidade mercantil da Guiné no início do século XIX. As reduzidas guarnições locais passaram a ser pagas em géneros, como panos e barras de ferro, remunerações cuja a modéstia e lentidão despertavam frequentes atos de indisciplina. O hábito de enviar degredados merece ser exemplificado pelo caso do capitão-mor Manuel Pinto Gouveia, nomeado em 1905 e acompanhado de uma guarnição de 150 criminosos.
Um rival e concorrente de Nosolini, o também negreiro Joaquim António de Matos, não soube reconverter-se a novas atividades com a abolição da escravatura. E os negócios não lhe correram bem, como quando a Royal Navy destruiu o seu estabelecimento na ilha das Galinhas e libertou os escravos, em 1842”.


O autor debruça-se sobre os assédios francês e britânico, prossegue com os confrontos entre português e autóctones e o papel exercido por Honório Pereira Barreto. São referenciados vários desastres, como Bolor (1878) e a derrota de 15 de janeiro de 1886, num afluente do Rio Grande de Buba. Trata-se de um período de enorme instabilidade, em que os residentes dentro de Bissau vivem na maior das inseguranças. Mas tentou-se a expansão militar, sempre com enormes dificuldades e assim se chegou à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. A narrativa destaca as campanhas do capitão Teixeira Pinto, as violências do seu braço direito, Abdul Indjai e entramos num capítulo sobre a modernização da economia. Extinta a escravatura, a agricultura e a exploração madeireira passaram a ser as principais riquezas da Guiné, alargou-se a relação dos produtos de exportação, chegou-se ao século XX com o comércio externo nas mãos de sete casas comerciais (três francesas, uma franco-britânica, uma alemã e uma belga, e uma única portuguesa). Somente 18% do comércio externo da Guiné era realizado com Portugal (isto de 1909 até 1913), o controlo português surgiu em 1927 com a criação da CUF.

O autor refere a questão das grandes carências, da divisão entre civilizados, assimilados e indígenas, o período de transformações trazidos por Sarmento Rodrigues. E procede a uma inflexão, dedica um capítulo às rebeldias guineenses e às respetivas operações ditas de pacificação que culminam com a rendição da ilha de Canhabaque em fevereiro de 1936.

Inevitavelmente que irá falar da Guiné no capítulo dedicado à Guerra Colonial, há poucas novidades: o início de guerra em janeiro de 1963, a Operação Tridente, a natureza dos armamentos das tropas portugueses e guineenses, a chegada dos técnicos cubanos em 1965, as tentativas de Spínola em reverter os avanços do PAIGC, as ofensivas diplomáticas de Amílcar Cabral, os desastres da Operação Mar Verde, como Sékou Touré se aproveitou desta operação para proceder a uma nova purga sangrenta na República de Conacri; e temos a questão cabo-verdiana como um dos motores do assassinato de Amílcar Cabral mas o autor não perde a oportunidade para referir outros hipotéticos responsáveis.

Faz perguntas:
“O que o Estado Novo tencionava ao ajudar membros do PAIGC a tomar o poder dentro do partido? Fazê-lo mudar de lado? Uma simples aliança temporária contra o inimigo comum? Quem sabe, enfraquecer e dividir o PAIGC, o que soa mais provável. Porém, a eliminação de Amílcar Cabral acabou por não dar em nada.
Uma vez decapitado, o PAIGC deixou crescer outra cabeça dirigente, como uma hidra, e os respetivos combatentes lutaram com a maior firmeza, ansiosos por vingar a morte do líder. O escândalo internacional perante a morte de um famoso e respeitado não foi de certeza uma vitória diplomática para Portugal. O crime não serviu de nada ao Estado Novo nem ao colonialismo português. Amílcar Cabral era um homem, mas nenhuma bala podia eliminar as suas ideias”
.

Trata-se, pois, de um livro de divulgação, dá-se como certos elementos altamente discutíveis e jamais comprovados, é mais uma obra a juntar aos extenso reportório de tantos outros títulos orientados pelo prazer de fazer histórias breves do Império Português.

