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terça-feira, 17 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24765: Agenda cultural (840): Síntese da minha comunicação destinada à conferência "Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril", realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo (Mário Beja Santos)


A juventude moncorvense compareceu em força num dos painéis
Presentes: coronel Vasco Lourenço, general Alípio Tomé Pinto e o presidente da edilidade, Nuno Rodrigues Gonçalves. Sentado, e diligentemente a escrever, o nosso confrade Paulo Salgado, moderou a sessão António Lopes, oficial do Exército aposentado

Imagens cedidas pela Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, a quem agradecemos


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Do programa da conferência não falo, veio publicado no blogue. O que me foi pedido prendia-se com a análise da literatura da guerra colonial, mau conhecedor das literaturas referentes aos teatros angolano e moçambicano, fui-me reportando ao que conheço da realidade da literatura guineense.

Como estas comunicações não dão para divagar, há que encontrar um ritmo que possa cativar um público transversal, por isso achei por bem falar da abrangência da literatura e suas manifestações; enfatizar a variedade topográfica que gerou singularidades quanto à Guiné, Angola e Moçambique, se bem que, haja um enquadramento que vai do embarque ao desembarque e que toca a todos, e mesmo nesse itinerário um relato de alguém que viveu em destacamento naturalmente que se distingue de quem foi fuzileiro ou paraquedista; procuro dar ênfase à questão do meio, como ele é preponderante na inquietação de um patrulhamento ou no fascínio de um esplendoroso palmar que surge inopinadamente; e há a questão do tempo da comissão, um relato de Álvaro Guerra, que combateu no início da luta armada distingue-se da história de um batalhão como o BCAV 2867, que combateu na região de Tite nos anos de 1969 e 1970, e que coteja os factos por ele percecionados com a documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares. 

E confesso que me desvelou o acolhimento de Paulo Salgado que me levou a visitar zonas extraordinárias do Baixo Sabor, deu-me matéria para falar de itinerâncias na região moncorvense.

Um abraço do
Mário


Síntese da minha comunicação destinada à conferência Comemorar o Cinquentenário do 25 de Abril, realizada nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2023, iniciativa da Câmara Municipal da Torre de Moncorvo

Uma guerra colonial que gerou investigação e largas memórias de diferente ficção

Mário Beja Santos

1. Era inevitável: uma guerra vivida em três frentes, de 1961 a 1975, iria implicar estudos historiográficos, socioeconómicos, abordagens militares, diferentes domínios de investigação, nomeadamente no campo universitário, dando origem a uma vasta multiplicidade de teses e obras destinadas a um vasto mercado, desde o estritamente militar ao do grande público. 

Por natureza, e mercê do olhar ideológico, será também motivo de contínuos trabalhos, recorde-se que há omissões graves no campo da investigação que importa colmatar: por exemplo, não há ainda nenhum estudo aprofundado sobre os quatro anos (1964-1968) da governação de Arnaldo Schulz;

2. Mas nem só da investigação vive o homem: há um rol infindável de manifestações literárias: conto, novela, romance, poesia, literatura memorial, reportagem, propaganda para captar populações ou a favor da política do Estado Novo, justificando a gradual intervenção militar, mesmo quando esse regime apresentava tal intervenção como “ações de polícia”;

3. Como é natural, dada a variedade topográfica das três frentes, gerou-se uma literatura com particularidades/especificidades. Há, contudo, questões e conceitos que se podem apresentar como padronizados: 
  • as despedidas aquando do embarque; 
  • a viagem tormentosa, com as praças metidas em porão; 
  • o estado de nervosismo e a expetativa do que se vai encontrar pela frente; 
  • a chegada, o embate com o clima; 
  • a deslocação para um lugar ainda desconhecido; 
  • a adaptação ao meio, por vezes uma intensa participação em obras para melhorar o nível do conforto; 
  • a tensão nos patrulhamentos, procurar ver o que se esconde no capim; 
  • o sobressalto da mina antipessoal e mina anticarro; 
  • os primeiros contactos com a guerrilha; 
  • o comer mal, a vigilância noturna, as flagelações, etc., etc.. 

Não são situações padronizadas, são quadros de referência do itinerário da comissão, obviamente com cambiantes, é bem provável que um paraquedista, um fuzileiro, um comando, estejam dominados por outras referências, as operações têm um peso dominante na literatura que eles elaboram;

4. As particularidades decorrem do meio, como é óbvio: 
  • o território da Guiné depende das marés altas e baixas (o território tem uma superfície de 36.125 km2 numas alturas, noutras 28.000 km2); 
  • é território sulcado por rias e braços de mar, tem de facto só dois rios, o Geba e o Corubal;
  •  há o tarrafo, que pode ser um inimigo natural implacável, no mínimo intimida, ande-se por terra ou por água; 
  • há as florestas-galeria, por vezes caminha-se de gatas, surgem inesperados contratempos, podem ser as abelhas, um porco do mato que se atravessa à frente da patrulha, e que provoca pânico; 
  • há a estação das chuvas, que nos faz adoecer, que aumenta os casos de malária…
  • como é evidente, há a ligação entre o militar e as populações, a solicitação do médico ou do enfermeiro ou do maqueiro, angariar professor para a criançada ou para os soldados iletrados; fica-se aterrado quando se vê um leproso ou um ser humano com elefantíase...

 Tudo isto é matéria que aparece na correspondência do militar para a família e amigos e entra nas obras literárias, claro está;

5. Tal como os estudos historiográficos, a propaganda apologética, qualquer obra de ficção tem de ser dimensionada pelo tempo em que foi escrita e publicada. Da análise que faço à literatura da guerra colonial da Guiné, consigo distinguir as seguintes fases:
  • as obras publicadas até 1974, nelas prepondera o heroísmo e a exaltação das qualidades do soldado português, há situações específicas como um diário que foi publicado no Jornal da Bairrada, em pleno Estado Novo, e quando o autor, também durante esse regime deu corpo a um livro, este foi apreendido pela censura (Tarrafo, de Armor Pires Mota); 
  • há literatura encriptada, é o caso das obras de Álvaro Guerra; com o 25 de Abril, o azimute muda de direção, crescem as críticas à guerra, há mesmo assassinatos de caráter, e nesta literatura tantas vezes contundente surgem obras que hoje merecem atenção nas universidades, é o caso do romance Lugar de Massacre, de José Martins Garcia; 
  • tenho para mim que é nas décadas de 1980 e 1990, quando o antigo combatente passa a ter mais disponibilidade e serenidade face aos acontecimentos vividos, que vão surgir obras de inegável valor no campo romanesco; 
  • é na viragem do século que faz aparição a literatura memorial, hoje a vanguarda desta ficção, é um amplo leque que vai da poesia popular, passando pelos diários, recordações fragmentadas, singelas histórias de unidades militares, e muito mais.

