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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3310: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Encontro em Bissau: o nosso homem de Missirá...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça... e o seu periquito de estimação.

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

Texto enviado em 19 de Setembro de 2007, pelo Torcato Mendonça , Fundão. Faz parte de um lote de escritos, a que ele deu o nome de Estórias do José, o seu alter ego. Por razões de conveniência editorial, parte destas estórias estão a ser publicadas sob a série Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1). Esta corresponde à nº 9 (Encontro com o homem de Missirá), das Estórias de José...

O Torcato Mendonça, juntamente com o Carlos Marques dos Santos, tem sido um dos incansáveis construtores do campo fortificado de Mansambo a alimentar o nosso blogue... Um especial Alfa Bravo para os dois: O Torcato, ou o José - já não sei muito bem - entrou na nossa Tabanca Grande pela mão do Carlos, tertuliano da primeira hora... Um e outro precisam agora de mais cuidados com a saúde. Alegra-me saber que os nossos dois amigos e camaradas estão bem e recomendam-se!...

2. Estórias de Mansambo > Encontro, em Bissau, com o homem de Missirá

por Torcato Mendonça Fim de Julho ou já início de Agosto [de 1968], eu e o Capitão Miliciano Vaz, do Xime (2), sentados a uma mesa do bar de Sta. Luzia, em Bissau, bebíamos algo matando a sede e desgastando, o mais possível, a passagem do tempo.

Íamos, dentro de breves dias, de férias.

Conversa trivial que não recordo. Talvez sobre fotografia. O Cap Vaz era excelente fotógrafo. Tive ocasião de o constatar quando a minha Companhia recebeu, da dele, o treino operacional. Fizemos várias operações juntos. De guerra não falávamos certamente, pois dessa, aos poucos, nos íamos tentando libertar.

Acalmávamos, assim, a ansiedade da partida próxima para a Metrópole. Se nessa altura soubéssemos as virtudes da água pú… De repente, aparece junto de nós um Alferes. Alto, aparência de recém-chegado à Guiné, cara de pouca barba, olhar por detrás de óculos de intelectual da época.

Disparou a pergunta, após o cumprimento:
- Estão na zona de Bambadinca?
- Estamos - respondeu o Capitão Vaz, convidando-o a sentar-se.

A conversa não foi longa. Ele ia para Bambadinca e queria informações. Gracejando, demos as informações possíveis. Ele agradeceu, despediu-se e saiu.

Olhamos um para o outro e nada dissemos. Volteamos os copos, pensando certamente nas nossas gentes lá no mato.

Quanto ao Alferes periquito, pareceu-me mais homem de secretária do que de combate.

Olhei para o Capitão e disse:
- Para onde irá? Creio que o Alferes do Pel Caç de Missirá/Finete acabou a comissão. Talvez o vá substituir. Está lá o Zacarias Saiegh.

Bom combatente, excelente condutor de homens, este guineense com sangue libanês era um Furriel Miliciano, nosso conhecido. Falei com ele várias vezes e fizemos operações juntos. Recordo uma na zona do Enxalé. Operação Gavião, juntamente com a 2338 e o Pel Caç Nat 53. Tratou-se da destruição Sinchã Camisa, Madina e Belel. As nossas tropas sofreram um morto, Tura Baldé, picador no Xime. O IN sofreu vários mortos confirmados. O pior, além das várias flagelações sofridas, foi os ataques de abelhas.
- Baguera, baguera!!! - era o grito a avisar a vinda dos terríveis insectos.

Com tecto baixo, não podia haver evacuações. Alguns militares estavam em perigo por alergia às picadas. Felizmente uma coluna auto, vinda do Enxalé, esperou-nos na zona de São Belchior. Assim foram transportados os feridos e os mais debilitados. Mais uma vez, no decurso desta operação, constatei a maneira de comandar e combater do Saiegh. Excelente (*).

Voltando a Bissau:

Passaram depressa os poucos dias e embarcámos para a Metrópole. Mais depressa me pareceram passar os dias de férias. A Bissau regressei e rapidamente fui para o mato.

Voltei a ver o tal Alferes. Estava em Missirá. Porte altivo, passada longa, meia verde por cima da calça camuflada, aspecto decidido. Não parecia o homem que encontrara em Bissau.

Falámos algumas vezes e fizemos operações juntos. Bom combatente, determinado a comandar os velhos militares do 52.

As aparências iludem.

Quase quarenta anos depois, volto a dele ouvir falar. Hoje, leio, e releio, o que ele escreve sobre a sua guerra e as leituras de então. Soube, agora, ter sido conhecido como Tigre de Missirá (3)...Oh Beja Santos, quem tal alcunha te deu lia Sandokan ou foi homenagem ao teu espírito e acção combativos? Os Espíritos do Cuor te protejam.

A minha Companhia acabou, tempos antes da chegada do Beja Santos a Missirá, com as idas ao Mato Cão e à margem direita da Geba. Concentrámo-nos mais com a intervenção e construção de Mansambo.

Sobre a margem esquerda, as populações do Nhabijões sempre jogaram com um pau de dois bicos, naquele tempo... Sabia-se e, se dúvidas hoje houverem, pergunte-se aos que ainda estão vivos. Será assunto a merecer outro tratamento. Claro que cambavam o rio e estavam bem informados.

Grande parte dos carregadores, da minha Companhia, na [Op] Lança Afiada (4) era balanta, dos Nhabijões. Contratados de propósito. Os Fulas não queriam. Mas eles foram. Caímos na primeira emboscada e ei-los, sem ordem de ninguém, a colocarem-se junto das armas cujas munições carregavam. Outros apontavam para certos locais… Bom treino recebido... das NT, não claro!

Relembro, tempos antes, uma ida minha lá. O velho chefe de aldeamento respondeu sempre em balanta, por dignidade, às questões por mim colocadas. Numa, se bem me lembro, dizia-me o intérprete:
- Ele diz : 'Se vem homem do mato e ele não deixa levar mantimentos ou avisa tropa, leva… Se tropa sabe, 'leva' também... Que fazias tu?
- Eu ? ...Bem...eu...

Eu parti cigarro com ele e…
______

(*) Nota do autor – O Zacarias Saiegh regressou a Bissau e continuou como militar. Mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos.

Era Capitão Comando do Exército Português, quando a Guiné se tornou independente. Acabou por ser fuzilado. A minha singela, mas sentida, homenagem a um Grande Combatente (5)
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. estórias já publicadas:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

12 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2960: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Eu, virgem, me confesso

(2) Cap Vaz, comandante da CART 1746 (1967/69) que será substituída, como unidade de quadrícula do Xime, pela CART 2520 (1969/1970), contemporânea da minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Há tempos o Humberto Reis fez-me vir à memória a imagem desses velhinhos da CART 1746 que lá estavam lá, no cais do Xime, com um grande lençol branco onde estava escrito: "O que custa mais são os primeiros 21 meses"... Justamente quando nós - CCAÇ 12 e outros periquitos desembarcámos da LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969)... Na mesma LDG, vinha a CART 2520 que veio substituir a CART 1746... (Gilberto Madaíl, uma conhecida figura pública ligada ao mundo do futebol, foi alferes milicianos nesta unidade).

(3) Sobre o Tigre de Missirá, vd. postes de:

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)

15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1076: O álbum das glórias (Beja Santos) (4): eu e o coronel Cunha Ribeiro, o nosso 'major eléctrico'

9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1161: O nosso Major Eléctrico, 2º comandante do BCAÇ 2852 (Beja Santos)

28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)

(...) O actual Coronel na reforma Ângelo Augusto da Cunha Ribeiro, que foi segundo comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), a partir de Setembro de 1969, altura em que substitui o major Viriato Amílcar Pires da Silva, transferido por motivos disciplinares, era um homem muito energético, hiperactivo, falador, conhecido, entre as NT, como o Major Eléctrico... Foi ele que deu o nome de guerra, Tigre de Missirá, ao Beja Santos (...).

(4) Total dos efectivos empregues (n=1291) na Op Lança Afiada, que decorreu durante 10 dias: a) Militares: 36 oficiais; 71 sargentos; 699 praças; b) Milícias: 106; c) Guias e carregadores 379. Comandante: Coronel Hélio Felgas.

Vd postes de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

(5) Sobre o malogrado Zacarias Saiegh:

Zacarias Saiegh, ex-Fur Mil do Pel Caç Nat 52, ainda no tempo do Beja Santos, e depois Alferes, Tenente e Capitão da 1ª Companhia de Comandos Africanos. Participou no 25 de Abril de 1974. Mas foi posteriormente executado, no seu país, em Portogole, a 18 Dezembro de 1978, quatro anos depois da independência, segundo informações recolhidas no livro Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros, de Manuel Amaro Bernardo, Ed. Prefácio, 2007.

De origem sírio-libanesa, já foi aqui evocado várias vezes, nomeadamente pelo Mário Beja Santos que com ele privou, em Missirá, a par do Torcato Mendonça, entre outros:

Vd. posts de:15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça

(...) O Zacarias Saiegh [da 1ª Companhia de Comandos Africanos] foi meu amigo. Era um homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar (...).

