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terça-feira, 8 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26021: (De) Caras (222): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Se é verdade que o tenente Barbieri, na primeira carta aqui publicada, nos dá conta de uma desastrada operação que ocorreu na Península do Sambuiá, obrigando-nos a refletir como todos nós fomos impelidos a viver desaires militares pelo desenho de operações que desconhecia cabalmente o terreno, esta carta do alferes Pedro Barros e Silva é um documento significativo para se ver como em 1966, e seguramente que ele estava altamente informado pelos dados que aqui apresenta, já havia quem, lucidamente, antevia um final pouco feliz para a nossa presença na Guiné, o PAIGC, por este tempo, já dispunha inequivocamente de um armamento no terreno muito superior ao nosso. Ainda vou bater à porta da minha fornecedora para ver se, por bambúrrio da sorte, ainda se possam encontrar mais correspondência deste alferes que devia ter acesso às mais cotadas informações militares, e não só.

Um abraço do
Mário


Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (4)

Mário Beja Santos

Nota explicativa: tratando-se da segunda parte da carta dirigida em 17 de agosto de 1966 ao alferes Pedro Barros e Silva do seu amigo Paulo António, em Lisboa, convém alertar o leitor que tem tudo a ganhar em ler o texto anterior, lendo e relendo o que o militar enviou para Lisboa já não duvido tratar-se, deste pequeno acervo que adquiri recentemente na Feira da Ladra, de um significativo documento que pode e dever ser orientado para investigadores. 

O alferes Barros e Silva começa a refletir-se sobre como se processou a colonização na Guiné, se as mudanças em curso, perpetradas pelas autoridades portuguesas, chegam ao bom porto, ele está profundamente cético; destaca seguidamente a atividade do PAIGC, aí não tem dúvidas que será na Guiné que se irá definir o futuro do Estado Novo (recorde-se que a carta é escrita em 1966).

É precisamente aqui que ele continua:

“E comparado com a porrada que aqui vai haver e até talvez com a que já há, as lutas de Angola e de Moçambique hão-de parecer infantis guerras de índios e cowboys. O terreno e as populações, e a situação geográfica aliados às estratégias em luta, a intensificação da propaganda IN, a ocupação efectiva de vastas regiões e consequente organização político-administrativa, o aumento da capacidade de combate (armamento, instrução, efectivos, etc.) e o crescente número de russos e cubanos que lutam nas fileiras do IN. Eis alguns indícios cuja análise nos fornece uma desagradável conclusão.

O terreno não é mau nem bom, é simplesmente impróprio para efectuar acção com motorizados. Assim, restam a artilharia e a aviação por um lado, a infantaria por outro. Deste modo, tem de morrer muita gente para os desalojar.

As populações são turras e nós quando as não chateamos não as controlamos, quando as chateamos, elas cavam e vão para as praças-fortes do IN, contribuindo assim para o engrossamento das fileiras deste.

Das estratégias e situação geográfica já falámos. Passamos agora à propaganda.

Há mais de um mês que o IN nos dedica quase diariamente um programa. O convite à deserção é apresentado como algo de aceitável e até de louvável; isto misturado com algumas deserções extraordinárias do vice-chefe da segurança e de outros. 

Insiste-se sobre a situação desesperada em que nos batemos, tudo por causa dos miseráveis capitalistas exploradores do povo, etc., do que o povo português não tem culpa nenhuma. E aqui entram no baile as Frentes Patrióticas com os seus folhetins tais como o ‘Passa Palavra’ e outros, fazendo ver aos compatriotas que somos uns malandros se andarmos a matar os nossos queridos irmãos de cor. E tudo por causa dos fascistas alemães que dão armamento aos salazaristas a troco do santo território pátrio. Estás a ver o género.

Até que ponto estas lengalengas influem no moral do soldado, não sei em absoluto. Mas parece-me que o soldado nem as ouve. Para ele a propaganda adequada é outra.

Como já escrevi por aí, o IN ocupa além do Oio, o Cantanhez, o Quitafine e o Como. São verdadeiras praças-fortes dotadas de abrigos contra ataques aéreos, etc.

Outras regiões foram organizadas política e administrativamente na base de grupos, subsecções e secções. Mas organização em terra de preto é como manteiga em nariz de cão. O mais importante é o poderio militar do IN nestas regiões.

As secções do Exército Popular encontram-se fardadas, treinadas e armadas até aos dentes. E, para ajudar à festa, temos os russos e os cubanos (estes, pelo menos, já têm levado umas coças bastante razoáveis). Pensa-se que dentre em pouco estarão na Guiné mil ou mais cubanos.

O material que o IN possuiu é o que de há de melhor pelos sítios. Só lhes falta aviação e marinha. De resto, postos-rádio, antiaéreas quádruplas, canhões sem recuo de infantaria (fala-se em obuses), bazucas, rockets, morteiros de 61, 82 e até talvez de 120, metralhadoras de todos os tipos e feitios, automáticas a dar com pau, enfim, estão mais bem armados que cá a rapaziada.

A missiva já vai longe. Não era minha intenção massacrar-te com este cumprimento salazarento. Antes de acabar ainda te quero falar sobre as tais prisões e das consequências que delas advieram. Não era segredo para ninguém que muitos dos ocupantes de cargos administrativos estavam à espera de serem ministros. Como o Governo salazarista não os satisfazia, resolverem oferecer os seus préstimos à outra equipa. Neste caso, ao contrário do que acontece com o futebol (lá se foi a Comunidade Luso-Brasileira) quem pagou as luvas foram os jogadores. 