Cerimónia em frente do Palácio do Governador, Bolama, década de 1930
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Notas do editor

Último poste da série de 16 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24762: Notas de leitura (1625): "Militar(es) Forçado(s), por Maximino R. Costa; edição de autor, 2017 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É um estudo rigoroso, bem datado, uma observação que cuida do mosaico étnico, das condições da luta pela independência, toma em consideração as sucessivas práticas do poder, visita a transição democrática em África para aquilatar o processo democrático formalmente encetado em 1991 mas que foi sujeito a inúmeros escolhos, interpreta o que há de completamente diáfano no chamado sentido do Estado, como se organiza o poder soberano do mando, e como permanece longínqua a distância entre as leis que se fabricam em Bissau e o quotidiano de quem vive agarrado à subsistência. Um estudo de leitura obrigatória, com bom trabalho de campo, oferece uma reflexão sobre os diferentes fatores que têm induzido a disfuncionalidade do Estado e do processo democrático na Guiné-Bissau, nada de moralização, factos são factos, os guineenses que ponderem sobre a revitalização da sociedade civil, a participação nas decisões de quem está longe dos jogos de Bissau, o tal caminho longe que deve ser feito para erradicar o narcotráfico, o fantasma tribal, as mil e uma manifestações da corrupção.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (1)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu "Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

O autor privilegia, no início do seu trabalho, a análise do processo de liberalização política encetado nos anos 1990, vai forçosamente a décadas atrás e enquadra com a evolução que ocorreu noutros países, regimes autocráticos que simularam ou com um certo grau de sinceridade aprovaram as instituições pluralistas, o respeito pela liberdade de expressão, a independência da justiça e a primazia do trabalho parlamentar. Quando Nino Vieira abriu caminho para as instituições pluralistas, fê-lo com uma pedra no sapato e com enormes resistências no seio do PAIGC. Quando este chegou ao poder em Bissau, em outubro de 1974, parece ter esquecido as advertências de Cabral para as armadilhas que potencialmente Bissau reservava; com a gula do poder, esqueceram-se questões medulares do mosaico étnico-cultural, que o autor elenca, vale a pena uma referência:
“No litoral registam-se as maiores densidades populacionais e congregam-se os povos de cultura animista que resistiram ao processo de islamização que vingou em toda a sub-região. Manjacos, Mancanhas, Felupes, Papéis ou Pepel, Baiotes, Bijagós e Balantas foram o grosso desta população de cultura animista. No litoral sul e no interior do país predominam, por ordem decrescente de importância populacional, Fulas, Mandingas, Beafadas e Nalus/Sossos, Jacancas e Saracolés. Há quem defenda hoje, como no tempo colonial, que o processo de islamização será rápido entre a população que ainda resiste animista. Pode ser que assim aconteça face a um proselitismo islâmico muito ativo, e é uma igreja católica que, pese a sua ação social valiosa, não parece em condições de travar o processo. Mas não se pode esquecer a ação das seitas evangélicas, especialmente as brasileiras, as da torna-viagem, intensamente prosélitas e com rituais e práticas que vão ao encontro do esoterismo das populações africanas”.

Não esquece as etnias transnacionais, são as que demograficamente mais pesam, que têm estreitas ligações com o Senegal, a Gâmbia e a Guiné-Conacri, e daí também um quadro de descentralização política, um verdadeiro tampão contra o Estado coeso. O PAIGC tentou infiltrar-se nas estruturas locais e perdeu, foram as estruturas locais que esvaziaram os comités e os representantes nomeados por Bissau foram desde muito cedo ostracizados. Igualmente a tentativa de modernização imposta não vingou. “A desorganização crescente do Estado, o processo de abertura política, que levou os políticos de volta às tabancas para disputarem intensamente o voto das zonas rurais, conduziu a uma reafirmação do poder tradicional que está bem consciente da importância que tem em tempos eleitorais. Assim se compreende a posição das autoridades administrativas que tanto escrevem documentos de reconhecimento ao poder tradicional, como aconteceu na investidura do novo régulo do Forreá, ou que, chamadas a intervir em chão Papel num conflito de direitos sucessórios, entregaram a sua resolução ao poder regular contra quem tinham sido chamados. Nestes momentos em que o Estado visita a tabanca não é raro que não consiga falar diretamente com o seu povo, nem ouvir o que ele diz, sem recorrer a um intérprete que domine a língua étnica e o crioulo”.