6. Tudo conjugado, temos o campo da investigação, o ensaio antológico, a análise política; e, na sequência diacrónica a literatura da guerra colonial tem de ser apreciada no tempo em que foi escrita e no território em que se combateu. É de uso indispensável, doravante, para ser compatibilizada com o que dizem os factos históricos, pois há imensos relatos que podem servir de contraponto ou validação de documentos: dou o exemplo dos depoimentos de antigos combatentes do BCAV 2867, que combateu na região de Tite (sul da Guiné) nos anos de 1969 a 1970, e que aparecem ao lado de documentação do PAIGC depositada na Fundação Mário Soares.

Poderá dizer-se que na sua generalidade esta literatura não prima pela grande qualidade, mas há um acervo de obras (e noutras capítulos ou parágrafos) que farão obrigatoriamente parte do que melhor se tem escrito na nossa contemporaneidade.

É a análise destes pontos que pretendo fazer e debater neste auditório. 

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24468: Notas de leitura (1596): "O Capitão Nemo e Eu, Crónica das Horas Aparentes", por Álvaro Guerra; Editorial Estampa, 1973 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
O comentário é óbvio, talvez uma banalidade: não há nada como revisitar um bom livro e descobrir nele outra dimensão de luminosidade e inspiração; ou no caso vertente, apreciar com outros olhos aquele, na ótica de quem aqui está a escrever, é o mais belo parágrafo da literatura da guerra da Guiné. O Capitão Nemo e Eu, publicado em 1973, encerra um ciclo em que é indisfarçável a atração de álvaro Guerra pela técnica do Noveau Roman, um movimento literário que fez furor a partir do final da década de 1950 e que teve cultores que ainda hoje são classificados como gigantes da Literatura, caso de Claude Simon ou Nathalie Sarraute ou Alain Robbe-Grillet. A partir de agora, o estilo de guerra altera-se e para meu pesar os temários guineenses desaparecem. Este livro é profundamente autobiográfico, Guerra foi ferido em combate, recomposto partiu para Paris, dessas andanças aqui faz registo. Lastimável é que esta obra permaneça no limbo, terrível imerecimento. E fico feliz de a ela voltar e de vos dar a reler o tal parágrafo cimeiro da literatura que a nós diz respeito.

Um abraço do
Mário



O mais belo parágrafo da Literatura da Guerra da Guiné

Mário Beja Santos

"O Capitão Nemo e Eu, Crónica das Horas Aparentes", por Álvaro Guerra, Editorial Estampa, 1973, representa a despedida do escritor das temáticas da guerra da Guiné, território onde combateu e foi ferido.

É uma obra injustamente esquecida, muito provavelmente porque ainda está marcada pela corrente do Noveau Roman, que tanto seduziu o escritor na primeira fase da sua carreira, hoje atrai mais os estudiosos, continua a desorientar profundamente o leigo que nela mergulha.
Álvaro Guerra despede-se e sai pela porta grande, vamos encontrar neste seu romance páginas admiráveis, logo a abertura:
“Que perdi a memória – dizem. E logo dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no teto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos retângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas...”.

É o ferido que retoma consciência em ambiente hospitalar, e logo acrescenta: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios, às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia e ao emaranhado de fios presos à cabeça, através dos quais é possível ler o meu cérebro…”. E vemo-lo na Guiné, fala na língua Fula, há por ali crianças acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, isto passava-se sobre o cheiro adocicado da terra da Guiné, e tudo se articula com outras histórias, num cosmopolitismo parisiense, que Álvaro Guerra conheceu, pois ali estudou e trabalhou antes de vir professar o jornalismo em Lisboa, no jornal República. Há reminiscências da infância, um pouco à semelhança do que o escritor praticou em obras anteriores, um carrossel de imagens que podem meter cenas taurinas, vida agrícola, a imensidão da lezíria.

A memória anda à solta naquele hospital onde o ferido se trata, e o autor lembra um capelão militar que lhes procura incutir denodo e lançar para o bom combate: “Irmãos, longe dos vossos lares, das vossas famílias, das vossas noivas, de todos os entes-queridos, tendes por consolo e por razão o amor da Pátria e a fé em Cristo que aqui vos trouxeram para defender a terra dos vossos antepassados que vieram oferecer ao gentio selvagem, com suor e sangue, a verdade, a justiça e a fé em Deus Nosso Senhor. Vós sois os soldados de Cristo que combatem os infiéis, os ímpios. Vencereis, tal como São Jorge venceu o dragão. Que Deus seja convosco, meus bem-amados irmãos”. Depois, suportando mal os 47ºC à sombra, inundado num suor incrivelmente espesso, o capelão almoçava carne de vaca com molho picante, na messe. “Aplicado, ruidoso, tasquinhando o bife, sem se distrair do apetite, lutava com a mão sapuda contra o permanente ataque dos mosquitos”.

O doente já se passeia de muleta, no jardim, à sombra de castanheiros e chorões, volta ao Forreá, a Contabane, de novo conversa na língua Fula, o espírito anda num vaivém, as feridas se hão de curar, há talvez feridas que nunca passem, e de novo o passado entremeado com tudo o que se passou naquele Sul da Guiné que levou Álvaro Guerra ao hospital, por ali ciranda também um anjo branco que serve de ponte entre o passado e aquele encaracolado presente.

Estamos a caminho do parágrafo mais admirável de toda a literatura da guerra da Guiné. O alferes recorda a viagem de avião para a Guiné, tudo começou com uma manhã fustigada por vento gelado. “De tudo o que espreitei lá de cima, nas longas horas desse voo, se devem referir três pontos cruciais: a linha de espuma branca que separava o deserto do mar, uma ilha cor de ferrugem, sem vegetação nem água, onde o avião pousou e levantou; e o pântano onde o verde escuro do mato alternava com o quadriculado dos arrozais e os minúsculos círculos das moranças. Foi no meio desse pântano que o avião desceu e me deixou. Durante dois anos, por mais de uma vez, amaldiçoei os fidelíssimos enviados do Infante que se aventuraram até à foz do Geba.
Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”
.

