ex-fur mil, QG/CTIG, Bissau,1973/74, Manuel Amante da Rosa, embaixador plenipotenciário da República de Cabo Verde em Itália desde 16/1/2013, e agora também em Malta [, foto, acima, de 2013; cortesia da RTC - Radiotelevisão Caboverdiana]
Data: 13 de abril de 2017 às 12:23
Assunto: Público-2017/04/13 (*)
Meus Caros,
Um desabafo estritamente pessoal, que não seja somente a de partilhar convosco esta reflexão, bem fora do âmbito de qualquer polémica ou publicação.
Há muito que venho seguindo este sistema de "dois pesos, duas medidas" usados pelas autoridades lusas ao tempo da descolonização. O diário português "Público", de hoje, trás nas suas páginas 12 e 13, no quadro do 30º Aniversário da transferência de Macau à China, o tratamento diferenciado dado aos africanos e, mais tarde, os dados aos residentes chineses daquele diminuto território asiático.
Curtos onze anos após as negociações para a Independência das Colónias africanas, foram concedidos nacionalidade portuguesa a cerca de uma centena de milhar de pessoas residentes em Macau. Por iniciativa negocial e visão acertada dos negociadores lusos em confronto directo com o estatuído na lei chinesa.
80% ou mais deste contingente que era visado nem a primeira estrofe do Hino Nacional de Portugal conheciam para não dizer cumprimentar e/ou trocar algumas frases na língua de Camões.
E ainda hoje, para aqueles que permaneceram na RAEM [ Região Autónoma Especial de Macau], este desconhecimento é total.
A língua portuguesa, apesar dos onerosos montantes alocados pelo Executivo macaense, continua como francamente residual e raramente usado fora das repartições e do núcleo da comunidade lusa.
Este assunto, da atribuição pertinente e massiva da nacionalidade portuguesa, foi seguido por mim com especial interesse e interrogações por ter sido militar do exército português, no seu último ano e meio e ter convivido com a violenta guerra, desde criança, porque tudo se relacionava a ela, ao fim e ao cabo. Não havia como se estar à margem do ambiente bélico.
De uma maneira geral, em todas as colónias havia forte contingente de nativos/indígenas, integrados em pelotões independentes e companhias, enquadrados por graduados e oficiais oriundos da metrópole. Mas para além das forças militares regulares, de recrutamento obrigatório, haviam ainda, numa base de voluntariado, os contingentes das forças especiais, das milícias locais, organizadas em unidades auxiliares nas unidades militares, outras constituídas em auto-defesa, contigentes de cipaios e forças para-militares (unidades de polícias).
Na Guiné, pela sua pequena dimensão territorial e humana, a contribuição dada ao exército português foi relevante em todas as frentes de combate, nas patrulhas e operações de grandes envergaduras, nas defesas dos quartéis, construções de estradas e outras infra-estruturas e até nas forças especiais.
Lógico que milhares sofressem ferimentos em combate e acidentes, outros encontrassem a morte ou e ainda outros milhares ficassem com sequelas de guerra, uns estropiados e outros com stress pós-traumático.
Mas que outros milhares fossem distinguidos com cruzes de guerra, louvados, condecorados, citados em ordens do dia, premiados e levados
para a ex-metrópole em gozo de férias.
É consabido (e conheço casos) que soldados africanos se tenham sacrificado, tenham salvo a vida ou ajudado os seus camaradas brancos nos confrontos da contra-guerrilha.E vice-versa, está claro!
Raros, muito raros, foram aqueles que não acabassem o período de 3 anos de serviço militar sem saberem entender ou se exprimir em português. Era de cariz obrigatório a alfabetização no exército, até pelo menos a quarta classe. Pelo menos na Guiné. Assim como conhecer rudimentos da história de Portugal e cantar o Hino Nacional.
Quando tenho a oportunidade de retornar à Guiné e encontro, em todo o lado, esses idosos e valorosos militares das forças armadas portuguesas, abandonados à pressa e à sua sorte e me vem ainda ao pensamento os milhares que acabaram fuzilados, após a guerra, sempre me pergunto porque raio de circunstâncias o destino lhes traçou esse
nefasto rumo.
E, se por força do esforço pessoal e determinação, conseguem chegar a Lisboa, para se radicarem ou tratarem da saúde e das sequelas da guerra, vale-lhes mais a solidariedade, camaradagem e memórias dos
antigos oficiais ou camaradas para calcorrearem a via crucis… do que qualquer outra instituição a que com garbo e sacrifício pertenceram. (**)
Abraços
Manuel Amante
____________
Notas do editor
Data: 13 de abril de 2017 às 12:23
Assunto: Público-2017/04/13 (*)
Meus Caros,
Um desabafo estritamente pessoal, que não seja somente a de partilhar convosco esta reflexão, bem fora do âmbito de qualquer polémica ou publicação.