Assim, em Bissau até havia o futuro Presidente da República (abastado comerciante, explorador das carreiras navais para o interior da província e, portanto, da tropa, suspeito de tráfico de armas, dono dos barcos que em 1963 se enganaram na rota e foram mais para o Sul), ministros em profusão nas pessoas-vice-presidente da Câmara, de um vogal no conselho administrativo e até de um modesto alfaiate do Batalhão de Intendência. Todas estas prisões e outras de menos importância tiveram por base o célebre atentado de Farim de que falei na altura.

Ora quando a gente lhes buliu,  os homens grandes de Bissau, os turras muito logicamente decidiram meter um cagaço aos rapazes de Bissau. Assim, deslocaram uns mil ou 2 mil mânfios para a região Nhacra – Mansoa (Balantas, quase todos turras). Este tem-se entretido a chatear a rapaziada. 

Os Comandos ficaram à nora, mandaram as mulheres e as crianças para a metrópole, e de vez em quando lançam tremendos alarmes gerais por toda a cidade. Muito construtivo.

Entretanto, o batalhão de Mansoa tremeu, tremeu e disse: não posso mais. Então, os avisados homens grandes das estrelas decidiram reforçá-lo com unidades vindas do Norte.

Os negros, servos do diabo, agora entretêm-se no Norte a cortar estradas com valas e abatises (o que não acontecia há 2 anos).

Bem, não te quero maçar mais apesar de haver muito mais para dizer.

Um grande abraço do amigo,
Pedro

P.S – lê o artigo de Raymond Cartier no Diário de Notícias de 5 de agosto"

Distribuição do correio, imagem registada na RTP no Natal de 1966, Guiné

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26005: (De) Caras (221): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 25 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23915: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XIV: O Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferes... "Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres", gritou o Cruz, abanando a cabeça.


Guiné > Região de Oio > Bissorã > Vista aérea >  s/d > Era uma das "portas de entrada" para o Oio. Foto do blogue, sem autor para já conhecido.

Foto (e legenda): © . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mais um excerto das memórias do nosso camarada Amadu Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010, autor do livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.).(*)

O Virgínio Briote, nosso coeditor jubilado (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) disponibilizou-nos o manuscrito, em formato digital.Çembremos que, durante cerca de um ano, com infinita paciência, generosidade, rigor e saber, ele exerceu as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando-o a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos e da sua prodigiosa memória.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O Virgínio Briote e o Amadu.   

Foto: LG (2010)



Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.


A edição de 2010, da Associação de Comandos, com o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está infelizmente há muito esgotada. E não é previsível que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretanto, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.

Recorde-se, aqui, o último poste desta série (*): O Grupo de Comandos "Fantasmas", da Companhia de Comandos do CTIG, comandado pelo alf mil 'comando' Maurício Saraiva, nascido em Angola,  e 
agora já com 18 operacionais, incluindo o João Parreira (entradao em fevereiro desse ano) tinha  passado vinte dias em Catió, Cachil e Como, no princípio de 1965... 

O Amadu de tirou de memória todas estas peripécias. Há pormenores factuais que falham (e que tanto o Virgínio Briote como eu temos hoje dificuldade em recuperar): por exemplo, datas e locais precisos, nome das operações, outras subunidades que particparam com o Gr Comandos "Fantasmas" (que se vai dissolver me meados de 1965, ou pelo menos nessa data o Amadu sai). 

Nos excertos a seguir (duas curtas operações), o Amadu volta ao Oio,  região já fortemente dominada pelo PAIGC:  "o Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferes", praguejava ele... Deve ter ocorrido em finais do 1º trimestre de 1965, fevereiro ou março.  O Grupo estava destacado em Brá e deslocava-se de viatura até a um dos quarteis principais: neste caso, Bissorã, entrada no Oio.

Mais uma vez dá para perceber que: 

(i) ele tende a tomar, nas acões em território IN, o partido dos mais fracos: crianças, mulheres, velhos, doentes, prisioneiros  (no mímino, não lhes fazendo mal ou até protegendo-os, de acordo com as orientações superiores); 

(ii) é coerente com os valores islâmicos e cristãos que aprendeu na infância, em Bafatá, na escola corânica e na escola dos missionários italianos: por exemplo, é "objetor de consciência" na matança de vacas, ele e o Braima... Um caso que ainda mais o eleva na nossa consideração.

Infelizmente é mais um episódio das suas memórias, com cenas de violência, de guerra suja, de contra-guerrilha, que eu gostaria de não publicar no dia de Natal... Mas não tinha mais nada para "tapar o buraco" do dia... 

Que seja ao mesmo  também um convite à reflexão sobre a extensão e a inutilidade da violência, da morte, do sofrimento, dos traumas que ambos causámos,  nós e o PAIGC do Amílcar Cabral, à pobre da população civil guineense apanhada "entre dois fogos" (o que até nem era verdade, a população que estava "do lado do PAIGC" não tinha muitas vezes alternativas, pelo menos nesta altura, e em regiões como o Oio que tinha já um historial de terror, quem não se lembrava do capitão-diabo ?!).

E,  depois,  Amílcar Cabral tinha pressa em chegar ao poder em Bissau e na Praia e transformar-se num líder, quiçá panafricano. (Infelizmente, fez mal as contas e terá subestimado tanto os seus inimigos internos como externos.).  Acrescentou-se, em abono da verdade, que ele, do lado português (ou seja, do regime colonialista que ele combatia), nunca encontrou interlocutores e negociadores políticos que o tivessem levado a série (a não ser talvez, tardiamente Spínola). 