Naquele hospital ele sabe que a tudo o que se passou e foi arrancado, entre a vida e a morte, e desabafa a alguém: “Ao princípio, tinha medo de adormecer, porque chegavam os fantasmas, as explosões, os tiros, o sangue, o sorriso de Safi, uma aldeia a arder e os gritos das pessoas. Por fim, consegui olhar para a cicatriz, sem me lembrar de muitos pormenores. Pois é. Tudo passa. Por fim, pensei que tinha perdido definitivamente qualquer coisa que só agora julgo saber o que é”.

E segue-se a viagem a bordo do Nautilus, com o Capitão Nemo. Nem tudo ficou para trás esquecido, como o autor adiantará:
“Desmontar uma pistola metralhadora foi a tarefa mais complexa e inquietante que até hoje executei, talvez apenas superada pelo trabalho de a montar com correção. Experimentava depois uma falsa sensação de consciência em paz, ao verificar que a culatra oleada deslizava impecavelmente. Até ao último momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem, porque nunca o instinto foi tão feroz como quando tudo isso aconteceu, ao cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa ficou liquidada para sempre, e nunca mais um dever cumprido trouxe paz à minha consciência”.

E o Nautilus prossegue viagem, mas o poder da memória é mais forte, e de novo se regressa à Guiné por uma outra viagem que até pode ser de caravela, e onde se guardam aspetos que maravilharam os primeiros descobridores ou aventureiros, como o voo fulvo do faisão, os grous emigrantes sobre as bolanhas, a gesticulação do macaco cão, e cruza-se com Mariama, à cabeça a roupa de lavar – Tanaala? No pindá? E como se estivesse profundamente angustiado, como criatura de Shakespeare, Álvaro Guerra interroga-se: “Se não é esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir?”.

Aqui se fecha o livro da memória guineense, ou quase, porque somos forçados a interpelar o que ali se passou, como ele o faz e descaradamente naquele ano de 1973 em que pontificava a censura:
“Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas e, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao Jardim Zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”.

E tanto quanto me é dado saber, para meu pesar, este escritor vila-franquense a quem a sua terra natal lhe dedicou uma bela escultura perto da nova biblioteca à beira-rio, como se contrariasse as recordações dessa guerra feroz e persistente, não voltou à Guiné, pelo menos em literatura, ficou aquele parágrafo que é ímpar e tudo leva a crer que jamais será ultrapassado.

Álvaro Guerra na Guiné, em 1962, imagem do Museu do Neorrealismo, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24458: Notas de leitura (1595): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24316: Notas de leitura (1582): Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
O escritor Álvaro Guerra esteve na Guiné entre 1961 e 1963, os seus primeiros livros guardam memória da vida que levou no Sul, ele foi um combatente na região Sul, aqui recebeu ferimentos. Os livros "A Lebre", "O Disfarce", "Memória" e "O Capitão Nemo e Eu" (este de 1973) estão salpicados de episódios de guerra e de fascínio por todos aqueles horizontes de floresta, mistérios e afetos. "Memória" é um processo experimental e não um livro de contos, como alguma crítica anota. É uma escrita quase automática, textos fragmentados, por eles perpassam tiroteios na mata, recordações de infância, amores parisienses, o esplendor da natureza africana, até um episódio da chegada da sua unidade militar à Guiné em 1961, quando, à falta de instalações, foram metidos no Liceu de Bissau onde ocorreram cenas hilariantes. Dentre esses textos fragmentados o que se intitula "Ponta Tenente" é uma elegia de paixão perante a exuberância da natureza, pujante, mas onde o clima e a paragem de civilização podem reverter a favor das leis da selva, talvez seja esta a grande metáfora de construir e abandonar, a selva sufoca tudo quanto os homens construíram e abandonaram.

Um abraço do
Mário



Revisitar o livro "Memória", de Álvaro Guerra

Mário Beja Santos

Álvaro Guerra foi combatente da Guiné (1961-1963), recebeu ferimentos, depois de regressar estudou em Paris, onde viveu até 1969, praticou jornalismo em Portugal, foi diplomata. Em termos literários, esboçou inicialmente uma atração pelo Neorrealismo, em Paris afeiçoou-se pelo movimento Nouveau Roman, que teve entre as suas figuras mais representativas Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor e Claude Simon. Tratava-se de uma arquitetura narrativa de fragmentos, prosas aparentemente desencontradas, muitas vezes sem sequência cronológica, fez voga poucas décadas e não deixou continuadores, apesar de grandes criadores literários, como José Saramago, terem urdido construções espessas, autênticos blocos sem cedências a pontuação, irem beber ideias a tal processo narrativo.

"Memória" é uma das primeiras obras de Álvaro Guerra, abre com um tropel discursivo em que a sua memória regressa ao mato, numa cadência alucinante: “no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha que não fiz e matava e no meio desse calor morria e me abria o caminho da justiça sem voz…”.

Houve quem escrevesse que era um livro de contos, não acredito, são textos recitados à volta de um eixo central, é o que vem à memória, quase de forma automatizada, há infância, há mesmo um passado colonial guineense que ele vai descrever admiravelmente no texto Ponta Tenente, falará dos seus amores em Paris e não escusará dizer-nos o que pensava da sua identidade: “Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sonho, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade-destino”. Um dos seus textos deste seu livro foi escolhido por João de Melo para a antologia "Os Anos da Guerra", tem seguramente a ver com a sua chegada a Bissau em 1961:
“A companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, quadros pretos, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio, bicos de Bunsen, estalactites e estalagmites, poliedros, frascos, boiões, um esqueleto muito pouco convincente e, ainda, como extra ali colocado para maior comodidade da tropa, alguns fardos de palha. Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro”.
A dita soldadesca ali montou a sua logística, adaptou-se, a palha serviu de colchão, apareceram cozinhas rolantes com uma refeição quente, houve protestos, até se brincou com o esqueleto.

Mas é o texto intitulado "Ponta Tenente" que merece as honras da casa, no que tange às memórias guineenses. Pode muito bem ter acontecido que Álvaro Guerra tenha conhecido os escombros desta granja implantada no Rio Grande, rebuscou dados históricos e deu-nos uma prosa aliciante, injustamente esquecida:
“Sangrada a terra por viagens sem regresso que levaram pais e filhos nos bojudos porões dos veleiros, restou da sangria a dissimulada lembrança e o silêncio e a vontade de Deus que tudo pode, até chegar e instalar-se o Tenente, o branco, que parecia não vir buscar nada e pelejou ao lado dos homens contra a pilhagem de Amadu Paté Coiada, régulo do Gabú, e contra o veneno de serpentes, os insetos, as febres, os tornados, a sede e a traição das onças e dos enviados do chão francês. Durante a guerra, montou quartel à beira do Rio Grande, junto do Cais dos Escravos; pelo Tcherno Kali possuíam os dois mais fogosos cavalos da região e repartiam entre si as mais belas virgens, em haréns de pacotilha, sem ofensa de Cristo e de Alá…”.