Há muito que venho seguindo este sistema de "dois pesos, duas medidas" usados pelas autoridades lusas ao tempo da descolonização. O diário português "Público", de hoje, trás nas suas páginas 12 e 13, no quadro do 30º Aniversário da transferência de Macau à China, o tratamento diferenciado dado aos africanos e, mais tarde, os dados aos residentes chineses daquele diminuto território asiático.
Curtos onze anos após as negociações para a Independência das Colónias africanas, foram concedidos nacionalidade portuguesa a cerca de uma centena de milhar de pessoas residentes em Macau. Por iniciativa negocial e visão acertada dos negociadores lusos em confronto directo com o estatuído na lei chinesa.
80% ou mais deste contingente que era visado nem a primeira estrofe do Hino Nacional de Portugal conheciam para não dizer cumprimentar e/ou trocar algumas frases na língua de Camões.
E ainda hoje, para aqueles que permaneceram na RAEM [ Região Autónoma Especial de Macau], este desconhecimento é total.
A língua portuguesa, apesar dos onerosos montantes alocados pelo Executivo macaense, continua como francamente residual e raramente usado fora das repartições e do núcleo da comunidade lusa.
Este assunto, da atribuição pertinente e massiva da nacionalidade portuguesa, foi seguido por mim com especial interesse e interrogações por ter sido militar do exército português, no seu último ano e meio e ter convivido com a violenta guerra, desde criança, porque tudo se relacionava a ela, ao fim e ao cabo. Não havia como se estar à margem do ambiente bélico.
De uma maneira geral, em todas as colónias havia forte contingente de nativos/indígenas, integrados em pelotões independentes e companhias, enquadrados por graduados e oficiais oriundos da metrópole. Mas para além das forças militares regulares, de recrutamento obrigatório, haviam ainda, numa base de voluntariado, os contingentes das forças especiais, das milícias locais, organizadas em unidades auxiliares nas unidades militares, outras constituídas em auto-defesa, contigentes de cipaios e forças para-militares (unidades de polícias).
Na Guiné, pela sua pequena dimensão territorial e humana, a contribuição dada ao exército português foi relevante em todas as frentes de combate, nas patrulhas e operações de grandes envergaduras, nas defesas dos quartéis, construções de estradas e outras infra-estruturas e até nas forças especiais.
Lógico que milhares sofressem ferimentos em combate e acidentes, outros encontrassem a morte ou e ainda outros milhares ficassem com sequelas de guerra, uns estropiados e outros com stress pós-traumático.
Mas que outros milhares fossem distinguidos com cruzes de guerra, louvados, condecorados, citados em ordens do dia, premiados e levados
para a ex-metrópole em gozo de férias.
É consabido (e conheço casos) que soldados africanos se tenham sacrificado, tenham salvo a vida ou ajudado os seus camaradas brancos nos confrontos da contra-guerrilha.E vice-versa, está claro!
Raros, muito raros, foram aqueles que não acabassem o período de 3 anos de serviço militar sem saberem entender ou se exprimir em português. Era de cariz obrigatório a alfabetização no exército, até pelo menos a quarta classe. Pelo menos na Guiné. Assim como conhecer rudimentos da história de Portugal e cantar o Hino Nacional.
Quando tenho a oportunidade de retornar à Guiné e encontro, em todo o lado, esses idosos e valorosos militares das forças armadas portuguesas, abandonados à pressa e à sua sorte e me vem ainda ao pensamento os milhares que acabaram fuzilados, após a guerra, sempre me pergunto porque raio de circunstâncias o destino lhes traçou esse
nefasto rumo.
E, se por força do esforço pessoal e determinação, conseguem chegar a Lisboa, para se radicarem ou tratarem da saúde e das sequelas da guerra, vale-lhes mais a solidariedade, camaradagem e memórias dos
antigos oficiais ou camaradas para calcorrearem a via crucis… do que qualquer outra instituição a que com garbo e sacrifício pertenceram. (**)
Abraços
Manuel Amante
Notas do editor
(*) Vd. Bárbara Reis > Há 30 anos, Portugal surpreendeu a China nas negociações de Macau > Públicio, 13 de abril de 2017
(...) As negociações sobre a transferência de Macau duraram nove meses e, para Augusto Santos Silva, são “um marco na história diplomática de Portugal”. E ajudaram, 30 anos depois, a eleger António Guterres secretário-geral das Nações Unidas.(...)
(...) As negociações sobre a transferência de Macau duraram nove meses e, para Augusto Santos Silva, são “um marco na história diplomática de Portugal”. E ajudaram, 30 anos depois, a eleger António Guterres secretário-geral das Nações Unidas.(...)
(**) Último poste da série > 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16908: (In)citações (104): Inimigos de ontem, amigos de hoje? (Carlos Vinhal, ex-Fur Mil da CART 2732)