Assim se põe a questão da identidade nacional, ela existe ou não, é possível falar-se ou não de uma identidade guineense? O autor recorda que Amílcar Cabral contornou a questão adotando o princípio de que a nação se forjou na luta de libertação. Mas cedo surgiram clivagens e antagonismos internos, e o autor recorda aspetos nevrálgicos: “entre as etnias não abertas à modernização; entre as classes sociais em vias de formação”. Quando encaramos o conflito armado, era admissível tentar-se uma leitura de que havia uma resposta da Nação coesa contra invasores e opressores internos. O autor observa: “Vencido o opositor, as divergências emergem e começam a minar a unidade firmada nas trincheiras. Além disso a luta, porque é violenta, não é inclusiva e a vitória de uns sempre significou a derrota para outros. E essas são as etnias magoadas da Guiné: os Fulas no tempo colonial, os Balantas nos anos 1980 e os Mandingas nos anos mais recentes”. Como estamos a falar de Ciências Sociais, é apropriado que o autor também lance olhar sobre os escolhos à identidade nacional: “O guineense depara-se quotidianamente com a questão de múltiplas pertenças (comunitária, religiosa, étnica e política), o que, por um lado, coloca em questão a coesão nacional e, por outro, dificulta a governação e a gestão dos interesses nacionais, predominando a identificação, a autonomia e lógica étnica”.

E chegamos a um novo elemento do Estado: o “Tchon”. Nova dissertação histórica nos é apresentada pelo autor, o “Tchon” é o local de nascimento, onde vive a família, a etnia, tem um poder soberano. Do “Tchon” passamos para a fragilidade do Estado, e vem uma recordação datada de 10 de outubro de 2003 em que um jornal de Bissau alerta para as ruínas da Casa da Independência em Lugadjole: “A placa comemorativa da proclamação da independência já desapareceu. Onde foi parar? Ninguém sabe. É provável que o metal deste símbolo da liberdade já tenha sido fundido para fabricar algum objeto fútil, de uso vulgar. Triste reciclagem dos valores da independência!”. É brandido o espetro do narcotráfico e passamos para a sede real do poder que é pertença de militares e civis ligados por interesses patrimoniais e por outros níveis de solidariedade. “É este núcleo informal que detém, em última instância, a capacidade de terminar o exercício da força e da violência do Estado. Tudo tem de ser negociado. Nenhum ato de força do Governo é possível sem a sua concordância e não há poder interno capaz de se lhe impor”.

Nesta teia de constrangimentos, todas as instituições são abertamente frágeis, logo o desempenho e a eficácia da Justiça, o quadro da anormalidade é patente:
“Todos os dias são estabelecidas inúmeras relações jurídicas na Guiné, não se pode dizer que não recorram com normalidade e satisfação para os seus intervenientes. A maioria destas decorre, contudo, ao abrigo da personalização das relações, de contratos ritualizados que comprometem pelo nível de sanções de índole social e espiritual que decorrem do seu incumprimento. A desonra, a vergonha do indivíduo perante as suas relações sociais e o medo dos castigos provindos do mundo espiritual coagem, a quem a honra não obriga, ao cumprimento. Mas no mundo da ambivalência cultural que é a cidade de Bissau, onde as práticas e os povos se misturam, os conflitos são mais frequentes e as instâncias tradicionais, que auxiliariam à sua resolução de uma qualquer comunidade rural, não têm a máxima força. Assim sendo, tende a vigorar a lei do mais forte”.

Tudo é ténue, precário, dominado pelo princípio da anulação ou revogação. Acresce que tudo se promete para melhorar o bem-estar e tudo fica na mesma ou pior por causa das coligações precárias inter e intrapartidárias, é um poder de sátrapas, em que se multiplicam os ministros, secretários de Estado e secretários-gerais, lugares que dão acesso aos benefícios de função com o longo cortejo de chefes de gabinete, assessores e colaboradores, tudo inevitavelmente transformado em mecanismos de corrupção, onde o fantasma tribal não está ausente.