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852

(...) Segundo informação do Beja Santos, o Pel Caç Nat 52 esteve um ano sem alferes, sendo comandado por Zacarias Saiegh, então furriel miliciano, que mais tarde ingressou na 1ª Companhia de Comandos Africanos, aonde chegou ao posto de capitão. Comandou esta lendária companhia, depois da morte em combate do Capitão João Bacar Jaló, tendo sido fuzilado pelo PAIGC após a independência: vd post de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

(...) Saiegh na véspera, depois do jantar, dera-me um sinal de cortesia levando-se ao seu abrigo para bebermos um uísque. Olhando à volta do seu ambiente privado, vi frascos que me lembraram aqueles que se encontram nos laboratórios de biologia. Vendo-me intrigado, sopesando as palavras mas atirando-as a frio, esclareceu-me:
- São restos dos meus despojos. Aproveito sobretudo orelhas.

Aclarei a voz e fui cortante:
- Saiegh, ainda nada sei desta guerra, mas asseguro-lhe que a partir de hoje não haverá despojos humanos, nem relíquias nem troféus. Não trago ódios nem os vou despertar. Recordo-lhe que esta disposição é irrevogável.

Os olhos de Saiegh cuspiram fogo, mas ele conteve a dimensão da chama. Com o tempo, virei a saber que este descendente de sírio-libaneses também se movia por razões raciais, independentemente dos seus interesses económicos têm sido profundamente afectados pela luta de guerrilhas. O nosso conflito estava armado, mas passados estes anos todos reconheço que ele me deu uma colaboração exemplar, apagando-se progressivamente do mando e da decisão militar. Irei chorar amargamente no dia em que soube do seu fuzilamento (...).


16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(...) Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha? (...).

30 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2317: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (11): O fantasma de Infali Soncó

(...) O encontro com o Saiegh é muito agradável, tão agradável que vamos a pé pela estrada de Santa Luzia, onde nos despedimos prometendo eu uma visita a Fá, dentro de semanas. Tal nunca veio a acontecer, estou a despedir-me do Saiegh pela última vez, guardo o seu sorriso e a sinceridade da sua estima, tudo me vem à lembrança no dia em que soube do seu fuzilamento, oito anos depois (...)..

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2960: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Eu, virgem, me confesso

Foto > Confissão de O Virgem

Foto 2 > O Virgem Perdoado

Foto 3 > O Afasta-Tentações

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça, nio campo fortifivcado de Mansambo, como lhe chamava o PAIGC: uma outra faceta, brincalhona, brejeira, do nosso amigo e camarada que vive no Fundão...

Fotos, legendas e texto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.


1. Texto enviado em 19 de Novembro de 2007, pelo Torcato Mendonça , Fundão:


Caiu o Carmo e a Trindade. Logo hoje que aqui bem perto ainda estão nos ares restos da festança de ontem. A inauguração da recuperação da Igreja Matriz, com políticos, bispos, arcebispos e outros dignos membros da Igreja – disseram – me o nome mas, cabeça a minha..., foi-se (de ir, foice não).

Mas porque caiu o Carmo e Trindade? Porque o José viu o Poste e de pronto manifestou o seu desagrado ao Torcato: porco e foto minha lá metida. Eu, homem sério e sempre afastado do pecado carnal, exijo reparação. Lembra-me um texto e 3 fotos esquecidas no tempo. Vá pecador, com que então a frequentar lugares de pecado! Juro que não estou louco. Tenho é frio porque a casa demora a aquecer. Brincar, mesmo com a guerra não deve fazer grande mal. Outros tratam-na bem pior. Boa semana, bom trabalho e melhor saúde. Não sei se o anexo, pesado, vai levantar voo e aí chegar… tentemos! Um abraço,


2. Estórias de Mansambo (12) > EU, VIRGEM, ME CONFESSO!

Confirmo o título – Eu Virgem me Confesso – se o fui para lá, tal qual vim para cá. Por isso ilustro este breve texto com três fotos. Pode-se pois, confirmar a transformação sofrida.

Íamos a um bruxo. Afastávamos as tentações da carne, num ritual onde Baco era figura suprema. Depois de ingerirmos grandes e variadas quantidades de líquidos, ao bruxo nos confessávamos. Como por magia, éramos libertados do pecado carnal e aparecia uma auréola. Vide fotos. As asas surgiam, também por magia claro, ao segundo ou terceiro afastamento das tentações. Assim éramos libertados do pecado…

- Estas fotos estão no meu álbum. Creio terem sido tiradas num abrigo, em Mansambo, junto às camas dos Furriéis Rodrigues e Sérgio. Talvez o fotógrafo tenha sido o Rei, apesar dele aparecer noutra foto. Foram tratadas agora, para esta mensagem.

Na nossa Companhia, oficiais, sargentos e praças, dormiam, sem privilégios, nos respectivos abrigos. Excepto o Comandante (zona do comando) e Serviços como secretaria, cripto, etc. tinham abrigos separados dos Grupos de Combate, só por questões funcionais.

A alimentação era igual para todos. Havia um bar/refeitório e sala de convívio, para sargentos e oficiais, junto à zona do comando. Cada abrigo tinha um espaço, rodeado por bidões, a sala, que servia para a convivência e os mais diversos afazeres de todos, mas aqui, principalmente para os soldados. Era uma questão de formação (instrução), disciplina e espírito de corpo, ou convivência salutar com a disciplina aceite onde cada um, sabia quem era naquele buraco.

Antes, em Fá, a situação era outra. Instalações – edifícios normais de uma antiga Instalação Agronómica do Eng. Amílcar Cabral – muito melhores e, principalmente, um Comandante a pensar como era hábito. Oficiais e sargentos de um lado, praças do outro. Instalações, alimentação e não só eram diferentes. Em Mansambo aos poucos as diferenças esbateram-se.

Há fotos aéreas, já diferentes do aquartelamento do meu tempo, que mostram aquele quadrado, de cem por cem metros, oito abrigos e mais outros dois ou três para serviços e ao fundo, a velha tabanca.

Leio, em certos escritos situações que não as vivi assim. Miliciano era miliciano, as diferenças eram poucas na [CART]2339. Assunto diferente, sobre o qual quero opinar, depois de ouvir outras pessoas.

Voltando ao assunto:

Um simples e belo texto, vem trazer à colacção um tema interessante, a merecer, por nós, reflexão e tratamento. O sexo em tempo de guerra.

(As fotos são brincadeira, nota introdutória ou homenagem, a todas as virgens diurnas e profissionais do sexo depois do sol se esconder… por vezes, a pressa ou a necessidade, não cumpre ciclo de sol ou lua…)

Já aqui levantado, o tema… o tema, porque o falo, esse, cada vez mais se abaixa. Talvez as palavras, de Pombal enviadas, tenham sido o clique, não a levantar o porro, a tanto não seriam capazes e o autor talvez, para isso, pastilha azul a outros receite mas, ao menos abriu as memórias de doces, leitosas e belas recordações. Em baixo ou em cima, recordar é viver e, se hoje tantos, a tanto não iriam, vão, ao menos na recordação e porque não, na tentação. Vale a pena tentar ou, talvez, mais valha a pena o tema tratar. Não com a ligeireza que agora o faço, mas descomprime por terapia. Necessário será tratar o sexo em tempo de guerra e a sua importância para as tropas.

Não digo heroína ou estátua a madame de bordel. Prefiro, se possível contribuir para que sejam tratadas com respeito. Eram profissionais, bastante falta, a muitos, faziam. A Helena… oh triste memória… oh degradação do efeito dos tempos…eu e a malta que quando havia ronco, íamos a Bafatá, procurávamos a doce, pensava eu até hoje, Ana Maria. Erro meu. Falsa recordação. Talvez fosse Helena, por confusão minha. Se duas eram, contemporâneas foram. Apresentavam sempre virgens ou inexperientes donzelas em ébano talhadas. Mas, em Bafatá, havia nome de mulher que não esqueço – Solemato – talvez a ablação dos lábios e clítoris tenham sido mal concretizados. Bendito cirurgião. Eu, ainda hoje, por doce recordação te lanço a minha bênção, com os poderes que o bruxo, protegido de Baco, outrora me ofereceu e julgo, ainda estar em período de validade.

Tanto tempo, tanto tempo… a Bafatá fomos proibidos de ir, em caso de ronco… as senhoras sentiam-se mal na piscina. Entravamos nós saíam elas…e no cinema…onde nunca fui, preferia o acto á visão, houve problema… mas nós só queríamos beber… e como jovens…enfim…algo mais.

Posteriormente, quando à dita cidade íamos era em rápida fuga – passando pelas tais casas e, após o acto, passávamos ao repasto na Transmontana. Tudo rápido.

Vidas agitadas, a viverem furiosamente aquele dia…a viagem em asfalto até Bambadinca…depois, chiava mais fino, na picada até ao conforto do resort em Mansambo e o Spa …onde rapidamente as forças nos eram recuperadas.

Bolas…

O aquartelamento tinha péssimas condições de vida. Eu contarei a construção de tudo aquilo. Pior para os que primeiro foram – 4º e depois o 1º – Grupos. Nós, 2º Grupo, fomos depois… eu contarei um dia.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste anterior desta série > 12 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2527: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Na Bor, Rio Geba abaixo, com o Alferes Carvalho num caixão de pinho...

Guiné >Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça (Alentejano, vive hoje no Fundão).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > c. 1969 > O cais do Xime, no Rio Geba, por onde passavam milhares de homens e toneladas de material para os aquartelamentos do chão fula, Bafatá e Gabu.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Rio Geba nas proximidades do Xime


Guiné > Bissau > Cais > c. 1969 > Cais onde acostavam os navios da Marinha: neste caso, vê-se em primeiro plano a LDG 105 que ia frequentemente ao Xime, transportando homens e materiais para a zona leste.

Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Rio Geba > A caminho de Bissau > 1968 ou 1969 > O Fur Mil Carlos Marques dos Santos, da CART 2339, Mansambo, 1968/69, num dos típicos barcos civis de transporte de pessoal e de mercadoria. Estes barcos (alguns ligados a empresas comerciais, como a Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF) tinha, como principal cliente a Manutenção Militar.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Estórias de Mansambo > O Último Encontro com o Alferes Carvalho, a bordo da BOR, Rio Geba abaixo (1)

Zape, zape, zape, num barulho sincronizado das pás e do motor do barco, Geba abaixo, até Bissau. Encostado à carga, cigarro na boca, mão no bolso afagando nervosamente a pistola, a tristeza do momento a apertar o peito. Branco e negro, vida e morte, a louca dicotomia do matar ou morrer numa guerra que não era a dele, nem fora do outro, seu camarada, agora ali deitado, em urna de chumbo coberta a madeira de bissilom ou pinho.

Tudo começou num Janeiro frio. Tentou recordar: o pensamento viajou até Vendas Novas, no Alentejo distante. No início desse mês, os Cadetes apresentaram-se em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, para tirarem a Especialidade de Atirador.

O primeiro dia de instrução trouxe uma série de surpresas: testes físicos, ausência de refeições – excepto uma carcaça e um tubo de leite condensado – , formação dos Cadetes, em equipas de cinco militares à sua escolha. A dele era formada pelo Carvalho, Sales, ele (Torcato), Zé Almodôvar e Fernandes.

O porquê, de um comportamento assim, devia-se ao Comandante da Instrução ser Capitão Comando. Assim sendo, tiveram uma instrução dura, com demasiados saltos e cambalhotas, ausência de horários e várias formas de os tentar endurecer ou melhor preparar para a guerra no Ultramar.

Terminada a instrução, os agora aspirantes espalharam-se pelos vários Quartéis. Passou o tempo e como era normal foram mobilizados. Encontraram-se novamente uns em Lamego, outros em Tancos. Nova instrução recebida pela maioria. No fim desta, voltaram aos quartéis da mobilização, formaram e prepararam Companhias para combater numa qualquer parcela do Império.

O Carvalho, o Almodôvar e ele juntaram-se em Évora. O primeiro na CART 2338, os outros dois na CART 2339. Como eram rapazes com sorte apontaram-lhes o caminho da Guiné. Foi ele e o Carvalho. O Almodôvar estoirou um pé e foi meses depois(2).

Fizeram operações juntos – Galo Corubal, Enxalé (Sinchã Camisa, Madina, Belel), zona de Nova Lamego (Canjadude) e outras. A amizade, fruto da convivência vinda desde Vendas Novas, era forte. Separaram-se. Ele ficou em na CART 2339. O Carvalho foi para Nova Lamego, com a CART 2338.

Um dia, as más notícias correm céleres, soube-se: vítima de mina antipessoal faleceu o Alferes Carvalho. Na malfadada estrada para Madina do Boé ficava o amigo. Menos de três meses após a chegada àquela terra. Soube agora no Blogue a data esquecida, 17 de Abril [ de 1968] e o local onde hoje repousa (2).

Mais um nome, a juntar a tantos vitimados naquela estrada. Toda a Companhia sentiu aquela morte. A primeira sofrida pelas duas Companhias gémeas.

Voltaram-se a encontrar-se, como e porquê? Por acaso ou porque se deviam despedir ainda. Tinha que ir a Bissau, ao Hospital Militar. A curiosidade e não só levou-o a fazer a viagem na BOR – um barco com pás na proa, verde-claro, e que se habituara a ver passar nas seguranças a Mato Cão.

Naquele dia, como era normal, transportava africanos, fazendo o barulho habitual com os seus risos e alegres conversas, vacas, galinhas e carga diversa. Tudo desorganizado, ao monte, pois só assim devia funcionar. Ele ia de camuflado, galões no bolso, olhar atento. Escolheu o local para a longa viagem, junto a uma parte de carga mais baixa, mas de modo a observar bem e a ter protecção nas costas. Pôs o saco no chão e antes de se sentar, levantou o oleado que cobria a carga. A visão fê-lo dar um passo atrás – caixões. Viu as placas e leu numa delas: Rogério Nunes de Carvalho, Alferes

O choque, o aperto no peito, a tristeza e raiva a subirem, o conflito interior, o desejo de nada ver. Acendeu um cigarro, ajeitou o saco com o pé, sentiu as granadas no bolso e nervosamente acariciou a pistola. A algazarra a diluir-se, o barulho do motor, o zape zape das pás, iam os dois, naquele barco, Geba abaixo. O pensamento, vagueou por tanto tempo que só se lembra da zona onde o Corubal entra no Geba. Mesmo aí porque um africano lhe disse algo e o tocou. Talvez pelo seu olhar, pela sua reacção, o homem recuou. Apercebeu-se disso e tentou sorrir-lhe. Mais um esgar que um sorriso. Foi o suficiente para sentir que o olhavam intrigados, talvez pensando: mais um soldado lixado com esta vida.

Despertou e olhou com mais atenção aquela gente. Quantos informadores iam ali, quantos agentes do inimigo ou mesmo combatentes? A viagem foi lenta, aborrecida. De quando em vez um gole no cantil, uma trinca num chocolate e outro cigarro acesso. Zape, zape, zape…

Finalmente o barulho aumenta, as gentes mexem-se e puxam as bagagens. Bissau está à vista. Levanta-se, arruma o cantil e outro material no saco, tira os galões do bolso e coloca-os no lugar. Destapa a urna, põe a mão sobre ela – adeus camarada. Tapa-o, ergue-se e faz-lhe continência. Sente o olhar daquela gente para o soldado, ora alferes. Olha-os. Talvez tenha tentado sorrir. Certamente a emoção não o deixou. Saltou para o cais e rumou a Santa Luzia.
- Adeus camarada. Hoje sei onde estás. Um dia vou ver-te a Pêga, Guarda e voltarei a encontrar-te. Desta vez sem zape, zape e menos ainda saudações militares.

Falamos em encontros. Conto-te mais um, mas diferente…
______________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriors desta série:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

(2) Vd. poste de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

(3) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

(...) Companhia de Artilharia 2338

Rogério Nunes de Carvalho, Alferes Miliciano de Artilharia, natural de Pêga / Guarda, inumado no cemitério de Pêga, tombou vítima do rebentamento de uma mina antipessoal na estrada do Cheche a Canjadude, em 17 de Abril de 1968; (...)

sábado, 15 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

Guiné > Região Leste > Bambadinca > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > O alfero Jorge Cabral, de pé, ao centro, o corpo coberto de mezinhos à prova de bala (e de mau olhado, de inveja, de impotência, de ciúme, etc.), com alguns dos homens do seu pelotão... mais o bode, ao fundo, meio envergonhado (e assinalado com um círculo a roxo), o verdadeiro herói desta estória de Mansambo, e que já fazia parte do inventário de Fá, em 1968, ao tempo que por que lá passou a CART 2339 e o Alf Mil Torcato José Mendonça...


Foto: © Jorge Cabral (2006). Direitos reservados




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Grupo de combate do Alf Mil Mendonça , antes de ser recambiado para Mansambo, paar o trabalho de pá e pica > O arriar da bandeira ... Tirando às patrulhas ao mato Cão, para montar segurança aos barcos da Gouveia que atravessavam o Geba Estreito (Xime-Bambadinca-Bafata), Fá Mandinga, antiga estação agronómica por onde passara, nos anos 50, o Engº Agrónomo Amílcar Cabral, licenciado pelo ISA- Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa, era uma verdadeira colónia de férias... (Esta história do Amílcar Cabral ter trabalho aqui está por comfirmar: parece não ser verdade, ele trabalhou,sim, com a esposa, portuguesa, e também agrónoma, em Pessubé, perto de Bissau).


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá (Mandinga) > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato José Mendonça... Em que pensaria ele ? E qual deles, o Torcato ou o José, está aqui representado na imagem ?


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato José Mendonça... Em que pensaria ? Ou qual deles, o Torcato ou o José, está aqui representado na imagem ? Diz o Torcato: "Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez. Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez, porque não podíamos fugir ao tema".


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > Imagem da alma do obus 10,5... A verdade é que as peças de artilharia tinham alma... Pleo menos, era o que diziam os arilheiros. Nunca fui bom nem em teologia nem artilharia, mas acredito que esses engenhos mortíferos tenham alma... Se não tivessem, os tugas não lhes tirariam fotografias para mandar para a família, cristã, a milhares de quilómetros, a norte... Há uma terceira teoria sobre isto: tal como o bode, o obus fazia parte da cultura falocrática do tuga... O obus era o caralho lusitano, orgulhosamente só mas desvatador, apontado ao resto d0 mundo...



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > Um dos famosos abrigos do "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamavam os guerrilheiros do PAIGC... Uma obra-prima não da engenharia militar, mas do génio do tuga, da tríade Sangue, Suor e Lágrimas...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 >
Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > Uma mensagem para os vindouros...

Fotos: ©
Torcato Mendonça (2006). Todos os direitos reservados.


Comentário de L.G.:

1. O Torcato (ou o José, nunca sei qual deles...) é um bom amigo, que nos lê, de fio a pavio, e nos telefona quando o seu sexto sentido o alerta para questões potencialmente fracturantes para a nossa Tabanca Grande (Pides, fuzilamentos dos comandos africanos, 25 de Abril., descolonização...), ou quando se entusiasma um pouco mais do que o coração lho permite, com a leitura de um post nosso...