 O Oio, sempre o Oio, na cabeça do alferez... "Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres", gritou o Cruz, abanando a cabeça (pp. 112 /114)

por Amadu Dajaló

Depois de três dias de repouso, quando entrei em Brá, soube que tínhamos que nos preparar para sair. Eu estava com a farda de terylene, tinha deixado o camuflado em casa. Assim, tive que o ir buscar rapidamente e quando regressei ao quartel, já todo o grupo estava na parada com o alferes Saraiva à minha espera.

Na reunião do grupo ficámos a saber o que se estava a passar. Um elemento do PAIGC, que ocupava um lugar de chefia, tinha-se apresentado e não se podia perder tempo, se os quiséssemos apanhar.

Saímos de Bissau em direcção a Mansoa, onde nos esperava uma coluna para Bissorã.

Quando chegámos, ficámos a descansar um pouco até à hora de jantar. Depois, começámos os preparativos para a saída. Iam connosco, um pelotão de europeus e um pelotão de milícias, com a missão de nos darem apoio no caso de ser necessário.

Por volta das 20h00 começámos a marcha em direcção a Gharon e aí pelas 24h00, mais ou menos, avistámos uma tabanca. Levados pelo guia, rodeámo-la de longe, mas,  apesar das precauções que tomámos, não conseguimos surpreender os cães, que não paravam de ladrar. 

Continuámos a andar até que, por volta das duas horas, passámos por outra tabanca, onde deixámos os pelotões e nós prosseguimos em direcção ao objectivo. A certa altura, o guia avisou que o acampamento estava ali à nossa frente. Passo a passo, entrámos nas barracas. Tudo abandonado, nem pessoal, nem nada que se aproveitasse.

Então, o guia disse ao alferes que alguns dormiam, às vezes, na tabanca com as suas mulheres. Logo, o alferes disse:

 − Rápido, vamos!

Lá chegados, sempre com os cães a ladrarem, a surpresa já tinha deixado de o ser, há muito que sabiam que tinham visitas. Cercámos a tabanca, em meia-lua, e o alferes, eu e o guia dirigimo-nos à barraca mais próxima. Estavam lá três homens e duas mulheres. Primeiro deixámos sair as mulheres e, quando os homens estavam cá fora, rompeu um tiroteio, que não foi aberto por nós. Nós respondemos e as rajadas sucederam-se durante algum tempo.

Quando o fogo abrandou, corremos para as casas e numa vimos vários corpos espalhados, de homens e mulheres.

−  Porra, que guerra de merda! Guerra de mulheres, gritou o Cruz, com a cabeça a abanar.

A fumarada era cada vez mais densa dentro dessa casa. Quando saímos vi uma mulher idosa, paralítica, a gatinhar no chão e a pedir para não a matarmos. Falou que não podia andar em quatro dialectos, balanta, mansoanca, mandinga e crioulo. Eu e o Cruz ajudámo-la e dissemos-lhe para não sair daquele esconderijo.

Entretanto, apareceu o alferes, com mais elementos do grupo, a dizer que numa cerca, bem escondida na mata, estava uma manada de umas trinta a quarenta cabeças de gado. Deu-nos ordem, a todos, para as abatermos. O Braima Bá e eu não disparámos. A nossa crença não me permitia tal acto.

Saímos da área em direcção a Bissorã e,  antes ainda do meio-dia, apanhámos a coluna que nos transportou para Mansoa. Aqui, só o alferes saiu da viatura, enquanto nós ficámos à espera.

Oio, sempre o Oio na cabeça do alferes.
Como habitualmente, saímos de Bissau em viaturas, directos a Mansoa, onde chegámos por volta do meio-dia. Depois de comermos alguma coisa, tomámos lugar na coluna que nos levou até ao cruzamento de Inchula, onde nos apeámos.

Levávamos um guia da zona, de nome Amadú Camará [1].

Do cruzamento, partimos em direcção ao objectivo. De vez em quando, abandonávamos o carreiro e entrávamos no mato, tentando evitar as sentinelas, que nos tinham avisado ficarem a guardar os trilhos em certos locais.

Segundo o guia,  as barracas do acampamento inimigo estavam muito perto. O Aquino tinha-se constipado durante a noite e, de vez em quando, tentava abafar a tosse. Andávamos um por um, primeiro, o guia, depois eu, a seguir o alferes e, quando este estava a chegar junto de nós, o Aquino não conseguiu aguentar e espirrou. O alferes disse “porra”, voltou para trás e deu-lhe duas ou três pancadas na cabeça e,  depois ficou debruçado em cima do Aquino, para aí dois ou três minutos.

Regressou para junto de nós e o Aquino, não aguentou, começou outra vez a tossir. Nesta altura, estávamos numa situação delicada, o amanhecer estava quase a surgir e nós ainda nos encontrávamos numa zona sem árvores que nos servissem de abrigo.

Neste instante avistámos um vulto a urinar e ficámos a aguardar que ele acabasse e entrasse na casa de mato, para então lhes batermos à porta. Só que o vulto também nos viu e arrancou a correr, acordando o pessoal das barracas. Caímos em cima deles, abatemos um e caçámos-lhe a arma.