E temos por último a instabilidade política e militar, os ajustes de contas entre Nino Vieira com Carlos Gomes Júnior é um bom exemplo, o assassinato de Veríssimo Seabra só porque houve atraso no pagamento das Nações Unidas ao contingente de manutenção de paz na Libéria, tem-se permanentemente a sensação de que não há avanços seguros, que rapidamente se pode recuar até práticas selváticas ou cavernícolas.

E o autor seguidamente vai-nos dar uma poderosa reflexão sobre a elite política da Guiné-Bissau.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Esta História do mundo em 100 objetos ocupa-se, de uma maneira totalmente original, de abordar 100 objetos que nos conduzem numa viagem no tempo e no espaço, dando-nos a conhecer como a Humanidade moldou o mundo, desde a Pré-História a este emergente século XXI. Se começamos em África de há dois milhões de anos a ele regressamos no início do presente século para ver uma escultura patente no Museu Britânico feita de armas que nos falam da Guerra Fria, da luta de libertação, de choques interétnicos, da incapacidade dos países recém-independentes terem sabido reconciliarem-se e caminharem juntos, pacificamente, para uma via de progresso, de equidade e bem-estar.
Dos 100 objetos escolhemos o Trono de Armas como marcante de um projeto de reconciliação que fizesse retirar milhões de armas do meio familiar, fazer desaparecer as crianças-soldados, remover as minas, dando como contrapartida a todos aqueles que entravam neste projeto-paz e restituiam as armas, enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material de construção civil. Esta escultura feita de pedaços de armas forçosamente que nos perturba, de uma peça de destruição fez-se alegoricamente um trono, a tecnologia tem destes prodígios, de uma hora para a outra a fábrica de eletrodomésticos pode transformar-se numa construtora de armas sofisticadas. É o estupor desta fragilidade de que este trono também fala.

Um abraço do
Mário



Um registo da guerra que dá pelo nome de trono de armas, tragédia e triunfo humanos

Mário Beja Santos

Uma História do Mundo em 100 Objetos, por Neil MacGregor, Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014, é uma estimulante aventura em que os objetos ajudam a compreender a história mundial. Neil MacGregor usou da faculdade de Diretor do Museu Britânico para fazer palestras na BBC e dar à estampa esta admirável viagem encetada na Pré-História e que vem ao quase presente, permitindo ao leitor olhares sobre a hominização, o que aconteceu depois da Idade do Gelo, como tudo mudou com as primeiras cidades e estados, a alvorada da Ciência e da Literatura, os pensadores orientais, os construtores de impérios, os primeiros protocolos e formas de distinção, a ascensão das religiões mundiais… Um itinerário que nos leva até à sociedade de consumo, a emergência de guerras étnicas depois da descolonização, a importância que tem hoje o cartão de crédito e os mais prementes desafios energéticos.

Este Trono de Armas é inquietante e avassalador, é uma cadeira feita com partes de armas produzidas em todo o mundo e exportadas para África. Temos procurado muitas definições abrangentes para todo o século XX, é verdade que prepondera a ideia de que foi o século da mulher, mas não escapa a algumas interpretações a matança em massa que se praticou em duas guerras mundiais, nas purgas estalinistas, no Holocausto, nos arrasamentos nucleares, nos campos de morte do Camboja, nos massacres do Ruanda, é uma lista praticamente infindável. Este trono é um monumento a todas as vítimas da guerra civil moçambicana. Desapareceram os impérios, pareciam prosperar ideologias globais e afinal tudo caiu em disputas sangrentas. Faltou previsão aos dirigentes dos movimentos nacionalistas e mesmo aos líderes coloniais para com tempo criarem competência para as novas experiências governativas, EUA e URSS, os Aliados eram manifestamente indiferentes a este desafio de organização do Estado que gerasse soberania e fizesse calar as etnicidades exacerbadas. A guerra civil em Moçambique foi uma das mais sangrentas e parece que ainda não estancou.