O tenente dedica-se à agricultura, há um vapor, de nome Maria, e cujo capitão, o cabo-verdiano Vicente, transporta as suas laranjas para o mercado de Bolama. Estas laranjas atingem uma carga simbólica que toma conta da narrativa, medram numa autêntica luxúria, é uma reprodução que abre caminho a uma vitória da agricultura, algo sem precedentes, um estranhíssimo milagre saído do ventre da terra:
“Os pés de laranjeira trazidos da metrópole com mil cuidados puseram-se a crescer, floriram um ano depois, deram as primeiras laranjas no segundo e, a partir do terceiro, o Tenente podia ter enchido com eles uma frota de cinco ou seis barcos iguais ao vapor Maria, na época da colheita, quando Ponta Tenente cheirava a laranja a três milhas de distância e grandes montes de frutos apodrecendo ao sol ladeavam a álea das acácias rubras que iam do tosco cais de tábuas de pão-sangue até à casa grande. Experimentadas como adubo nas searas, as laranjas ajudaram a crescer um amendoim ligeiramente adocicado e grossas e longas raízes de mandioca não totalmente brancas mas rosadas. Passados anos, Ponta Tenente florescia: ananases e abacaxis enormes e dulcíssimos também cresceram e se multiplicaram, o decrépito vapor Maria passou a fazer a viagem três vezes por mês, mas não era possível deslocar sequer a quinta parte da produção. Não só as laranjas apodreciam em Ponta Tenente. Legiões impressionantes de formigas pretas investiam periodicamente a casa grande, o armazém, a loja, que círculos de fogo tentavam defender dos ferozes ataques: gibóias, surucucus, cobras-verdes abundavam nas proximidades e realizavam incursões frequentes atraídas pela abundância, sem falar nos fedorentos saninhos, nas lúgubres hienas, nos destruidores bandos de macacos”.

Dá-se o envelhecimento do tenente, fica artrítico e grande consumidor de aguardente de cana ou vinho de palma. Inopinadamente, o vapor Maria um dia trouxe a mulher e o filho do tenente que não o viam há 14 anos, não suportaram o clima e reembarcaram no vapor, no meio do odor enjoativo do gergelim e dos ananases. Vieram as pragas da mosca, aquela empolgante civilização da Ponta Tenente vai gradualmente chegar ao sono profundo, a selva reocupa o lugar espoliado, a presença humana entrou em vias de extinção: “Nesse ano, morreu o Tcherno Kali, longe, no exílio do chão de Cacine. Meses depois, o tenente mobilizou tudo o que sobrava da população da tabanca para a colheita das laranjas, que são particularmente doces e sumarentas, e em número impressionante. Montanhas de laranjas rodeavam a casa grande, a álea das acácias rubras, e começaram a decompor-se, a espalhar um cheiro intenso, doce primeiro, acre, depois, à espera de uma frota imaginária que havia de as restituir à sua origem, porque o Tenente gritava, bêbado, trôpego, agitando uma das muletas como um sabre, nos inconcebíveis limites da loucura, ‘Vieram da China, hão-de ir para a China!’ ”.

E este texto parabólico sobre o mundo tropical onde as regras vegetais podem ter uma ordem bem contrária à dos humanos deixa o seu recado, através da simbólica de que tudo pode crescer naquelas terras úberes da Guiné, e por isso também nos fala da vingança da selva, de que tudo pode apodrecer, pode mesmo dar-se uma ofensiva da baga-baga que reduz ao estéril a exuberância de uma agricultura florescente e a terra pujante definha, verga-se à erva-daninha, ao mortífero clima.

A obra Memória bem merecia ser reeditada, revela a capacidade literária de um Álvaro Guerra ainda jovem e ainda muito ligado à sua experiência guineense.

Monumento a Álvaro Guerra em Vila Franca de Xira
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de Maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24309: Notas de leitura (1581): A economia guineense em 2017: oportunidades de import-export do lado português (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20619: Notas de leitura (1261): Longas Horas do Tempo Africano, por Manuel Barão da Cunha; 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Barão da Cunha, um caso sério de reincidência na literatura da guerra colonial, um apóstolo da sua difusão organizando tertúlias entre Lisboa e Oeiras, desta vez convoca um elevado número de testemunhos que referenciam o homem e a sua obra.
Tendo começado a escrever ainda no Estado Novo, sobressaiu pelo cuidado posto na exaltação dos seus soldados, na satisfação expressa pela obra feita. Vê-se claramente que tem o seu coração repartido por Angola e pela Guiné. E é admirável este seu trabalho alquímico de mexer e remexer nas coisas do passado, o chamamento que faz de vivos e mortos que pertencem à sua história, participantes de toda a sua vida militar e até civil.
Deve-se a Manuel Barão da Cunha uma enorme gratidão coletiva por ser um porta-bandeira sem rival no dever de memória, trazendo-nos à presença toda e qualquer pessoa que calcorreou o império ou nele combateu. É uma dívida de peso, impagável. Mas ele também não se importa.

Um abraço do
Mário


Longas horas do tempo africano, por Manuel Barão da Cunha

Mário Beja Santos

Num estudo recente sobre as cartas de guerra, uma investigação de Joana Pontes intitulada Sinais de Vida, Tinta-da-China, 2019, esta conhecida investigadora e jornalista observa que a generalidade da correspondência estudada confina-se a um tempo demarcado, o da comissão militar, aos lugares que o combatente percorreu ou onde vive, não há um entendimento do fenómeno da guerra no seu todo, as motivações de fundo, acrescendo que com o passar dos anos, um pouco como o passar dos meses da comissão militar, é percetível o desalento e a vontade de regressar. Serve este preâmbulo para abrir caminho a uma outra consideração: toda a literatura da guerra colonial tem que ser ponderada no tempo em que se publicou, conheceu sucessivas etapas. Não é homogénea, o que se escreve sobre a Guiné tem particularidades, não se encontra na literatura de guerra angolana ou moçambicana. Qualquer relato remete-nos para a localização e a natureza do inimigo. Um exemplo mínimo: quem escreve sobre a Guiné inclui, inevitavelmente, rios e rias, lodo, diferenças de maré, humidade excessiva, calcorrear quinze quilómetros nos emaranhados de uma floresta-galeria provocam uma exaustão sem paralelo; quem escreve sobre Angola e Moçambique fala em longas distâncias, viagens de centenas de quilómetros, operações com montes e vales.