(Coninua)
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Nota do editor:

[1] Devido a uma armadilha, foi-lhe amputada uma perna. Vive em Portugal.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
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quarta-feira, 25 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
A remexer papéis que têm a ver com o Conselho Ultramarino, falou-se em missionação na Guiné, assim cheguei a um inventário intitulado Portugal Missionário, uma reunião para a qual convergiram missionários de todo o Império e deu origem a depoimentos do maior interesse, e foi aí que recolhi o testemunho do Padre José Eduardo Ribeiro que nos dá um quadro da vida da Guiné na época nas suas diferentes dimensões. Ainda se vivem grandes sublevações, mas já na ordem decrescente, chegou a pacificação e institui-se a administração. O padre Ribeiro fez amizade com o tenente Graça Falcão que escapou milagrosamente a ter sido massacrado nas sublevações do Oio de 1897, ele aqui descreve ao pormenor a recuperação de Graça Falcão em condições quase milagrosas, levado meio morto para Farim onde recuperou, Graça Falcão faz parte das figuras muito controversas da Guiné, militares de bravura indiscutível que se meteram em negócios que deram para o torto.

Um abraço do
Mário



A Guiné vista por um missionário em 1928

Mário Beja Santos

Bisbilhotava numa publicação os diferentes colégios missionários que existiram em Cernache do Bonjardim, Bombarral e Tomar (hoje em Couto de Cucujães), dei pela existência de um volume intitulado Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928 e que deu edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929. Foi aí que encontrei este testemunho intitulado “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro”. Há fundadas razões para tomar nota, mesmo que abreviadamente, do que ele escreve. Sobre o solo guineense observa: “A pequena, mais riquíssima, colónia da Guiné Portuguesa, parece formada por terrenos de aluvião. Terreno silicoargiloso, havendo húmus em alguns pontos. É desprovido de calcários. Não se conhecem minérios na Guiné" (falso).

Quanto à fauna, diz que é variadíssima, refere animais ferozes como a onça, a pantera (?), o leopardo (?), a hiena, o búfalo e o elefante (diz que em vista de desaparecimento). Refere a gazela, a fritambá (antílope de porte pequeno), as cobras, os diferentes tipos de macacos. Há cavalos e burros mais pequenos dos que na Europa, o boi, a cabra, a ovelha (?) e o porco. Nos rios abundam os hipopótamos e os jacarés. É enorme a versatilidade de aves. Sobre os insetos, diz que os maiores inimigos do homem são os mosquitos e as formigas. Passando para a flora, alude a árvores de grande porte e reconhecida utilidade (cibe ou palmeira de leque, pau-ferro, pau-sangue, bissilão – uma espécie de mogno –, o incenso, a cabaceira, o poilão e o pau-carvão. Enumera árvores de fruta: laranjeira, mangueira, goiabeira, limoeiro, tangerineira, coleira…), diz haver pequenas quantidades de café e cacau, quanto às grandes culturas só o amendoim e o arroz, e observa: “A falta de capitais tem impedido o desenvolvimento da agricultura”.

Vê-se que dedicou observação à árvore étnica, fala em Baiotes, Banhuns, Felupes, Fulas, Sossos, Mandingas e Cassangas, Beafadas, Nalus, Bijagós, Balantas, Cobianas, Brames e Mancanhas, Manjacos e Papéis. Alarga-se nas referências aos Grumetes, dizendo que era nome dado aos descendentes do cruzamento dos soldados cabo-verdianos com os Papéis de Bissau e Cacheu e que na atualidade em que escreve este nome era dado a todos os indígenas que falam crioulo e andam vestidos com calças, camisa e casaca, habitando nas povoações europeias ou arredores.

No tocante à região, nada adianta que não se saiba, mas traz informações a ponderar. Os Grumetes de Cacheu são católicos. Os Grumetes de Bissau batizam os filhos e exigem enterro religioso. Os Grumetes são geralmente uns bêbados inveterados, gastam tudo quanto ganham na bebida e tabaco. E daqui passa para uma leitura das igrejas da Guiné: há três com um só padre residindo em Bissau. “O benemérito missionário Padre José Pinheiro, pároco de Bissau, está na Guiné há perto de 20 anos, deve retirar-se brevemente ficando a Guiné sem um único padre. Este estado vergonhoso constitui também um problema político porque os muçulmanos pregarão livremente a sua Guerra Santa, incutindo no espírito de todos os indígenas sentimentos de ódio e rebelião para com as autoridades portuguesas”. E depois dá-nos uma nota sobre a administração civil dizendo que a Guiné que ainda há poucos anos apenas era nossa em Bolama, e dentro das vilas de Bissau e Cacheu, e povoações de Farim, Geba e Buba, está hoje completamente ocupada e pacificada. Refere os dois concelhos e oito circunscrições em que se dividia a administração civil, observa que há em Bolama bons edifícios particulares, sendo o mais aparatoso o do Banco Nacional Ultramarino e diz que Bissau é a principal cidade da Guiné. Dá-nos ainda notas sobre o correio, o comércio, a indústria e a força militar.

