1. Texto enviado pela nossa amiga e grã-tabanqueira Sílvia Torres, com data de ontem. Foi publicado no Diário de Coimbra de 9 de março de 2018, como artigo de opinião.
Crónicas de guerra "perigosas"
por Sílvia Torres
Há 57 anos, a Guerra do Ultramar dava os primeiros passos em Angola, estendendo-se à Guiné Portuguesa em 1963 e a Moçambique, no ano seguinte. Os meios de comunicação social portugueses noticiaram o conflito, na medida do possível, com o controlo severo e discreto da censura. A guerra era um tema tabu, sobre o qual pouco se podia contar e, menos ainda, mostrar.
O Diário de Coimbra, jornal considerado hostil ao Estado Novo, estava na lista dos mais vigiados. O "lápis azul" tinha especial atenção à imprensa "opositora" e de maior tiragem, sendo nestes casos mais rigoroso. Perante jornais de pequena difusão, com sede em meios rurais, o rigor diminuía e, por vezes, temas proibidos viam a luz do dia. O quinzenário Jornal da Bairrada, que ainda hoje se publica como semanário, beneficiou desta imperfeição da censura.
Entre 1964 e 1965, o Jornal da Bairrada publicou "crónicas de guerra", da autoria do bairradino e então alferes Armor Pires Mota (*) que cumpria parte do Serviço Militar Obrigatório na Guiné Portuguesa. Aerogramas transportavam as palavras da província ultramarina para a metrópole. Nenhuma das crónicas, que se confundem com páginas de um diário, sofreu qualquer corte por parte da censura.
Em todas, como neste excerto, o alferes Mota mostrou aos leitores a guerra que conheceu, sem filtros:
"(…) causa-me calafrios a morte daqueles dois moços que, ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés (…) Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos, e, pelos rasgões espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. (…) Sinto-me em baixo. E estive mesmo tentado a pôr de parte a intenção de contar as guerras. Mas achei que devia trazer para a luz o que anda nas sombras: o mistério do sangue".
Já na metrópole, findas as obrigações militares, Armor Pires Mota reuniu em livro os textos que já tinham sido publicados no jornal bairradino. A obra Tarrafo – crónicas de um soldado na Guiné foi posta à venda na livraria Vieira da Cunha, em Aveiro (**). O que havia escapado à censura na aldeia fez soar o alarme do "lápis azul" na cidade. Consequentemente, o livro foi apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). E, sabe-se agora graças aos arquivos que guardam documentos da época, a censura levou um valente "puxão de orelhas" por ter permitido a publicação de textos "perigosos" no Jornal da Bairrada.
Hoje, quase a chegar aos 80 anos, Armor Pires Mota não precisa de ler o que escreveu para recordar os dois anos passados na Guiné Portuguesa. Há histórias que a memória, por mais que se esforce, não consegue apagar.
Sílvia Torres (***)
[Fixação de texto, para efeitos de edição no blogue: LG]
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Notas do editor:
(*)
Armor Pires Mota [ex-alf mil acv, CCAV 488/BCAV 490,
Bissau e
Jumbembem, escritor, autor dos livros, entre outros, o "Tarrafo", 1965 (com edição facsimilada, com as anotações do "lapis azul" dos censores, em 2013); "Guiné, Sol e Sangue, 1968; "Cabo Donato, Pastor de Raparigas", 1991; "Estranha Noiva de Guerra, 1995: e a "Cubana que dançava flamenco", 2008, alguns
podendo ser adquiridos pela interneta, aqui].
(**) Vd. poste de 5 de novembro de 2011
Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...
(***) Último poste da série de 2 de março de 2018
Guiné 61/74 - P18372: Recortes de imprensa (92) : artigo de opinião de Sílvia Torres: A Guerra em 'copo meio cheio', "Diário de Coimbra", 23 de fevereiro de 2018