O que se vai espelhar na literatura, consoante o palco e a experiência vivida pelo combatente. Ler Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Cristóvão de Aguiar, José Brás, Luís Rosa, é perceber como estes homens falam de um tempo, de lugares, de situações distintas, como distintas foram as perceções que eles registaram da guerra que viveram. E o mesmo se pode dizer de escritores como João de Melo ou António Lobo Antunes, em Angola, ou Carlos Vale Ferraz ou António Brito, em Moçambique.

E o fenómeno literário também é irradiante, pois abarca romance e conto, memórias, ensaio, poesia, reportagem, história e diários. Atenda-se que um significativo número de escritores faz uma só “viagem”, memórias ou romance, escreve-se uma vez e não se regressa. Há os reincidentes, caso de Armor Pires Mota e Manuel Barão da Cunha. Curiosamente, ambos escreveram na fase de arranque, sob a forma de epopeia, de gesta, da glorificação da obra do soldado, da exultação da camaradagem e do destemor de gente humilde que apanhou o início das guerras.

Manuel Barão da Cunha 

Manuel Barão da Cunha tem vasta obra, todo começou com um livro memorial, Aquelas Longas Horas, 1968, edição da Mocidade Portuguesa. Combateu em Angola, ali estava em 1961, conheceu ásperos tempos, irá intervir em regiões cruciais, como Nambuangongo, participou na operação Viriato. Estará na Guiné, anos depois, na intervenção direta, fazendo operações em santuários do PAIGC e depois na quadrícula, no Leste, no regulado de Pachana. Em 1972, reciclou o que escrevera, com novos averbamentos, e publicou Tempo Africano. Escreverá posteriormente A Flor e a Guerra, em 1974, na Parceria António Maria Pereira. É um registo distinto, tem pouco de épico ou glorificador, ressalta uma visão amargada, é um homem doente, ferido, seguramente a desiludir-se, se tivermos em conta o que escreveu.

Depois, como um alquimista, passou a torcer, a retorcer e a distorcer as diferentes narrativas de guerra. O essencial das suas memórias tem a ver com a Angola de 1960 a 1962 e a Guiné de 1964 a 1966. Foi um pioneiro desta escrita, faça-se-lhe justiça. Já uma vez escrevi como ele fala dos seus soldados, das obras que deixarão em vários pontos de Angola e da Guiné, segundo um princípio axial: “A obra ficava, o homem partia. A obra ficava para outros homens e o homem partia para outras obras”. Fazendo e refazendo o Tempo Africano foi tratado como farinha espoada, a narrativa passou a compartimentar-se em andamentos, e onde o autor se distanciava de tudo quanto contava, foi-se gerando uma aproximação autobiográfica, com o recurso a um alter-ego, Pedro Cid, que vai dialogando com um jovem, em variadíssimas situações que metem repastos e encontros com outros veteranos de guerra. O jovem, Francisco Adão, pergunta, Pedro Cid responde, ao sabor da cronologia. Tudo começa em Angola, estamos em janeiro de 1960, Pedro é um “dragão”, um jovem alferes que comanda mancebos naturais ou residentes em Angola. E assim chegamos aos acontecimentos de fevereiro de 1961, com os ataques a Luanda e musseques periféricos. Pedro é um observador privilegiado, cabe-lhe ir a Nambuangongo com os seus “dragões”, seguir-se-ão outras dolorosas missões, e mesmo autobiográfico retoma-se a atmosfera de Aquelas longas horas, dando ênfase aos comportamentos militares de exceção. Gente que aparece agora a depor, entre muitíssimos outros depoimentos na obra mais recente de Manuel Barão da Cunha, "Longas Horas do Tempo Africano", 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019.

Pedro regressa a Portugal, estará em Lamego nas Operações Especiais. E em 1964, parte para a Guiné, na CCAV 704. No início, faz parte das forças de intervenção, vai ao Sul e depois ao Morés, volta agora a falar nesta operação Tornado que durou cerca de 80 horas. E depois passa para a quadrícula, estará no Leste, fala em Bajocunda e Copá, vive em Amedalai, sede do regulado da Pachana, deixarão obra. Pedro Cid regressará a Angola entre 1969 e 1971.

O seu novo livro recolhe depoimentos de amigos, de companheiros de estrada, de camaradas que o admiram, alguns deles foram seus militares: o escritor João Aguiar, o General Rocha Vieira, o Engenheiro Anacoreta Correia, o Professor Henrique Coutinho Gouveia, entre tantos outros. A edição é ricamente ilustrada com desenhos do pintor Neves e Sousa. Uma autobiografia num livro de consagração do escritor. Fala-se da sua preparação, o Colégio Militar é uma referência. É meticuloso nas suas referências. Quando fala da operação Viriato, anota: “Durante 36 dias e 36 noites e ao longo de 1419 km deparámo-nos com mais de 20 ações de combate, incluindo emboscadas, muitas das quais não foram registadas por terem sido atingidos militares de outras unidades, num total de 3 mortos e 38 feridos; mais de duas centenas de obstáculos, alguns constituídos por 4 e 5 árvores empilhadas ou embondeiros gigantes, fazendas destruídas, incluindo casas e viaturas; abrigos próximos da picada, para facilitar a emboscada".

Livro de uma vida militar, nele acorreu um conclave de diferentes protagonistas de todo este itinerário que depois se prolongou pela vida civil, um trabalho proficiente na Livraria Verney, onde começaram as afamadas tertúlias Fim do Império, que hoje se derramam por diferentes espaços, acolhendo apresentação de obras de múltiplos olhares, tal e tanto é o incansável dever de memória a que Manuel Barão da Cunha se entrega.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Era compreensível que os acontecimentos da Ilha do Como merecessem amplo destaque na gesta do bardo. Espero que quem ali combateu naquele terrível penar aqui venha exprimir outros pontos de vista, narrar outros episódios, clarificar situações que ficaram no olvido. A história da Unidade do BCAV 490 é parcimoniosa, como se disse, faz-se referência a um anexo, que não encontrei e se algum dos confrades o possuir bom seria que aqui se referenciasse outros episódios que não couberam na poesia nem nos testemunhos. A imaginação de quem acompanha o bardo saltitou para as belezas da natureza, sempre irresistíveis, a despeito das aflições e sofrimento vivido. Repare-se na descrição que Alpoim Calvão faz de uma missa ao ar livre e o maravilhamento do céu e das águas, a par da comoção dos mortos e da emoção dos vivos.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (24)

Beja Santos

“Temos muita companhia
já com pouco pessoal:
coxos, doentes e feridos
vão indo para o hospital.