O Torcato (ou o José), um deles, ou ambos, merece um prémio de assiduidade, dedicação, amizade e camaradagem... O Torcato (mas também o José) tem-nos mandado, além de muitas fotos e alguns filmes (estes do seu camarada Alf Mil Cardoso), belas estórias que, infelizmente, continuam na calha, a aguardar vez... Decididamente não é justo. Por isso, eu hoje pus, à boa maneira portuguesa, uma cunha ao editor para ele despachar a estória de Mansambo nº 10, que tem por figura principal... o bode de Fá Mandinga (sim, essa mesma, onde viveu o nosso Jorge Cabral, mas também um outro Cabral, o Amílcar, não menos famoso, muito antes da guerra; e que, para cúmulo, irá ser, a partir de finais de 1969 / princípios de 1970, a sede da 1ª Companhia dos Comandos Africanos, comandada pelo Capitão graduado João Bacar Jaló).

2. Entretanto, deixo-vos aqui o mail que ontem, à noite, o Torcato teve a gentileza de mandar aos editores do blogue:
Ora até que enfim tive um palpite certeiro. Aí está o DVD [do filme 'As Duas Faces da Guerra']. Até o sujeito da aldeola por detrás do sol-posto, se tiver electricidade, bateria no portátil, ou souber subtrair energia àquelas ventoinhas horrorosas que enxameiam os cumes das serras, vai ver como se fosse gente de cidade… haja deus…

Acabei de ler o J. Cabral e comentei: 'Maravilha'!… Espero que o Beja leia e que se cuide: parece que os Tigres, mais ainda se tiverem risca sim risca não, a bênção ou o mezinho de um Soncó, estão no catálogo dos bichos a extinguir…

Tá um frio do caraças[, no Fundão]. A lenha não veio e o ar condicionado não derruba tanto frio.

Bom fim de semana e um abraço para vocês do, Tocato Mendonça


3. Estórias de Mansambo (9) > O bode
por Torcato [José] Mendonça

Final de tarde, o toque combinado da campaínha e aí está o José. Conversa trivial, sobre a eterna crise, a política, um livro que estava a ler. De repente dispara:
-Vou contar-te mais uma estória, dando continuidade às anteriores (1). Antes, por razões que não quero focar agora, digo-te que não morria de amores pela Administração Colonial. Haviam excepções. Poderemos falar nisso, estabelecendo as diferenças, se abordarmos os Temas – História e Lendas da Guiné. Poderemos mesmo falar da Canção de Cherno Rachide. Ficará para depois.

Quando ainda estava em
, fazíamos com regularidade seguranças ao Mato Cão. No regresso, de uma delas, tinha uma mensagem rádio do batalhão á espera: Queira apresentar-se Bambadinca, para seguir hoje Mansambo.

De lá, tínhamos nós vindo... um banho, engolir e beber algo, preparar o indispensável, deixar todo o restante emalado em Fá e partir. Íamos abandonar um óptimo aquartelamento. Tinha sido uma antiga Estação Agronómica de Amílcar Cabral. Hoje restavam os edifícios, o guarda Marinho (um mandinga dependente da Administração), a recordação nos mais velhos, do Engenheiro Cabral e os restos de alguma agricultura. Deixávamos Fá com desgosto. Chegara a nossa hora de partida. Éramos o terceiro grupo a ir para a construção do novo aquartelamento e as ordens cumprem-se…

Todos a preparem o vário material, a confusão própria, o tempo a escassear… finalmente as vituras a roncarem… o olhar triste a percorrer Fá e a ordem: Tudo pronto, segue.

Ainda não se iniciara a marcha, surge um grito:
- Pára, pára…os cabritos!
- Quais cabritos ? - grito eu…
- Os da Páscoa - respondem-me.
- Depressa, apanha isso depressa.

Eram dois ou três cabritos comprados, tempos antes, para serem comidos pela Grupo, à boa tradição nortenha, pela Páscoa. Só que o Capitão achou melhor dar atum nesse dia. Tristeza que, por motivos estomacais e de tensão arterial, prefiro não recordar.

Passa o tempo e finalmente, berrando como se os fossem capar, aparecem os bichos:
- Depressa - grito eu. - Este também? Tudo, depressa… está a sair!

Viagem curta e rápida até Bambadinca, troca de coluna e, já com o sol a preparar a descida, nova viagem até ao novo destino.

Chegada tardia, a tentar a distribuição possível pelas novas instalações e esperar o dia seguinte. Lá nos espalhamos, da maneira possível, uns nas tabancas, outros nos improvisados abrigos. Era o início de uma vida semi-enterrado em vida. Não havia luz. Abria-se um buraco no chão, enterrava-se uma garrafa grande de cerveja, cheia de petróleo e com uma torcida, a sair da tampa (carica) previamente furada, à qual se puxava fogo. O resultado era uma luz trémula, mal cheirosa e a lançar figuras fantasmagóricas à volta. Como à noite nada se fazia, divertia-me com as ditas figuras e provocava o aparecimento de outras.

Loucura? Não! Sobrevivência! Vivia-se…em precárias condições até estarem construídos os abrigos caserna. Duro, muito duro viver assim.

Passados, talvez dois dias após a nossa chegada foi recebida uma mensagem rádio. O Alf Cardoso tentou compreender e achou melhor passar-ma. Dizia o rádio, vindo do Batalhão 1904, mais ou menos isto:
- Devolva urgente próxima coluna bode levado abusivamente de Fá.

O Cardoso, 2º Comandante, dizia-me:
- O que é isso, um bode… um bode?
- Sei lá  - digo eu.

De repente fez-se luz…os cabritos da Páscoa…já os terão comido? Não houve tempo. O bode é o macho da cabra, o cabrito grande, o cabrão, o chibo adulto. Chamei o Furriel Rei, era o desenrasca tudo, mostrei-lhe a mensagem e ele saiu disparado. Pouco tempo depois aí estava ele, o bode, com corda ao pescoço, berrando. Tinha porte altivo, pelo negro e lustroso, cornos e barbichas curtas. Bonito o bicho. Certamente a envergonhar o dono, como representante das respectivas espécies, no mundo animal.
- É este? Quem é o dono? - Ninguém sabia. Fui eu que dei a ordem:
- Vem tudo ?
- Veio!

Ora o bicho era de um negócio entre o Marinho e alguém da Administração. Ou seja, era o cobridor das cabras na Tabanca de Fá Mandinga.
- Amanhã vamos ao Batalhão e eu trato disso.

E assim foi. Chegados ao Batalhão falei com o Tenente-coronel Branco e esclareci o assunto. Creio que entregaram o animal ao representante colonial.

Resolvido o assunto…em parte…pois ficaram contas pendentes. São outras estórias…O bode certamente voltou a cobrir cabras.

Muito tempo depois, o Capitão Neves e o Tenente-coronel Pimentel Bastos (2), após o ataque a Bambadinca (3), talvez tenham sentido a “bondade” da Administração, na apreciação à actuação deles e das NT, a esse ataque… Os pendentes…os pendentes!

Vamos beber um café e conto-te outra… Em Setembro de 68, sofremos um brutal ataque à fonte de Mansambo. Sofremos baixas. Uma delas, a do protagonista da estória que te conto.

Torcato Mendonça
(ex-Alf Mil da CART 2339,
Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post desta série:

28 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos


(2) Cap Neves, comandante da CCS / BCAÇ 2852; ten cor Pimentel Bastos, o Pimbas, foi o 1º comandante do BCAÇ 2852 (1968/70), que veio substituir o BART 1904 (1967/68).

Ambos serão substituídos por ordens de Spínola, após o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969. Sobre este ataque do PAIGC, vd.post de 25 de Maio de 2007 >
Guiné 63/74 - P1786: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (47): Finete já está a arder ? Ou o ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1969

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

Fundão > 27 de Janeiro de 2007 > "Amigo e camarada Torcato: devo ir aí à tua terra adoptiva, amanhã, de manhã... Se tiver tempo, apito-te"...

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Mais uma estória do José, um alter ego do Torcato Mendonça, aqui reproduzida na série Estórias de Mansambo(1):

Amigos Mais Velhos

Lembrei-me, agora, de algo que me aconteceu nessas férias [, em Agosto de 1967].

É a recordação, o aviso e a revolta, de um homem, atrevo a chamar-lhe sábio. Não! Isso não, era um homem culto, isso sim! Os sábios vivem nas recordações oníricas e esta é, ainda hoje, bem real.

Sempre gostei de conviver com amigos mais velhos do que eu. Neste caso concreto, o meu amigo teria trinta e muitos anos mais do que eu.

Geralmente conversávamos à volta da mesa do café, eu, ele e um seu colega. Ficamos amigos os três. Era uma pessoa especial pela maneira cativante como falava, pelos mais variados temas que abordava e pelo modo, didáctico para mim, como respondia ás questões por mim colocadas.

Falava de literatura, música, fotografia e dos mais variados temas da vida. Uma vez falou-me longamente de vela… como veria ele hoje a America´s Cup…e as transformações operadas nos veleiros? Falta uma, o ponto de partida do nosso conhecimento, o xadrez!

Passado tempo, não quanto, certamente um ou dois anos, tive que partir e esses encontros foram interrompidos.

Reencontramo-nos numas férias curtas, talvez num fim-de-semana alargado, já eu tinha largos meses de vida militar. Falamos da tropa, do que se estava a passar com a juventude, com o País. Ele não via com bons olhos o Império. Opinião diferente tinha o colega. Não era hábito mas deu-me um conselho: tenha cuidado amigo, tenha cuidado pois tem que continuar a sua vida e ela nada tem a ver com militares.

Encontramo-nos ainda algumas vezes antes da minha mobilização. Falávamos, mais ele do que eu, sobre vários assuntos mas a vida militar estava muito presente, talvez demais, nas nossas conversas.

Antes do Natal de 67 disse-lhe:
- Vou para a Guiné.
- Encare as situações com calma – foi a resposta. - Você está um pouco diferente.

Meses depois, em Agosto de 68, vim passar férias e encontramo-nos num final de tarde. A alegria, o abraço com um apertar de mãos nos ombros. De repente olhou para mim e disse-me:
- Tire lá os óculos.

Eu tirei os usuais, na altura, Ray-Ban. Olhou-me, franziu a testa, deu um passo atrás e, pela primeira vez ouvi sair-lhe um palavrão:
- Filho de puta, o que é que lhe fizeram, onde está o rapaz que eu conheci há tão pouco tempo? Você está totalmente transformado, endurecido, diferente. Disse-lhe para ter cuidado.

Respondi-lhe:
- Aquilo é difícil, nada tem a ver com a vida normal. É uma aberração e nós somos forçados, para sobreviver – tanto mais que somos graduados e temos responsabilidades sobre outros – a entrar naquele jogo… aos poucos, sem dar por isso, somos mais um igual a tantos.

Falámos longamente nesse dia e mais umas duas ou três vezes.

Regressei à Guiné. Um dia voltei em definitivo. De quando em vez conversávamos… jogar xadrez não, faltava-me a concentração… tentava adaptar-me à vida normal ou civil… não era fácil…

Estivemos, talvez um ano ou dois sem nos vermos. Ele reformou-se e vivia junto de uma filha ou filho.

O acaso juntou-nos em Lisboa no meu local de trabalho – antigo local de trabalho dele – almoçámos juntos e falámos demoradamente.
- Os olhos não são os mesmos mas vão lá, disse-me na despedida.

Nunca mais nos encontrámos.

Enfim tempo idos, sem possibilidade de voltarmos a conversar. Ele e o amigo, pela lógica da vida, descansam em paz. Ficam-me as recordações e a saudade.

Continuamos noutro dia. Logo apareço por cá e voltamos a falar…

Torcato Mendonça
(ex-Alf Mil da CART 2339,
Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)
________________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, no grupo dos quais se integrava o Paulo Raposo, que viria a ser mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/69).

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, de 1 de Setembro de 2007:

Estimáveis Camaradas:

Segue um anexo com 48 páginas [Estórias do José - Parte I] (1). As fotos são das Foto Falantes que tem o nosso Camarada Luís Graça. Paro um bocado, por isso o envio triplo. Estas estórias já tinham sido enviadas, em parte. Acrescentei outras e índice.

Chegado Setembro, espero voar seguindo o voo das aves e rumar a Sul… espero ser capaz. A idade e não só… Façam dessas palavras juntas o que entenderem.

Boa saúde, bom trabalho e recebam um forte abraço do,
Torcato Mendonça

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(...) "Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez. Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez porque não podíamos fugir ao tema" (...) (TM)

MILITAR, NÃO! por Torcato Mendonça (1)

Olhem para mim com ódio… cabeça levantada… bate o pé com força… força… levanta os joelhos… isso… mais, mais… braço à altura do ombro… mão fechada… o punho. porra…encosta a arma ao peito… isso, isso… está fria… não está… não há frio…!

E marcha e marcham os Cadetes, ainda não autómatos mas a serem torneados, despersonalizados, humilhados. Marcham na ordem unida. Batem os pés com força no chão e, com força redobrada, à voz de olhar, à direita ou à esquerda, para encarar o Capitão-Comando. Com ódio, com desprezo ou indiferença? Ainda conseguem achá-lo um ser deformado. Um Capitão de camuflado, emblemas no peito - Comandos – preso no ombro… olhar vesgo… ou tique nervoso?

Certo é que quer, ou querem, levar aqueles jovens ao desespero e à ausência de vontade própria! Certo é que quer, ou querem, transformá-los em autómatos, em máquinas, em hipotéticos condutores de homens para, no futuro, servirem numa qualquer Colónia, onde serão cabeça de grupo de carne para canhão.

Que raio de instrução e de especialidade. Atirador de Artilharia. Logo no primeiro dia de instrução, a caminhada, a sede, a fome, a noite fria, de Janeiro, em pleno Alentejo. Urinar nas mãos aquece e fê-lo.

Noite longa, não dormida e por fim o alvor na madrugada gelada. O Comandante de instrução, tronco nu, fazia a barba. Louco!? Os Cadetes olhavam e sorriam. É o Capitão. Baixo, calças de camuflado, tronco seco de carnes. Seminu ficava mais pequeno. Os emblemas e crachás, no peito e ombro e o dólmen camuflado, tornavam-no mais alto.

A dureza de uma instrução diferente tinha começado. Equipas de cinco, sentido com punhos cerrados, descansar com pernas direitas, olhar para o alto e mãos atrás das costas, marcha com arma cruzada no peito. Mas que é isto? Não há horas para nada. Só para estar pronto – já!

Aos poucos foram amolecendo, perdendo a vontade de resistir e simultaneamente aumentando os índices na aplicação, no empenho da instrução. Aos poucos, o Capitão e alguns instrutores iam conseguindo atingir o objectivo. Temos autómatos!

Marchem… olhem para mim com ódio… bate o pé com força… salta… rasteja...rabo em baixo… rápido… cambalhota… a arma… não larga… faz parte do corpo… corre… corre no pórtico… salta o galho… fácil… não doi…desce a corda… as mãos estão boas…!

Eram talvez sessenta. Terminaram cinquenta? Tantos!?

Espalharam-se Aspirantes por vários Quartéis do País e a vida militar continuou…

Um dia, mais de trinta anos depois voltou a ver o Capitão Comando. Vestia à civil, o mesmo tique na cara, olhar baço e amarrotado… Subira na hierarquia militar, tinha o posto de General e era Presidente da Liga de Combatentes.

Como sócio da Liga convidaram-no a vir a este encontro. Missa, visita ao melhorado talhão dos Combatentes e almoço de trabalho. O habitual. Foi. Entrou no Largo, viu aquele ajuntamento, certamente de antigos Combatentes. No meio o General, a conversar… mas tinha o mesmo tique…ou era vesgo?

De repente deixou de o ver. Já não era civil nem General e ele já não estava no Largo da Igreja. De repente sentiu-se na Parada de Vendas Novas. Lá estava o Capitão Comando: - Olha para mim com ódio… salta… força…

Sentiu marteladas na cabeça. Olhou e disse:
- Safa! Voltou as costas e rapidamente afastou-se. Não! MILITAR, NÃO!

Não é ficção. É realidade. Em Janeiro de 66, um grupo de cerca de noventa Cadetes e cerca de duzentos a trezentos Instruendos do Curso de Sargentos Milicianos, entraram na Escola Prática de Artilharia – Vendas Novas, para tirarem as especialidades de atirador, IOL e PCT.

O Comandante de Instrução era Capitão Comando, mais direccionado para os atiradores. Hoje é General, certamente na reforma, e foi Presidente da Liga de Combatentes.

Apesar da dureza da instrução ou talvez por isso, quase todos os graduados da minha Companhia passaram por lá, acho-a determinante no desempenho que tivemos na Guiné.

Este texto, com as devidas adaptações, passou como Crónica numa Rádio. Terminava, como todas as minhas crónicas:
- Bom dia e façam o favor de ser felizes.

Pretendia ser, uma resposta a pseudo debate havido nessa rádio, onde os antigos Combatentes não eram correctamente tratados.Quando da gravação pediram-me o escrito e ofereci-o. Por isso, este texto foi escrito recorrendo à memória e tentando reproduzir essa crónica.

Olha, salto um pouco no tempo e digo-te: a guerra pode deixar-nos também, indirectamente, marcas.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > Candamã > CART 2339> 1968 > O Alf Mil Torcato Mendonça

Texto e foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça;:
Caro Luis. Julgava-te de férias. Porventura estás e o post do Poilão foi inserido por algum dos nossos Camaradas Co- Editores. Pelo sim pelo não espalhei os endereços. Vão navegando ciber espaço fora e levem a carta, não a Garcia… mas ao Luis, ao Virgínio, ao Carlos ou a quem a apanhar.

Efectivamente estas árvores tinham um significado especial para os guineenses. Qual? Não me lembro, mas envidarei esforços a sua procura!

Porque escrevo?! Porque os poilões abrigavam gentes, protegiam-nas, tinham eventualmente algo de sagrado e, isso afirmo e relato no texto que te envio, recebiam nos seus braços ou ramos as descargas da fúria dos Céus. Se tiveres tempo passa os olhos… digo-te, caro amigo, nunca tinha ouvido tamanho urro nesse encontro e nessa explosão de afectos. Nunca mais montei, em vida minha, um fornilho.Nem montarei…fornilhos, off course … o resto, bem.

Este texto está nas Estórias do José... Aquele abraço forte a um ou aos três e que em trovoadas tenham sempre um poilão, ou algo semelhante, a proteger – vos.

Um abraço


2. Estórias de Mansambo (7) > Eleições à vista, por Torcato Mendonça (Subtítulos do editor L.G.)

Com Setembro [de 1969 já bem lançado, sentia-se no ar um sentimento, um olhar diferente, um novo tema nas conversas, quiçá uma nova ou novas preocupações. Estávamos já no vigésimo mês de comissão. Fim quase á vista.