O autor agradece a ajuda de informações que lhe deu o seu amigo Jaime Augusto da Graça Falcão, que fora militar brioso, que se envolveu em diferentes e polémicos processos que lhe custaram a carreira militar e contendas com a autoridade. E entende, por gratidão com o amigo Graça Falcão fazer uma memória de uma situação extrema que este militar vivera. Tudo acontecera em 1897, houvera revolta dos povos do Oio, houve necessidade de organizar uma exposição contra os sublevados e foi nomeado comandante dessa força Graça Falcão. Vale a pena extrair alguns parágrafos do testemunho deste padre missionário:
“Além da força de tropas regulares, foram incorporadas na expedição bastantes auxiliares indígenas, de raça diferente, e que ofereciam alguma esperança de fidelidade. Foi uma ilusão que nos custou bem cara. Estes auxiliares, ao primeiro embate com o inimigo, não somente recuaram cobardemente, como fugiram e até se bandearam com os revoltosos”. Seguiu-se o pânico, os que ficaram defenderam-se como leões, resistiram até serem trucidados. A notícia do desastre chegou a Farim, logo seguiu rio acima uma canhoneira, não havia notícias do comandante, passaram-se os dias, perdiam-se as esperanças de que ele tivesse sobrevivido ao combate. Quatro dias depois, porém, chega à feitoria da casa alemã Otto Schacht um mensageiro que em grande segredo mostra ao gerente da casa um papel: “Estou vivo, mandem bote Jafaná. Falcão”. O padre Ribeiro foi chamado, o gerente da feitoria e o missionário partem à procura do amigo. Entram numa região rebelada, meteram-se num pequeno bote tripulado por quatro remadores levando algumas provisões. O rio Farim que tinham de subir até Jafaná era a linha divisória do campo revoltado. Doze horas demorou a viagem até chegar a terra firme e embrenharam-se no mato. Caminharam e assim nasceu o sol. Pelas nove da manhã deram com Graça Falcão, de aspeto cadavérico, foi reanimado com marmelada e um cálice de vinho do Porto. Assim arrastaram o doente para o porto de embarque, tinham-se passado cinco dias após o desastre do Oio. Foi-se sabendo a história: Graça Falcão defendeu-se como um bravo, animando a todos até ao último momento, ferido gravemente, encobriu-se com os arbustos, os inimigos afastaram-se do campo de batalha, Graça Falcão cuidou ele próprio das feridas, arrastou-se pelo mato, fugiu dos povoados e ocultou-se com o capim sempre que pressentia alguém pelos caminhos; três dias errou à fome e a perder sangue; providencialmente as feridas não se infetaram. Uma vez no pequeno bote largaram rio abaixo e com o coração aos saltos chegaram a Farim. Este depoimento do padre missionário irá coincidir com relatos coevos de outros testemunhos.

Quem teve a paciência de ler o meu livro Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, recordará certamente os comentários pouco abonatórios feitos a Graça Falcão, alguém que foi um militar valoroso e de comportamento heroico que caiu nas malhas de negócios menos claros.

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23273: Historiografia da presença portuguesa em África (317): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23280: Notas de leitura (1447): “Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, por Malam Sambú; edição de autor, Macau, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Nada de espetacular neste achado, trata-se de um grito de alma de um guineense que se diplomou na República Popular da China e trabalhava na Universidade de Macau ao tempo desta edição de autor, para a qual nunca ouvira qualquer referência. Agradece ao nosso confrade António Estácio o apoio dado na pesquisa bibliográfica. Apresenta alguns aspetos curiosos nas referências que faz às etnias, é manifesto que tinha a história da presença portuguesa na Guiné muito colada com cuspo, daí a sua digressão errática. As mãos não lhe doem na acusação que faz de todos os excessos do regime a partir do Estado. Um documento que fez época, de alguém que na diáspora não se conformava com a violência e o caos em que se encontrava a Pátria.

Um abraço do
Mário



Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento

Beja Santos

“Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, edição de autor, Macau, 1999, é escrita de Malam Sambú, natural de Mansoa, licenciado em Engenharia Elétrica e Eletrónica pela Universidade de Nanjing, China, e no momento em que deu à estampa este seu livro trabalhava na Universidade de Macau. É uma obra que possui uma narrativa divulgativa sobre determinadas etnias depois de apresentar a geografia do país, fala igualmente da chegada dos europeus (infelizmente com muitos dislates, incorreções, inverdades e até saltos bruscos na narrativa histórica) após uma descrição sumária da luta armada revela ao que vem, no essencial: traça um libelo acusatório do regime ditatorial de Nino Vieira.

Vê-se que estudou a preceito um conjunto de etnias (não trata de todas e das que trata revela manifesto desequilíbrio expositivo) e enuncia um conjunto de curiosidades que vale a pena repisar. Falando dos Balantas diz que, de entre o grupo animista eles são os mais demorosos integrando um longo bloco étnico que se estende por toda a costa senegalesa até à Costa do Marfim. A ausência de Estado explica a falta de menção quanto à sua tradição histórica. Descreve os diferentes escalões na estratificação etária, é um dos pontos curiosos da sua exposição. Os Balantas são grandes produtores de arroz. Não aceitaram pacificamente a imposição colonial de terem chefes vindos de povos islamizados, como muitos outros autores já observaram, esta base de contestação propiciou a grande adesão à luta armada desde a primeira hora.

Os Papéis, ou Pepéis, dispõem de uma organização social hierarquizada semelhante aos Mandingas e quanto à língua aparentam-se com os Brames. São originais do Sul da Guiné, da região de Quínara, foram-se deslocando para a ilha de Bissau onde criaram vários regulados, todos eles religiosamente subordinados aos Beafadas, cujos ídolos ainda hoje veneram. Para além da ilha de Bissau, distribuem-se ao longo do Litoral, desde a mata de Putama até ao rio Cacheu. Na ilha de Bissau existe um local conhecido pelo nome de Enterramento, o qual possui uma grande carga histórica. Fica na zona compreendida entre Brá e Bor, onde se encontram enterradas algumas personalidades guineenses mais importantes, caso do régulo Bacampolõ Có.

Os Mansoanques ou Suénes têm a sua difusão étnica no Norte da Guiné-Bissau. A região compreendida entre Farim e Mansoa era predominantemente habitada pela etnia Mansoanque, originários de uma cisão havida nos Beafadas. Na sequência da guerra santa que lhes foi movida pelos Mandingas, o grupo Mansoanque sofreu uma enorme retenção, é hoje um dos grupos étnicos mais reduzidos da Guiné-Bissau. Em virtude da grande semelhança que existe entre os apelidos Mansoanques e Beafadas, há quem admita mesmo que estas etnias tenham feito parte da mesma família. Há uma enorme semelhança entre apelidos, por exemplo Sambú, Djassi, Soncó e Mané.