Há muito tempo passado
e sempre a mesma labuta.
Há quase dois meses que se luta
e ainda há muito malvado
que tem que ser acabado
o bando que cá existia
é uma patifaria,
que dá cabo da rapaziada,
mas isso não lhes vale nada,
temos muita companhia.

Em duas ocasiões
no meio dos terroristas
morreram dois paraquedistas
deram gritos de aflições.
Fizeram muitas operações
dentro daquele matagal,
mas quase sempre se deram mal
devido a tantos bandidos.
Por isso, os pelotões reduzidos
já com menos pessoal.

Um dia Cauane atacaram
foi atingido Joaquim Augusto,
apanhando um grande susto
quando as granadas rebentaram.
No sacristão também acertaram,
dando grandes gemidos.
Com as mãos e dedos perdidos
Quítalo e o sapador doutra vez,
e em pouco mais de um mês
coxos, doentes e feridos.

Dois paraquedistas se perdiam
longe de S. Nicolau,
o caso esteve bem mau
porque entre os bandidos se viam.
Indicados por um avião saíam
sem perderem o moral.
Será isso o principal
no soldado cheio de heroicidade.
E os feridos com gravidade
vão indo para o hospital”.

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O tom pungente que o bardo usa, vamos encontrá-lo em obras do tempo e posteriores. Contemporâneo, temos os relatos de Armor Pires Mota e Alpoim Calvão. Naquele Sul, de 1963 em diante, andaram Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Luís Rosa, José Brás, António Loja, Idálio Reis, entre outros. O sul de Mejo, Guilege, Gadamael, Cacoca, Sangonhá, Gandembel, Cacine, Catió. Páginas de fraternidade, de lástima pelas perdas, de revolta pela construção de aquartelamentos feitos com tanto de sangue, suor e lágrimas e depois abandonados. E mesmo nessa apoteose de sofrimento ou mágoa há a extraordinário revelação do feitiço africano, a descoberta de uma natureza viva.

E aqui lembro Leonel Olhero e o seu livro “Ultrajes na Guerra Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria”.
Primeiro, uma trovoada tropical:
“Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o Sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.

Agora o Furriel de Cavalaria embarca num Sintex, vai a Bula buscar salários, assombra-se com a travessia do rio:
“Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água, bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera, de olhos tristes e adiados”.

Mas vamos descer até ao Como e ouvir o que escreveram os biógrafos de “Alpoim Calvão, Honra e Dever”:
“Uma operação tão longa como a Tridente, que decorria há já cerca de mês e meio, sempre com duros combates e em que os estacionamentos temporários eram desconfortáveis e penosos, tinha necessariamente um impacto negativo no estado físico e anímico do pessoal. Mas o esforço compensava. Era notório que a actividade inimiga esmorecia, a resistência era agora fugaz e em nada se comparava já à bravura dos combates travados no início da operação.
O dispositivo inimigo nas ilhas de Caiar, Como e Catunco estava praticamente desmantelado, o prestígio do PAIGC e dos seus chefes abalado, a sua confiança desaparecera, o respeito e temor pelas autoridades portuguesas era evidente.
Tinha entretanto o Tenente Calvão criado um núcleo de guias guinéus que com os seus camaradas metropolitanos partilhavam as mesmas canseiras e os mesmos perigos. Havia, no entanto, dois homens que o seguiam para todo o lado como sombras e aos quais Calvão ficou eternamente grato pela coragem, desinteresse de si próprios e dedicação que sempre revelaram: um do Bombarral, o José António; e outro um Manjaco do Pecixe, o ‘Touré’. Mais tarde, num jornal, Alpoim Calvão recordou um caso ocorrido durante aquela operação e que tão profundamente o marcou:
‘(…) Os sucessos da guerra tinham causado várias baixas na minha Unidade. Pedi ao Capelão Militar que acompanhava as forças em operação para rezar uma missa pela alma dos mortos. Numa manhã, na praia onde estava localizado o estacionamento, preparou-se a realização da cerimónia. Aliás, tudo o mais simplificado possível: o altar era um caixote que servira para transportar rações de combate e o templo, o ar livre, com o mais maravilhoso dos tectos: um céu azul, incomparável.
Mal barbeados, sujos, com as faces vincadas pelo cansaço e pela tensão da luta, os homens foram-se chegando e a missa começou. Juntaram-se-lhes, por serem católicos, alguns dos carregadores negros que acompanhavam as forças. O profundo silêncio era apenas alterado pela voz do celebrante e pelo barulho do mar, que, em pequeninas ondas, se enovelava na praia.
Uns de joelhos, outros em pé, os homens seguiam, ou melhor, viviam o santo sacrifício. Acabrunhados pela morte de alguns camaradas, sentiam a necessidade daquele diálogo com Deus e muitos deles, pela primeira vez, souberam o que era a Missa.
Eu estava de pé, um pouco apertado, duplamente comovido pela lembrança dos mortos e pela emoção dos vivos.
E num deslumbramento, numa autêntica revelação de ecumenismo, vi, sobre a minha direita, alguns guias muçulmanos que olhavam a cena com muita dignidade e compostura e procuravam participar nela, orando também ao mesmo Deus, pelo descanso das almas dos que tinham caído e pela vitória das armas portuguesas’.”

E os autores chegam ao termo do seu relato:
“Decorridos mais de dois meses sobre o início da Operação Tridente, concluiu-se que militarmente nada mais havia a fazer na zona, pelo que foi decidido o regresso de todas as forças em acção, ficando apenas montado um aquartelamento em Cachil, onde foi instalada uma Companhia do Exército com a missão de controlar as margens do rio Cobade, numa posição estratégica muito importante para o reabastecimento de Catió. Sendo de prever que dentro em breve aquele local voltaria a estar sujeito a uma intensificação dos ataques, tornou-se necessário manter ali uma LDP em permanência, de modo a garantir o regular abastecimento do aquartelamento de água, mantimentos e munições. Às 12h00 do dia 22 de março, o DFE8 embarca no ‘Bor’ rumo a Bissau, onde chega na manhã seguinte. Era o fim da Operação Tridente”.

(continua)

 O bardo a caminho da Ilha do Como

O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como

O bardo faz leituras na Amura, inspira-se junto da velha peça de artilharia.