As armas que dão forma a esta cadeira traçam a história do século XX moçambicano. As mais antigas, no espaldar, são duas velhas G3 portuguesas. A FRELIMO era apoiada pela URSS, e isso explica que todos os outros elementos da cadeira sejam armas desmembradas produzidas pelos comunistas: os braços são da AK-47 soviética, o assento de espingardas polacas e checas, e uma das pernas da frente é um cano de uma AKM norte-coreana. Como enfatiza Neil MacGregor: “Trata-se da Guerra Fria em forma de peça de mobiliário, o Bloco de Leste em ação, lutando pelo comunismo em África e em todo o mundo”. Em 1975, o novo Moçambique apresentava-se como um Estado marxista-leninista, em resposta, os rodesianos e os sul-africanos criaram e apoiaram um grupo oposicionista, a Renamo, com o intuito de destabilizar completamente o país, as primeiras décadas da independência moçambicana foram tempos de derrocada económica e sangrenta guerra civil. Isto para sublinhar que as armas do trono participaram na guerra civil: um milhão de mortos, milhões de refugiados e 300 mil órfãos de guerra. A paz só veio em 1992, mas embora a guerra tivesse acabado, havia armas por todo o lado. O maior desafio que se pôs a Moçambique foi a destruição de milhões de armas e refazer a vida dos antigos soldados e das suas famílias.

O Trono de Armas tornou-se um elemento inspirador neste processo de recuperação. Fez parte de um projeto de paz chamado “transformar armas em ferramentas”, e no qual as armas usadas pelos dois lados eram entregues em troca de amnistia e ferramentas úteis, como enxadas, máquinas de costura, bicicletas e material para telhados. Entregar as armas era um ato de verdadeira bravura por parte destes antigos combatentes e teve projeção em todo o país, pois ajudou a romper o apego pelas armas e pela cultura de violência que atingira Moçambique durante tantos anos. Desde o início do projeto, mais de 600 mil armas foram entregues e transformadas em algumas esculturas. Graça Machel patrocinou o projeto que tinha o objetivo de “retirar os instrumentos de morte das mãos dos jovens e dar-lhes uma oportunidade de desenvolverem uma vida produtiva”.

Este trono, patente no Museu Britânico, foi criado por um artista moçambicano de nome Kester. Escolheu fazer uma cadeira e chamou-lhe trono, são raras nas sociedades tradicionais africanas, estão reservadas aos chefes tribais, príncipes e reis. O peso alegórico é inequívoco: é um trono em que ninguém se vai sentar, não está destinado a uma realeza ou a um senhor do mando, é a expressão de um espírito do novo Moçambique, é um marco da reconciliação. Como escreve MacGregor, há algo de particularmente perturbador numa cadeira feita com armas concebidas especificamente para matar, mutilar, anular. Kester deu uma explicação: “Não fui afetado diretamente pela guerra civil, mas tenho dois parentes que perderam as pernas. Um pisou uma mina e perdeu a perna, e o outro, um primo, perdeu uma perna a lutar pela FRELIMO”.

Kester fez deste trono uma mensagem de esperança. “Dois canos de espingarda formam as costas da cadeira. Se olharmos com atenção parecem ter caras, dois orifícios de parafusos para os olhos e uma ranhura para a boca. Até parecem estar a sorrir". Foi um acidente visual que Kester aproveitou e decidiu incorporar na peça, negando às armas o seu propósito primário e dando à obra de arte um forte sentido: “Não esculpi o sorriso, faz parte da coronha da espingarda. Aproveitei os orifícios de parafuso e a ranhura onde se fixava a bandoleira. Escolhi as armas mais expressivas. No cimo podemos ver uma cara sorridente. E há outra cara sorridente: a outra coronha. Parecem estar a sorrir uma para a outra felizes para paz e liberdade que chegou”.

No seu todo, este original livro que nos conduz da África de há dois milhões de anos para a aurora do século XXI, dotado de uma escrita admirável e estimulante, é verdadeiramente uma História do mundo. Uma leitura imperdível, onde um Trono de Armas põe um antigo combatente, como eu, a pensar como devemos contribuir para recordar os horrores da guerra ao serviço da reconciliação dos homens, naquelas parcelas africanas onde combatemos.


Neil MacGregor
Imagens de cadeira feita com peças de armas, Maputo, Moçambique, peça no Museu Britânico
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)