Os Mandingas são descendentes dos povos oriundos do Sudão Ocidental e da Etiópia. Sabe-se que no século XIII os Mandingas de Malinke, sob o comando do general Sundiata Ketá estabeleceram-se na região do Gabú. A Guiné torna-se um membro do vasto império do Mali sendo dirigida por um Farim (Governador) que normalmente era escolhido de entre as famílias Mané e Sané. O Gabú era o principal estado Mandinga. No Nordeste, na margem direita do Geba, os Mandingas formaram os reinos de Oio e de Braça. Para além do território guineense havia também outros pequenos reinos mandingas nos territórios vizinhos, tais como os do Vale do Gâmbia. Diz também Malam Sambú que os Mandingas ou Incas são originários do Oio.

Fala sumariamente dos Fulas, Bijagós, Beafadas, Nalus, Cocolis, Nhomincas, Banhuns, Cassangas e Manjacos.

Temos depois o histórico da presença dos povos europeus com destaque para os portugueses. Não deixa de referir que o trabalho forçado teve uma presença pouco expressiva, sendo praticamente utilizado pelas autoridades administrativas na construção e manutenção de estradas de terra batida.

Esquematiza as diferentes etapas da luta armada e após referência à chegada entusiástica do PAIGC ao território da Guiné-Bissau faz um rol da caça às bruxas, purgas, assassinatos, execuções sem qualquer tipo de julgamento, refere invenções de golpes como o alegado preparativo de um golpe de Estado por parte dos Antigos Comandos Africanos de que nunca se apresentou um documento de acusação fidedigno, contextualiza o terror permanente das arbitrariedades da polícia secreta.

E assim chegamos ao seu território de eleição, após o 14 de novembro de 1980 a ascensão de um processo ditatorial onde o autor é meticuloso a expor os crimes e extorsões praticados por Nino, incluindo a falsificação dos atos eleitorais, o assassinato dos rivais, como Paulo Correia, a sua vida luxuosa, a sua desbragada vida sexual destruindo matrimónios e enxovalhando famílias, os seus investimentos no estrangeiro, a venda de armas aos rebeldes do Casamansa, o progressivo descalabro dos Serviços Públicos. Talvez dado o facto de trabalhar em Macau, reporta a venda de passaportes a chineses que nem sabiam onde ficava a Guiné-Bissau… Usa uma linguagem crua, não se coíbe de dizer que o expoente máximo da ladroagem era personificado por Samba Lamine Mané.

E assim chegamos à questão das armas do Casamansa, diz taxativamente que Nino tinha uma percentagem na venda das armas mas que Ansumane Mané também não tinha as mãos muito limpas, o que acontece é que todo o círculo militar estava inteiramente informado de que iria ocorrer uma nova purga e foi nesse contexto que se iniciara o sangrento conflito político-militar com a chegada de tropas estrangeiras.

Este professor universitário é uma voz solitária, apresenta mesmo um manifesto propondo o saneamento político do país. É evidente tratar-se de uma obra datada, nunca tivera qualquer referência à sua existência, é a felicidade de vasculhar os vastos descritores da Guiné-Bissau na Biblioteca Nacional que possibilitam estes achados.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23266: Notas de leitura (1446): “Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo”, por Paulo Freire; Moraes Editores, 1977 (Mário Beja Santos)

domingo, 19 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21184: Memórias cruzadas nas 'matas' da região do Óio-Morés em 1963: o caso da queda do T6 FAP 1694 em 14 de outubro de 1963 (Jorge Araújo) - II (e última) Parte


Foto 5 - Citação: (1963-1973), "Comandante Pedro Pires com dois combatentes do PAIGC", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43495, com a devida vénia.


 Foto 6 - Citação: (1963-1973), "Guerrilheiros do PAIGC atravessando um rio", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43140, com a devida vénia.
  



O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,
CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior; vive em, Almada, está atualmente nos Emiratos Árabes Unidos; tem cerca de 260 registos no nosso blogue.


MEMÓRIAS CRUZADAS
NAS 'MATAS' DA REGIÃO DO ÓIO-MORÉS EM 1963
- NUANCES DA MISSÃO DE LOURENÇO GOMES EM OUT'63 -
II (e última) PARTE



Mapa da região do Óio-Morés (satélite) com infografia da queda do «T-6 matrícula FAP 1694», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14 de Outubro de 1963, 2.ª feira.

► Continuação do P21151 (08.07.20)


No primeiro fragmento deste trabalho – P21151 (*) – procedemos à análise dos temas inseridos no relatório elaborado pelo dirigente do PAIGC do Bureau de Dakar, Lourenço Gomes (1922-1999?), natural do Canchungo (Teixeira Pinto), referente à sua "missão" de contacto com três das bases da região do Óio-Morés (território da Zona Norte): Morés (base Central), Fajonquito e Maqué, realizada entre 08 e 18 de Outubro de 1963.

Com recurso a outras fontes de informação primária, relacionadas com os mesmos factos, foi possível identificar alguns conflitos factuais entre as «Memórias Cruzadas», nomeadamente o episódio do acidente (queda) do «T-6 FAP 1697», pilotado pelo Cap Pilav João Cardoso de Carvalho Rebelo Valente, ocorrida em 14Out1963, naquela região, e que serviu de pretexto para a escolha do subtítulo.