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 arribou à Guiné, descobriram o calor de estufa, o desconforto de viver aquartelado, vão agora partir, cada Companhia para seu lado, percebe-se que o vate alinha na CCAV 488, vai dizer cobras e lagartos da comida, conviria que nos esclarecessem por onde se repartiram, onde ficou inicialmente a sede do batalhão, quando começaram a levar pancadaria, mais adiante irá falar da primeira emboscada.
Hoje associamos o escritor Álvaro Guerra, contemporâneo de Santos Andrade, no desembarque em Bissau, com os bizarros primeiros tiros, logo a seguir daremos a palavra a alguém que nos faz companhia na blogue, o Zé Brás e o seu incontornável romance "Vindimas no Capim".

Até à próxima, com um abraço,
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (6)

Beja Santos

“Até que cheguei à Guiné,
a viagem foi regular.
Na fábrica abandonada
vim eu aqui aquartelar.

Houve rapazes a enjoar
dos balanços que o barco dava.
Eu era um dos que estranhava,
mas não cheguei a vomitar.
Só me vinha o mal-estar.
Depois de beber o café,
passeava até à ré,
fazia apetite à comida.
E foram 5 dias nesta vida
até que cheguei à Guiné.

Aos 4 dias de jornada,
vínhamos bem viajando,
uma cabeçada íamos levando
no meio da água salgada.
Do barco não se aproveitava nada
se tivéssemos tido esse azar.
Isso dava que falar:
a morte de tanto indivíduo!
Como isso não foi sucedido,
a viagem foi regular.

O barco esteve ancorado
até que nós desembarcámos
e em seguida nós chegámos
a este quartel mal arranjado,
com carros velhos por todo o lado.
Que coisa disparatada!
Só na parte da madrugada
nós conseguimos dormir
com tanto mosquito a zumbir,
na fábrica abandonada.

O calor não se aguentava
aqui dentro do quartel
o nosso Tenente-Coronel
disso não se importava,
e serviços nos destinava,
não nos podíamos desenfiar
fartávamo-nos de trabalhar,
a carregar camionetas de entulho
e a 27 do mês de julho
vim eu aqui aquartelar.”

********************

A viagem e o desembarque em Bissau são dois momentos clássicos na literatura memorial da guerra. Irá fazer-nos companhia agora o escritor Álvaro Guerra que combateu e foi ferido na Guiné e que legou no conjunto das obras iniciais uma série de referências à sua comissão. Em “Memória” tem um parágrafo de rara beleza:  
“Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade de destino”.
Nesta fase da sua vida literária, Álvaro Guerra revelou-se um aficionado, direi incondicional, do novo romance, corrente em que a França esteve na vanguarda com nomes de coturno mundial como Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute e Claude Simon. Escrita de fragmentos, parágrafos velozes, com tiquetaques, regressos permanentes, remissões a beirar o surreal. Vejamos como arranca este romance Memória:
“no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha que não fiz…”.

A comissão de Álvaro Guerra foi contemporânea da comissão de Santos Andrade, daí a sintonia que é um acaso de felicidade entre este texto com desembarque e instalação e os versos do nosso poeta da BCAV 490:
“A Companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, quadros pretos, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio, bicos de Bunsen, estalactites e estalagmites, poliedros, frascos, boiões, um esqueleto muito pouco convincente e, ainda, como extra ali colocado para maior comodidade da tropa, alguns fartos de palha. Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro, pois aquilo era Património do Estado e ‘quem escachaporrar alguma coisa tem que s’haver comigo’, após o que se fez a distribuição dos militares pelas várias salas de aula, tendo o gabinete dos professores sido reservado aos oficiais e o laboratório aos sargentos. Montou-se imediatamente um dispositivo de segurança composto por quatro sentinelas, assim colocadas: posto 1 – extremo norte do claustro, junto à retrete das meninas; ponto 2 – porta dos contínuos e pessoal menor; posto 3 – porta da Secretaria; posto 4 – extremo sul do claustro, junto à retrete dos rapazes. Revelando o exemplar poder de adaptação, começaram os militares a disputar a palha que lhes havia de servir de colchão. Então, chegaram as cozinhas rolantes com uma refeição quente, vindas dos superlotados quartéis da cidade e, marmitas na mão, logo todos compareceram a formar uma longa bicha que chegava às imediações do bairro da lata, aliás, próximo.

Acomodados sobre a palha, entre carteiras, dispuseram-se a passar confortavelmente a sua primeira noite no liceu o que teriam conseguido se não fossem os permanentes e ferozes ataques dos mosquitos o que determinou colectiva manhã mal-humorada, com judiciosas quão oportunas observações do tenente-médico.

Cada vez melhor adaptados às circunstâncias, isto é, às carteiras e restante material ex-escolar, mosquitos e camas de palha, foi-se o mau humor adoçando de tal modo que, a meio da tarde do segundo dia, se podia ver o Cabo Serapião, ao som da guitarra do 73 e da gaita-de-beiços do 91, dançando com o esqueleto a quem tinham pintado bigodes à capitão e posto no crânio um capacete, enquanto no laboratório os sargentos assavam chouriço no bico de Bunsen e, na sala dos professores, os oficiais jogavam póquer usando como fichas as rochas e cristais do gabinete de mineralogia. Estava o Alferes Jeremias a arriscar um belo pedaço de quartzo num full de damas e valetes, quando soaram dois tiros, do lado da retrete das raparigas. Alarme geral, abrupta interrupção das actividades lúdicas e outras, apressada procura de armas, improvisada compostura de uniformes e acessórios, corrida para o exterior.

‘Além, atrás daquela cabana! Estavam dois escondidos! Disse: Alto! Quem vem lá? Abalaram a fugir. Disparei’. E acertou, pelo menos num deles, a verdade é que havia na terra castanha uma poça de sangue e pingos que se perdiam para as bandas do bairro da lata, para todos eles o primeiro sangue, para muitos o cheiro do primeiro festim a sério, a inconsciente descoberta da íntima ferocidade, uma vingança qualquer daquele apartamento forçado. No chão, junto do quadro preto, em posição de falsos ossos só possível, o esqueleto abandonado, capacete no crânio, bigodes à capitão e maxilas escancaradas, esperava um par que continuasse a dança que mal começara”

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19771: Notas de leitura (1176): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (5) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19781: Notas de leitura (1177): "Portugal in Africa", por James Duffy, Penguin 1962 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16146: Nota de leitura (843): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos
Não é novidade para ninguém que Álvaro Guerra é um dos escritores de primeira plana no arranque da literatura da guerra da Guiné. Em todos os seus primeiros livros, até 1973, a Guiné, os temas da guerra, as figuras que marcaram o combatente, os próprios ferimentos em combate que ele descreve em prosa magnífica no seu livro "O capitão Nemo e eu", são recordações guineenses poderosas, obsidiantes.
Pode-se dizer que esta literatura entrou com o pé direito com nomes como Armor Pires Mota, Álvaro Guerra e José Martins Garcia. As motivações posteriores da escrita são outra história, já contada e ainda por contar, teremos surpresas até que o último de nós exale o suspiro da despedida.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (3)