Recebi a ordem e não a esperava. As ordens cumprem-se. Os apetites, os nossos desejos, as nossas vontades, pouco ou nada têm a ver com as ordens recebidas. São-nos transmitidas, aceitamos e iremos, depois, transmiti-las a outros. Foi o que fiz. Reuni com o Grupo e disse:
-Amanhã vamos para Candamã. Preparem-se para estar, lá e em Afiá, cerca de um mês, ou acontece o mesmo da última vez que lá estivemos.

Na última vez, que para lá tínhamos ido, disseram-nos ser por poucos dias. Estivemos quase um mês. Foi demasiado duro. Falta de mantimentos, de roupa, de tudo que nos desse o mínimo de condições de vida. Ainda por cima estávamos em plena época de chuvas. Três breves episódios dessa estadia:

Salada de beldroegas, pu erva roubadas aos cabritos

A falta de tabaco e de tudo, levou-nos a quebrar regras. Um caçador de confiança e devidamente instruído, levou um bilhete ao Capitão Jerónimo, da 2405, em Galomaro. Dois dias depois aí estava ele, de volta, com tabaco L M e outros artigos. Festa e partilha do material recebido.

O Manuel, alentejano de Odemira, descobriu na pastagem dos cabritos uma erva parecida a beldroegas. Apanhou e veio mostrar-me. Os meus conhecimentos de botânica eram insuficientes. Reuniram-se dois ou três entendidos e sentenciaram:
- São beldroegas, pelo aspecto e sabor.

Perante isto declarei que os cabritos se lixassem e as ditas fossem em salada transformadas. Ao princípio eram três ou quatro a consumir o petisco. Depois, se não eram todos…lastimo. Salada para vários dias. Até que o vegetal se finou, os cabritos já tinham ficado sem pastagem naquela zona e, agora nós sem a deliciosa salada.

Spínola e o moral das tropas

Uma manhã sente-se o som de um helicóptero. A confusão habitual, ordens de: monta segurança, veste roupa que é o Spínola… depressa aterrou o aparelho… efectivamente, era o General e o séquito habitual.

Apresentei-me, calçado com botas sem meias, calções que tinham sido calças cubanas, T-shirt outrora branca e um quico regulamentar. Haja Deus. Ao menos o quico. Acompanhavam-me militares com fardamentos, cabelos e barbas a precisar de melhor atavio e tratamento. O Comandante–Chefe conhecia a malta do mato… conversa breve… devíamos ter ficado cá uma semana e já lá vai quase um mês… Bateu com o pengalim na bota, olhou para o major Bruno, fixou-me e disse: - O moral é baixo? Eu respondi: sapador.

Um festival de fogo de artifício

Uma vez chegados a Candamã e Afiá, fizemos uma exaustiva inspecção á defesa. Tinham havido ataques fortes, principalmente em 30 de Julho a Candamã. Isso originou, posteriormente, operações com êxito na destruição da base IN, pelos Paras do COP 7 e militares da 2339,CCaç 12, Pel Caç. Nativos.

Reforçamos pois a defesa. Na última vez, que lá estivemos, utilizamos e, deram bom resultado a repelir o IN aquando dos ataques, granadas iluminantes de morteiro 60. Singelo contributo aos heróis do 1º Grupo da 2339, que sustiveram os ataques.

Desta vez resolvemos montar seis fornilhos de disparo eléctrico, dispostos em leque, virados para a hipotética zona, de onde vinham os ataques. O material fora o trazido de Mansambo. Avisámos a população: toda aquela zona junto ao arame farpado, acrescentámos outras para disfarçar, está minada. Perigo relativo mas…

Talvez, na segunda semana de Outubro, recebi uma mensagem da Companhia. Dia, talvez 10 ou 11, soldados…. indicava quais… abandonam esse e serão rendidos por igual número idos deste. Motivo: participação na votação para as eleições a 13 do corrente...

Ainda me perguntaram porque não ia (só votei em 25 de Abril de 75) e o que haviam de fazer… votem, bebam uns copos em Bafatá e etc…

Chegado o dia, vieram uns e foram os votantes. Creio que no dia seguinte, estávamos em época de chuvas, levantou-se tremenda tempestade. Chuva, trovoada a merecer abrigo rápido. Fui para a tabanca dos géneros, enfermaria e mais o que fosse preciso. Estávamos a conversar, de repente ouviu-se um estrondo enorme. Parecia que o céu desabava e a terra abanava. Seguem-se sons menores e o grito – ataque. Fuga para valas e abrigos, ligeira confusão, gritos, dois ou três militares caídos no chão junto á árvore grande. Ao longe, correndo na nossa direcção, a gritar, vinha o furriel Rei e outros. Mau. Alto e para o ataque.

Que tinha acontecido? Uma descarga eléctrica, enviada pelo S. Pedro, bate na árvore – que protegia a cozinha, posto de sentinela, o meu refeitório e escritório, etc – faz ricochete, ou gera um campo eléctrico, destrói a antena horizontal do rádio, desce e, depois de o queimar, vai pelos fios accionando, em simultâneo, os seis fornilhos. Por isso aquele tremendo barulho. No abrigo só estavam granadas de RPG2 e outras munições não eléctricas. As da Bazuca 8,9 estavam noutro abrigo ou em Afiá. Sorte a nossa.

Ferragudo, o ladrão cded chispes de porco holandês

Mas o pior estava para vir. Tínhamos três homens meios grogues. Dois, depois de ligeiro tratamento, recuperaram. Havia, no entanto, um que estava meio desmaiado. Era o Ferragudo, cozinheiro na tropa, pescador no porto de Portimão. Felizmente tínhamos um homem, o Barros, habituado a desmaios daquele género. Rápido, depois de abanar o Ferragudo, pediu:
- Tragam o azeite e uma colher.

Aparece o azeite e o Barros despeja, três ou quatro colheres do dito, goela abaixo do Ferragudo. Este estrebucha, joga as mãos á garganta, revira os olhos e urra. Pede ajuda o Barros. Levantam o doente. É prontamente agarrado, apertado e sacudido pela cintura. De repente dá-se o milagre. Vomita desalmadamente o cozinheiro glutão. Talvez dois ou mais chispes de porco holandês. Pancada nas costas, água goela abaixo e dá-se a recuperação. Eu assistia. meio incrédulo, a toda aquela cena.

O Ferragudo, ainda meio atordoado olhava-me. Apesar da vontade de rir, olhei para ele e disse:
- És um ladrão, roubas com a tua gula os teus camaradas, vai haver porrada, desaparece, só voltas próximo do jantar. Não há feijão com chispe. É indigesto ou não é, algarvio da porra?

Foi-se o cozinheiro pescador, ou vice-versa. Porrada não houve. Nenhum militar teve qualquer castigo, posto na caderneta, devido a castigo por mim dado.

Rimos e gozámos durante uns dias. Distracções singelas. Viver naquelas condições era difícil. Á noite nos abrigos, por debaixo, do que nos servia de leito, se não tínhamos cuidado as rãs cantavam o seu Sole Mio, a água caía ora nos pés, ora noutro lado. Dormia-se…o tempo passava lentamente… e o Império esfarelava-se!

Saímos de Candamã a 24 de Outubro [de 1969 ] e não mais voltámos. Apesar das más condições, principalmente na época de chuvas, recordo aquela gente com saudade.
____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

sábado, 7 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (6): Matilde

Lisboa > Rio Tejo > Primavera de 2007 > Há 40 anos atrás havia navios que zarpavam, de manhã cedo, para a Guiné, carregados de homens com as suas armas... Podia ser num dia de chuva e vento como este... "Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais" (TM)....

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

1. Escreveu há dias o Virgínio Briote a seguinte nota, dirigida ao Torcato Mendonça:

Caro Torcato,
Não posso deixar de te felicitar pela tua escrita madura e consistente, e que muito enriqueceu o nosso blogue. É certo, tenho de confessar, que qualquer escrito sobre a guerra colonial, venha ele de um lustroso guerreiro do Império ou de um simples amanuense, me sensibiliza. Mas a maneira como tu vês aqueles tempos, toca-me de uma forma diferente. E é por este motivo que, ao ler o post 1900 (1), me lembrei de te escrever para te cumprimentar e te dizer que aprecio muito a humanidade da tua escrita. E desejo que continues, Torcato.
Um abraço,
vb


PS - Já leste 'Pami Na Dondo' do Mário Vicente? Se ainda não leste a pequena obra desse nosso camarada que andou pelo Cantanhez, escreve ao Mário, que certamente tem muito gosto em ta oferecer.
2. Comentário de L.G:

É com uma pontinha de orgulho que eu tenho vindo a a assitir, no nosso blogue, de há dois anos a esta parte, à emergência, senão de grandes talentos literários (a expressão é forte e pesada), pelo menos de vocações literárias, de gente com grande potencial para a escrita, que escreve bem, que nos surpreende, e nessa medida é já motivo de orgulho para todos nós, amigos e camaradas da Guiné.

Já temos, na nossa tertúlia (ou Tabanca Grande), gente com livros publicados, e gente com projectos editorais, mas o mais importante ainda é saber que temos gente que, contra todos os handicaps, sem diplomas, sem pergaminhos, sem pedigree, mas também sem complexos, com autenticidade, com garra, escreve e continua a escrever diariamente para o nosso blogue. O nosso Torcato é um deles.

O Virgínio (e todos vocês) vão ficar sensiblizados com mais esta estória de Mansambo. Vamos seguramente reconhecer as Matildes que passaram, de relance, pelas nossas vidas, e que não chegaram a ser as nossas bajudas, como as Mariemas (1), nem sequer os nossos efémeros amores de verão nem muito menos os grandes amores das nossas vidas (2)... Hoje temos tempo e sobretudo a imensa sabedoria de perguntar: Why ? Porquê ? Por que razão passámos tão longe e tão perto ? Por que é que pusémos as nossas vidas entre um parênteses recto, durante no mínimo três anos ? Que fique claro: não há nenhuma dívida a cobrar a ninguém... A haver ajustes de contas, é só connosco, com cada de um de nós, na sua intimidade... Também já é altura de pôr um ponto final no muro das lamentações: que nascemos no país errado, na época errada, de pais errados... Só nos resta assumir o que temos e somos... O resto é mesmo batota. (LG)

3. Estórias de Mansambo (6) > Matilde,

por Torcato Mendonça

Habituara-se a vê-la passar. Livros debaixo do braço, ar calmo, passo apressado. Sabia que ela regressava das explicações. Talvez para completar o 5º ano. Estávamos em meados dos anos sessenta. Ela resolvera retomar os estudos, ele fizera breve paragem nos dele. A dois ou três meses dos exames retomá-los-ia. Pensava …que ia fazer isso.

À noite, quando os seus afazeres de borga o permitiam, volteava pela praça. Às dez ou dez e meia, ela costumava passar. Não se cumprimentavam, não diziam nada. Um olhar, directo de quando em vez, mas breve, a parecer …por acaso. Olhar assim, a nada dizer, ou a dizer a ambos que talvez, mais tarde ou mais cedo se iriam encontrar.

O tempo passou rápido. O hábito desses encontros, de passagem e olhares breves, foi-se. Via-a raramente, se o encontro casual acontecia, olhava-a demorada e discretamente. Habituado a avançar sentia, desta vez, ser diferente e, por isso, comprometeria certamente as suas prioridades de então.

A época de exames chegou e ele adiou-os para o fim do verão ou para o ano seguinte. Os dela parecem ter corrido bem e continuou os estudos.

Vltou o acaso a aproximá-los novamente. Nas férias desse verão, os toldos na praia, tinham ficado próximo. Só a via ao fim de semana ou, de quando em vez, num fim de tarde. Era a praia das famílias, por época inteira. Em Setembro, a dele ia até ao Algarve. Não era a praia dele. Só os amigos o levavam lá. Mais ainda nesse verão, que estava ocupado por biscate de ocasião.

No fim do verão trilharam diferentes rumos. Ambos voltaram a estudar. Via-a raramente e sentia sempre a vontade de lhe falar. O destino – se há destino – não o quis. Ele acobardou-se, ou ela não deu abertura, ou ele sentiu que devia ir por outro caminho. Certo é que o desencontro aconteceu. Ficou só a saudade.

Ela estudou, empregou-se e iniciou outra vida. Ele estudou, pararam-lhe os estudos e despacharam-no para a vida militar.

Passaram dois, três anos? O destino ou o acaso juntou-os novamente. Ambos de férias, ela vinda de Lisboa, ele vindo de África. A um dia do regresso dele, o encontro à saída do café. Um inesperado frente a frente, o sobressalto em ambos, fundem o olhar e talvez ambos reconheçam a inevitabilidade de dizer algo. Sente o bater acelerado do seu coração. O dela!? Não sabe. Sai sem nada dizer. Foi andando, pensando… a horas do retorno a África… doze… quinze, o que dizer-lhe e porquê logo agora. A sua vida era difícil, tinha mulher não oficial, vivia em risco permanente como mercenário em guerras de outros. Em breve seria envolvido pelo cheiro e humidade daquela terra vermelha e ardente. Em breve, sentiria o perigo e o gozo que lhe dava o risco, o sentir a vida a esfumar-se e a voltar inteira. Liberto, ou só totalmente liberto, arriscava, gozava e assim viveria, em plenitude, aqueles breves mas frequentes momentos. Será que aquilo era viver? Certamente que não. Só assim, contudo, suportaria aquela vida imposta.

Parou, acendeu mais um cigarro e voltou para casa. Fazer a mala era preciso. A mãe ajudava-o. Sentia a tristeza no seu olhar e isso deprimia-o mais.

O pai chegou mais cedo, combinaram a saída, verificaram a hora de partida do avião, o tempo da passagem pelos Adidos, na Ajuda. Falaram tentando manter a naturalidade, o que tornava tudo ainda mais diferente e artificial. O jantar foi o possível… ouviu dizer à mãe: O menino comeu pouco. Ainda era menino…

Pediu licença ao pai e levantou-se. Já? Onde vais? Volto já, não demoro. Foi procurá-la. Sabia onde. Certamente estaria na festa da Padroeira lá da terra. Não se enganou. Viu-a com uns amigos. Olharam-se. Ela afastou-se, talvez à espera que ele lhe fosse finalmente falar. Ele ainda teve dúvidas. À velocidade da luz pensava, sim ou não. Avançou um pouco olhando-a, sentia o breve sorriso dela, ou era imaginação sua? Baixou o olhar, e afastou-se. No regresso a casa, talvez enganando-se a ele mesmo, pensou: É melhor assim. Ia descansar mais cedo e retornava mais liberto a África.

Salazar (em 1933) Fonte: Wikipédia

Recorda bem, ainda hoje, o regresso a Bissau. Nesse dia, em Lisboa o Ditador tombava da cadeira. Não soube. À chegada, sentindo o violento calor a subir do solo, um amigo perguntou-lhe:
- Então, o Velho?
- Qual velho?
- Não sabes? O tipo caiu e está mal.
- Não sei. - Olharam um para o outro e sorriram. Saíram da Gare e dirigiram-se a Bissau. Havia muito tempo de comissão a cumprir. E cumpriu.

A ela ainda a voltou a encontrar. Vidas totalmente diferentes, a seguirem caminhos diversos. Nesse dia, os olhares voltaram a cruzar-se e as cabeças baixaram. A vida afastara-os definitivamente.

Ele deixara-se de guerras, tinha mulher de hoje aqui e outra ali. Tentava dar rumo à vida. Esperava… Ela tinha vida normal partilhada com alguém.

Um dia deram-lhe a notícia. Devido a erro médico ou similar, ela partiu. Ficou chocado. Novamente a morte a atormentá-lo, logo ela.

Sentiu nunca a ter esquecido ou nem ele sabe. O peito aperta… Talvez os Deuses, num Olimpo qualquer, tenham a resposta.

Páro um pouco. Deixa-me beber um uísque… o café é fraco. Eu depois continuo, só um uísque… mas duplo por favor…
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1295: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Mariema, a minha bajuda...

(2) Vd. posts de:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 > 1968 > Fotos Falantes II > Os dois primeiros mortos do Grupo de Combate do Alf Mil Torcato Mendonça: o Bessa (46) e o Casadinho (45)...

Fotos: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 20 de Junho último:

Luis Graça: vou ser rápido porque isto é o despejar de um impulso, de uma revolta sentida, de um flash vindo, demasiado rápido, do passado ao presente. Talvez um Psi conseguisse dizer, melhor que eu, o porquê. Li a morte de um Camarada em Madina (1). Sei que não eram relatados os pormenores à família. Sei a frieza da comunicação da morte dada aos familiares. Mas… eu conto-te, Camarada, eu conto-te e anexo – para dares uma vista de olhos – um escrito, creio que já enviado, O Natal, onde relato OS MORTOS DO MEU GRUPO, OS MEUS MORTOS.

Paro em tentativa de calma, calma com respiração funda e passa um pouco. Depois do ataque, fui apanhar o Bessa, subi ao palanque danificado, olhei à volta certamente com ódio, com vontade de acertar contas... De repente vejo, à luz amarelada das lâmpadas, algo a baloiçar e brilhando. Fixo o objecto, vejo um bocado de fio e um crucifixo, aperto os dentes, como neste momento o volto a fazer, dou uma palmada naquilo e solto um palavrão em blasfémia sentida. Ajudam-me e embrulham-no e limpam-no com carinho, revolta e choro contido, no local. Os homens também choram, porra, mesmo por dentro, dói, dói!

Passados tempos, alguém do meu Grupo e talvez da terra dele, perguntou-me:
-A família recebeu as coisas mas não o fio e o crucifixo.

Não me lembro mas creio que houve uma resposta a tentar suavizar a situação... Não faltava só o fio… parte DELE não foi também recebido… Dizia-se áà família? Creio que era duro demais, nós sentimos demasiado aquela morte. Meses depois, quando da Op Lança Afiada, veio de héli o Comandante do PAIGC Braimadicô (2). Levei-o para o meu abrigo… pois ouvi logo o nome do Camarada morto, repetido por uns e por outros.

Respeitei os meus Homens e levei-o para outro lado. Eles também não esqueceram e, certamente não sabem perdoar. Hoje, trinta e oito anos depois é difícil. O que seria naquela altura. Sabes, penso que não se podia ou era preferível, esconder certos pormenores às famílias. Só se provocava mais sofrimento. Devia era haver uma postura mais humana por parte das Forças Armadas. Análise posterior com calma.

Queria ser mais breve, alonguei-me. Senti a falta de partilhar isto, com o meu Grupo, agora… recordarmos, reflectirmos. Mas eles merecem descansar, recordar ou não. Falar nisto é doloroso ainda HOJE.

Amigo, um abraço,
Torcato Mendonça

2. Estórias de Mansambo (5) > Natal, Ano Novo, dias normais

por Torcato Mendonça (3)

Os militares da CART 2339 só passaram um Natal na Guiné. Partimos, no Ana Mafalda em meados de Janeiro/68 e regressámos em Dezembro/69 no Uíge. Portanto só o Natal de 68 lá foi passado.

Espero que a memória me não atraiçoe e eu tenha arte e engenho para vos descrever tão faustosas festas. Ou seja, as Festas do Natal e Passagem do Ano de 1968/1969. Os Salões engalanaram-se; os Mestres Cozinheiros esmeraram-se e, digo mesmo, em salutar competição guardaram em segredo os menus; as Fardas de Gala foram engomadas…

E..., bom!... Não fantasiemos, pois a realidade era outra. Estávamos em Mansambo, na guerra estúpida e dura, não pertencíamos a grupo de privilégio, fantasia ou outro. Passámos por isso, o Natal e Ano Novo como muitos milhares de militares. Uns melhor outros pior por questões de afectos perdidos, por sentirem mais ou menos a falta das mulheres e filhos, das famílias e de quem gostavam.

Pessoalmente lastimo mas de pouco me lembro. Já estava acima da normalidade, chamemos-lhe assim, para sentir menos o Natal e mais a segurança. Tenho, nestes dias, pensado nisso e infelizmente deve ter sido assim. Socorro-me do Historial, de duas pequenas agendas e tento recordar.

É com esses auxiliares que vou relatar, o mais fielmente possível, aqueles dias.

Não posso dissociar o Natal do Ano Novo. Eram datas festivas, tempos com maior probabilidade de ataques do inimigo, necessidade de nos sentirmos mais ocupados. O ócio fazia-nos voar para outras paragens.

Havia, como é natural, uma maior quebra anímica. Por isso, todo esse período de tempo deveria ser ocupado com diversas tarefas. Seriam, contudo, preservados, o mais possível, os dias festivos.

Assim:

A 23 e 24 de Dezembro de 1968 houve uma Operação/patrulhamento à zona de Biro e Galoiel. Leve troca de tiros com o IN. Fuga deste, missão cumprida e regresso a Mansambo.

Véspera de Natal: os pensamentos longe, cada vez mais longe daquele lugar. Homens a pensarem nas mulheres e filhos, nas namoradas, nos pais e noutros familiares, nos amigos, no frio, nas lareiras e nas luzes a enfeitarem, ruas e presépios, na Pátria distante. Outros, muito poucos, mantinham-se atentos num desligar, mais aparente que real, virando a atenção, o cuidado para o inimigo em hipotética espreita, para lá do arame farpado.

A maioria era do Norte. A religiosidade da data era, talvez, mais sentida por eles. Mas o Natal é festa de família, penso eu. Hoje sinto-o mais assim. Parece que jantei com o meu Grupo, o tradicional bacalhau. Creio mesmo que o Capitão deu uma volta pelos vários abrigos.

Em Mansambo vivíamos em abrigos. Houve certamente o convívio possível. Não me recordo bem. O dia de Natal foi diferente certamente, com pensamentos a irem para junto dos que, lá ao longe, o faziam em sentido contrário. Talvez se tenham encontrado e abraçado a meia distância, em viagens imaginárias, com os deuses a apadrinharem. Talvez!

Entre os dias 28 e 30 de Dezembro houve coluna-auto ao Xitole. Mas o itinerário foi Bambadinca, Galomaro, Quirafo (?), Saltinho e Xitole. Uma coluna formada por bastantes viaturas civis e militares. A Intendência era responsável pela carga. Nós, um Grupo reforçado por picadores e alguns Milícias, éramos os responsáveis pela segurança e bom andamento, daquele enorme comboio com vários tipos de viaturas.

Impusémos regras rígidas. Levámos dois ou três mecânicos o que se veio a revelar de grande utilidade. Um dia de viagem para lá, outro para cá. Merecia ser relatada esta viagem. As avarias, o pó e toda uma loucura quase indescritível. Fizemos, duas ou três centenas de quilómetros (ida e volta) devido à estrada – Mansambo/Xitole – cerca de vinte quilómetros, estar ainda fechada [ou interdita].

O fim do ano aproximava-se e o dia 31 aí estava. O meu Grupo, depois do regresso do Xitole, preparava uma saída para Candamã no primeiro dia de Janeiro.

Talvez, na noite de passagem de ano, se tenha batido a zona com os [obuses] 10,5 e os [morteiros] 81 e bebido mais um copo. Mantínhamo-nos contudo bem atentos. Lá fora, poderia estar alguém pronto a estragar qualquer princípio de festa.

De repente um tiro e gritos. O Pimenta, do meu Grupo, ferira-se com a sua própria arma. Felizmente um tiro de raspão na zona abdominal. Era um faz tudo, por isso e pelo cansaço, estava encarregado dos geradores Lister que forneciam a electricidade ao aquartelamento. No dia seguinte foi evacuado para Bissau e, mais tarde, para a Metrópole. Ainda o visitei no Hospital em Bissau, dias depois, antes da minha ida para férias.

Começava o ano com um ferido, mesmo por acidente, no meu Grupo. Não gostei dos sinais. Depois da evacuação partimos para Candamã. Missão: reconstruir o pontão da Chanca na picada para Dulo Gengele. Nós fazíamos, a segurança e a ajuda, se necessária, a uma secção de engenharia de Nova Lamego, comandada pelo Furriel Zamite.

O trabalho teria que ser feito com rapidez. Questão de eficácia e principalmente segurança. Moto-serras a trabalhar no mato… não era saudável. Com a ajuda de todos, população incluída, e o saber do pessoal da engenharia, no final do dia 2 de Janeiro estava a missão cumprida.

Começamos a aprontar o material para a saída na madrugada seguinte. Um descuido, azar ou outro motivo qualquer, fez com que o Casadinho sofresse uma queimadura ligeira numa perna.

Faço aqui um parêntese para contar breve história deste militar [, o Casadinho]:

Era o Bazuqueiro do grupo. Alentejano de S. Matias, aldeola quase encostada a Beja. Cerca de dois ou três meses, após a chegada à Guiné, soube do nascimento da filha. Os meses passaram, o desgaste era grande e, como era necessário um militar da Companhia ir para Bissau – serviços de apoio logístico – foi indicado o Casadinho. Pouco tempo lá esteve. No dia 3 de Outubro, a dois meses do embarque, faleceu vítima de um desastre de viação na estrada para Bissalanca. Depois de quase dois anos de mato, muitas horas debaixo de fogo, morre, estupidamente, num acidente. Repousa no cemitério da sua terra natal. Nunca conheceu a filha.

Quando lá passo, no IP2, o carro, todos os carros que, ao longo destes anos tenho tido, abrandam sempre, aceleram e travam um pouco, num engasgar de soluço, de modo a que eu me possa voltar na direcção dele e o cumprimente. Nunca tive coragem de procurar a viúva ou a filha. Um dia…

Voltando á Guiné, a Mansambo, aos primeiros dias de Janeiro de 1969:

No dia 3, abandonámos Candamã e regressãmos à nossa Base. Havia correio fresco á nossa espera e a natural alegria. Nesse dia, após o jantar, fui ao meu abrigo. Na sala, à volta da mesa, a malta lia o correio, escrevia ou passava o tempo de outra forma. O Bessa partilhava uma garrafa de bagaço acabada de receber. Ofereceu-me um copo. Agradeci e entrei no abrigo. Ele foi para o palanque do posto de sentinela. Segundos depois um rebentamento. Aí estava mais um ataque ao aquartelamento. O estrondo inicial foi de uma roquetada que acertou no Bessa.

Durou talvez meia hora o tiroteio. Só que o meu Gr Comb sofreu o primeiro morto e o 1º Grupo um ferido grave. Terminado o ataque fui apanhar o Bessa. Embrulhei-o num lençol e não relato os pormenores. Ainda hoje os tenho bem vivos na memória. Ainda hoje aperto os dentes. Nunca esquecerei aquela morte, qualquer morte de um camarada. Por má formação, além de não esquecer, nunca perdoarei.

Ao terceiro dia, do novo ano – 1969 – o meu Grupo sofreu um morto e dois feridos, embora um muito ligeiro. No dia seguinte fizemos uma coluna para Bambadinca. Acompanhei o fechar da urna com o Soldado Bessa lá dentro. Já não regressei a Mansambo. Afoguei a raiva bebendo e dando uma volta à tabanca á procura de um amigo…

Devo ter tido um acordar difícil no dia seguinte. Não sei bem. Lembro-me que o [sargento piloto aviador] Honório me deu boleia, na sua avioneta, até Bissau com passagem por Bigene, onde consegui dar um abraço a um conterrâneo.

Dias depois, embarcava para a Metrópole para gozar o meu segundo período de férias.

Resumo:

O Natal e Ano Novo foram dias muito normais;
Operação na véspera de Natal;
Coluna ao Xitole, por Galomaro; Na noite de passagem de Ano feri
do o Pimenta;
No dia de Ano Novo ida para Candamã, fazer segurança á reconstrução de um pontão;
Findo o trabalho, dia 2, o Casadinho ligeiramente queimado numa perna;
Regresso a Mansambo, ataque ao aquartelamento e morte do Bessa;
Dia 4, em Bambadinca, fechada a urna do Bessa;
Dia 5, com passagem por Bigene, vinda para Bissau;
Dia 8 embarquei de férias para a Metrópole. Cortei as barbas a contragosto, do Capitão Vaz, da 1746, meu companheiro de viagem. A PIDE/DGS falava mais alto…

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1862: 42 anos depois, com emoção e revolta, sei das circunstâncias horríveis em que morreu o meu irmão... (Adelaide Gramunha Marques)

(2) Vd. post de 5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu

(3) Vd. 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?