Agora, nesta segunda (e última) parte, com recurso à mesma metodologia, utilizamos um outro relatório, que estava apenso ao primeiro do Lourenço Gomes, elaborado por Pedro [Verona Rodrigues] Pires (1934-), natural de São Filipe, Ilha do Fogo, Cabo Verde, a partir das informações transmitidas pelo guia - "estafeta" Biagué Sagne, após a sua chegada a Dakar, depois de ter conduzido dois desertores da marinha portuguesa até Ziguinchor.

Para além de ser considerado como elemento de confiança dos dirigentes da estrutura de Dakar, Biagué Sagne ("estafeta de eleição") era quase sempre o escolhido para as "missões" de ligação entre os dois lados da fronteira Norte (Senegal/Guiné-Bissau), conforme consta na literatura. 

Conhecedor exímio da geografia do território e simultaneamente dos itinerários de risco controlado, face ao contexto das movimentações militares, Biagué era elogiado por ser um caminhante muito resistente, a fazer lembrar, na época, a "Locomotiva de Praga", apelido atribuído ao checo Emil Zátopek (1922-2000), o único atleta a vencer os 5.000 metros, 10.000 metros e maratona numa mesma Olimpíada (J.O. de 1952, em Helsínquia, na Finlândia), e que em 2012, durante as celebrações do centenário da «IAAF» (International Association of Athletics FederationsAssociação Internacional de Federações de Atletismo), realizadas na sua sede em Monte Carlo, no Principado do Mónaco, foi imortalizado no "Salão da Fama do Atletismo".

2.2 - RELATÓRIO (elaborado por Pedro Pires)

► Segundo informações colhidas a partir das declarações do Biagué.

Dakar, 21 de Outubro de 1963 (data em que assinou o documento dactilografado)

Bombardeamento do dia 14Out63 (2.ª feira) = 

 Houve 8 feridos entre os quais uma rapariga que ficou com uma perna fracturada. O Tiago [Aleluia] Lopes feriu-se na cabeça, mas está completamente restabelecido. O bombardeamento foi muito próximo da base [Central] do Osvaldo Vieira. Foi perto da tabanca de Morés.

# «MC» ▼ 

Os oito feridos referidos acima, cujos nomes não foram identificados neste relatório do Pedro Pires, seriam divulgados, quatro meses mais parte, por Bebiano Cabral d'Almada, no âmbito da sua (nova) visita às bases do Óio – P21095 (P-I) – a saber:    




Citação: (1964), "Relatório do Bureau de Dakar sobre a viagem à região de Casamansa e às bases do Norte da Guiné", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41387, com a devida vénia.

Por outro lado, e como contraditório à obra de Norberto Tavares Carvalho – "De campo em campo: dos estádios de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde"; conversas com o comandante Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, recupero a opinião transmitida pelo Luís Graça, a propósito de duas notas incluídas no P17123, «(D)o outro lado do combate: Vida e morte de Simão Mendes, vítima de bombardeamento, pela FAP, da base central do Morés, em 20 de fevereiro de 1966 (Jorge Araújo)».

▬ Dizia, então, o camarada Luís Graça:  

(…) "O Bobo Keita não é bom de datas. Antecipou, ao que parece, a morte do Simão Mendes em 1 ano e três meses…".

De facto, podemos hoje concluir que algumas das datas e contextos relatados pelo Cmdt Bobo Keita (1939-2009), "nas suas conversas publicadas em livro" [capa ao lado], estavam desfasadas da realidade, o que se compreende, face aos muitos "sustos" que, certamente, apanhou durante os anos em que foi guerrilheiro.

Exemplos retirados da op. cit. p. 244:

"(vi) Morreu [Simão Mendes], mais tarde, no intenso bombardeamento da base de Morés ocorrido no dia 14 de Novembro de 1964". Seria que estava-se a referir ao bombardeamento de 14 de Outubro de 1963, aquele que acima é citado, onde aconteceram 8 ou 13 mortes… (mas não a de Simão Mendes)?

"(vii) Nesse bombardeamento, "os camaradas Juvêncio Gomes e Tiago Aleluia Lopes foram atingidos por estilhaços", na cabeça (o Tiago Lopes), nas mãos e parte do rosto (o Juvêncio Gomes). Mais uma vez se infere que a data aludida por Bobo Keita não confere, mas sim a de 14 de Outubro de 1963, onde o Tiago Lopes e o Juvêncio Gomes foram, de facto, feridos, o primeiro recuperou na base, do ferimento na cabeça, e o segundo foi evacuado para o Hospital de Ziguinchor, por ter sido atingido com "estilhaços na cara e no pescoço, e com fractura do braço esquerdo e ferimentos no pé", conforme consta na descrição supra.

Barco = 

[Durante a evacuação dos oito feridos], os portugueses surpreenderam os camaradas quando atravessavam o rio [Cacheu] numa cambança, cambança por onde passaram com o Rendeiro e o Timóteo [em 18 de Setembro de 1963], e apreenderam o barco que viera de Conacri há pouco tempo. 

Os soldados fizeram fogo sobre os nossos e tiveram que abandonar o barco. Não houve feridos.

Base = 

O Osvaldo Vieira vai mudar de base.

Soldados portugueses = 

Estão detidos em Ziguinchor. Foram conduzidos por um guia [Biagué Sagne] que foi encarregado desse serviço pelo Zain Lopes [Rafael Barbosa]. Precisamos de ver esse problema dos refugiados no Senegal mais profundamente. Espero as vossas instruções nesse sentido. Não podemos ter confiança absoluta em ninguém e julgo que é necessário separar o Lar [Ziguinchor] do Bureau [Dakar].