Beja Santos

"O Tempo em Uane", conto de Álvaro Guerra

Álvaro Manuel Soares Guerra nasceu a 19 de Outubro de 1936, em Vila Franca de Xira, onde passou a infância e concluiu os estudos secundários. Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa. Em 1961, foi mobilizado para a Guiné como oficial miliciano, ferido em combate, regressou em 1963. Estudou depois em Paris e ingressou no jornalismo (República e RTP). Após o 25 de Abril foi nomeado como embaixador político. Com este ou aquele matiz, os seus primeiros livros, até 1973, afloram a guerra da Guiné. A particularidade deste conto, tanto quanto eu sei, foi a sua única incursão na modalidade do conto, é passar-se no Sul da Guiné e relatar um ainda quadro de inocência de oficiais milicianos que desconheciam a rede de informações do PAIGC. Deverá datar de 1965 ou 1966.

O arranque do conto é luminoso em várias dimensões:
“A meio da tarde, vieram três alferes de Bedanda, na canoa a motor, tendo como pretexto a dominical caça aos crocodilos. Amarraram a canoa às velhas estacas de cibe do cais de Uane e encaminharam-se para a aldeia, os três alferes, o cipaio e os dois soldados da guarnição de Bedanda, o sol a abrir as primeiras gretas da seca nos estreitos valados do arrozal, o calor a martelar a terra e as costas reluzentes dos balantas que colhiam o arroz, enterrados na lama estagnada da bolanha que se estendia, na geometria infalível dos canteiros, desde a margem do rio até à longínqua orla do mato, limite sombrio daquele infernal e extensíssimo quadrado de sol chispando na água.
Atravessaram lentamente a bolanha, enfrentando o persistente ataque dos mosquitos. O alferes gordo que vinha à frente era quem mais suava, grossas gotas a deslizarem até ás guias do bigode e, por vezes, a arderem nos olhinhos miúdos que, no entanto, espreitavam os seios das mulheres a caminho do celeiro, os balaios cheios equilibrados sobre as cabeças de ébano. Procede-se a uma troca de cumprimentos entre quem vem e quem está. Tinha havido sarrafusca em Fulacunda. Sentam-se e bebem cerveja, e descreve-se o episódio: 
- Conta lá, então, como é que aquilo se passou.
- Uma emboscada. Três mortos e cinco feridos. Um jipe espatifado. Os gajos têm armas automáticas, carabinas, granadas. E uma vontade danada de nos comerem os fígados. 
E, mais adiante: 
- Depois, houve o ataque ao comando do batalhão. Dois mortos. Os tipos saltaram arame e estiveram mesmo na arrecadação do material. 
- E levaram alguma coisa? 
- Há quem diga que sim e quem diga que não. Não se sabe ao certo. 
No silêncio a voz da mestiça recomeçou a morna, serenamente. 
- A sua mulher canta bem, seu Jaquim – disse o da cicatriz.
O homem sorriu, confuso. 
- Mais uma cervejinha, senhor alferes?
Ele disse que não. Nunca se habituara àqueles cheiros adocicados do gergelim, do mel, do coconote, misturados com o suor dos homens – o cheiro das lojas do mato. Isso e a cerveja que lhe caíra no estômago como uma pedra punham-lhe chumbo nas pálpebras. 
- Que é que vieste aqui fazer com o pelotão? 
- Caçar um bando de 50 tipos – respondeu, irónico. 
- Não sabia que esta zona ainda pertencia à tua companhia. Estás a quase 60 quilómetros de Buba. 
E o “Pau de Virar Tripas”: 
- Isso do bando que anda por aqui, é verdade? 
- Sei lá… Mas é evidente que não acredito em semelhante coisa. 
Era muito simples não acreditar, faltava-lhes a certeza absoluta de uma bala tombar um deles, eram ainda imortais, embora já saboreassem o medo, cada um com o seu plano de salvar a vida. Eram outras as próprias palavras e o modo como os quatro alferes as diziam, ali em Uane, uma aldeia Balanta com 50 e tantas moranças, a loja do Joaquim, o Posto e o celeiro, tudo por causa do arroz que os barcos, a pouco e pouco, levavam rio abaixo. O radiotelegrafista apareceu à porta e disse: 
- Há uma mensagem para decifrar, meu alferes. 
Sobrepondo-se à morna que vinha lá de dentro e que se repetia (“Qu’ê d’nha crêtcheu”), a voz cabo-verdiana do Joaquim: 
- Vou mas é mandar a patroa para Bissau.
Uma hora mais tarde, os cinquenta guerrilheiros, algures no mato, já sabiam o que é que o pelotão de Buba tinha vindo fazer a Uane”.

Se me perguntarem o que há de original na natureza deste conto, direi que é surpresa de descrever os primórdios da guerra, escapando completamente ao lápis da Censura. Estamos em meados da década de 1960, vende-se no nosso mercado interno a ideia de que aquela guerra é um vasto somatório de ações de policiamento, e aqui diz-se desabridamente que o excesso de confiança era aproveitado pela rede de informadores, rapidamente alguém fazia chegar ao mato a notícia de que vinha por aí uma operação. E há a trama do próprio conto, entra-se diretamente nos acontecimentos a descrever e traça-se em pinceladas largas o ambiente: a vinda numa canoa, os trabalhos na bolanha, o encontro entre alferes, a ida dos quatro até ao estanco do senhor Joaquim, descrição direta e seca: “Sentaram-se os quatro nas cadeiras aviadores de pau-sangue, rijas de quebrar os ossos, à volta da mesa redonda com um naperão de renda desbotado e sujo”.

Descrevem-se acontecimentos bélicos, sem o cuidado de guardar sigilo do que houve e do que vai haver. Usa-se uma linguagem desbocada e jamais ficaremos a saber se foi o senhor Joaquim, a sua mulher ou um enviado de um ou outro que foi informar o que o pelotão de Buba tinha vindo fazer a Uane. Esta a mestria do conto, ali não falta a modorra, a descontração, a inocência. E ficamos igualmente a saber que é tudo dificílimo naquele Sul que começou a conhecer o tumulto da reviravolta no segundo semestre de 1962, como hoje está devidamente esclarecido.

Penso que se fecha com chave de ouro as recensões ao livro “Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo.
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Nota do editor:

Postes anteriores de:

23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)
e
27 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)