Julião [Lopes] = 

Este camarada continua em Ziguinchor [ferido por um dos seus três camaradas por ele assassinados em Encheia] porque não está completamente restabelecido. O Paulo Santi [que havia sido ferido, também, pelo Julião Lopes, no mesmo episódio de Encheia] já entrou.

Chico Té [Francisco Mendes] e o Constantino Teixeira = 

Devem vir a Dakar para seguirem para Conacri [a fim de reunirem com Amílcar Cabral].

# «MC» ▼ 

A reunião teve lugar a 27 de Outubro de 1963, domingo, encontro que contou apenas com a presença do Secretário-Geral e de Chico Té [Francisco Mendes], na qualidade de responsável político. 

Durante a sessão de trabalho foi apresentado e analisado o novo "plano de acção militar" para as zonas da Região do Óio (Central) e Gabú (Interior Norte). As "missões" a levar à prática incluíam:

(i) – meios de reconhecimento;
(ii) – criação da base em Geba;
(iii) – controlo da ligação fluvial e terreste;
(iv) – receber mais gente do Yaya [Koté];
(v) – intensificar as acções de sabotagem;
(vi) – liquidação dos Régulos (?).

Para a supervisão deste "plano de acção militar", foram indigitados trinta responsáveis (Comndantes), distribuídos pelas diferentes bases existentes nessas zonas.
De seguida apresentam-se os pontos mais relevantes dessa reunião, indicados acima.



Citação: (1963), "Reunião com Chico Té", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41265, com a devida vénia.

Oportunistas = 

Teriam estado na Gâmbia onde teriam encontrado o Cônsul e mesmo teriam ido a Bissau os oportunistas da clique do Benjamim Bull. Devem ter feito parte desse grupo: Bull, Domingos Araújo e Madjo. 

Teriam mesmo falado com o Rafael Barbosa, em Bissau, segundo as informações de Quebá Mané. "Foram ver o Governador e este pediu-lhes para contactarem o Rafael…". O Domingos Araújo esteve ausente cerca de 23 dias. Teria ido a Bissau via Gâmbia.

Carta = 

Os camaradas interceptaram uma carta do Cônsul que era dirigida a Domingos Araújo e uma outra a Ernestina para o Cônsul. As cartas estão com o Lourenço Gomes.

Malas de Correio = 

Os camaradas interceptaram uma camioneta do Lulula e apoderaram-se da mala do correio.

Timóteo e Rendeiro = 

O Rodrigo Rendeiro seguiu para Bissau. O Timóteo Pinto continua em Dakar, pelo menos, estava cá há cinco dias. Estou a ver se consigo descobrir o paradeiro dele. O Osvaldo Vieira e os camaradas do interior já estão informados da fuga deles.

# «MC» ▼ 

Sobre as "Histórias do Rodrigo Rendeiro e Timóteo Pinto" sugere-se a consulta das narrativas a seguir mencionadas:

▬ P17920: "A odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de 3 a 26 de Setembro de 1963, de Porto Gole, … até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar)".

▬ P17926: "Continuação da odisseia do Rodrigo Rendeiro que acabou por regressar a Bissau, com um salvo-conduto do consulado da Suíça em Dacar, que o levou até à Gâmbia…".

▬ P17929: "O Rodrigo Rendeiro, depois de regressar a Bissau, terá fornecido preciosas informações à FAP, permitindo a localização (e bombardeamento) das bases do PAIGC em Morés e Dando…".

Oportunistas = 

Teriam estado na Gâmbia há uns quinze dias [início de Outubro'63], coincidindo com a partida dos dois traidores [Timóteo e Rendeiro].

Lourenço Gomes = 

Ele foi detido antes de ontem juntamente com os soldados portugueses [Manuel José Fernandes Vaz e Fernando Fortes]. Haverá relação entre os panfletos tendenciosos e a atitude do Governo de Casamansa? Penso que não. Esses panfletos não terão, pelo menos, um estímulo do Governo do Senegal? Qual a atitude do Partido perante o "tracked" [vigia/controlo de movimentos] que se refere a Cacine e Casamansa?

Polícia = 

Estive hoje por duas vezes na "Sûreté" [Segurança), mas o Director e seu Adjunto estavam ausentes.

Medicamentos = 

Peço que levem em consideração o pedido do Lourenço Gomes.

Peças do motor Kelvin = 

É preciso que mandem as peças avariadas para poder comprá-las.



Citação: (1963), "Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região de Óio", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41412, com a devida vénia.

► Fontes consultadas:

Ø  CasaComum, Fundação Mário Soares. Pasta: 07075.147.046. 

Título: Relatório sobre a visita de Lourenço Gomes à região do Óio. 

Assunto: Relatório assinado por Lourenço Gomes sobre a sua visita ao interior, região de Óio. Visita aos locais onde foram abatidos os aviões portugueses; ataque à base de Ambrósio Djassi [Osvaldo Vieira]. Necessidade de medicamentos no interior. Material de Guerra.Despesas. Viatura para transporte dos feridos. Envio dos militares portuguesas, Fernandes Vaz e Fernando Fortes, para a base de Abel Djassi. Em anexo documento assinado por Pedro Pires, datado de 21 de Outubro de 1963, com as informações colhidas das declarações de Biagué. 

Data: Quinta, 24 de Outubro de 1963. 

Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XI 1961-1964.

 Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral. 

Tipo Documental: Documentos.

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Concluído.
Termino, agradecendo a atenção dispensada.
Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo.
09JUL2020
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Nota do editor: