segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quem pretenda conhecer os rumos da historiografia atual, os modos de investigar e comunicar ao grande público algo que permanece enevoado e numa teia de contradições, este livro é de leitura obrigatória. Nenhum de nós desconhece o que se passou na manhã de 16 de Dezembro de 1972, num pequeno local do Tete, tem vindo a ser referido em artigos, reportagens, filmes e romances. A 6.ª Companhia de Comandos recebeu ordens de "limpar" aquele local, e o morticínio atingiu quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué, a Zâmbia e o Malawi. O historiador pega nos dados conhecidos e desconhecidos e desce ao local, conversa com os sobreviventes de diferente ordem: as vítimas, os missionários, os dirigentes políticos nacionalistas, os militares portugueses. O resultado é um documento prodigioso, que pode ser exemplo para outras vias da historiografia do período colonial. De leitura compulsiva, este massacre há de permanecer como um problema de consciência a aguardar apaziguamento, com a explicação e pedido de perdão.

Um abraço do
Mário


O massacre português de Wiriamu: uma extraordinária investigação

Beja Santos

Mustafah Dhada é um historiador moçambicano doutorado em Oxford e professor na Universidade da Califórnia. A historiografia da Guiné deve-lhe um importantíssimo trabalho, infelizmente nunca traduzido em língua portuguesa, Warriores at Work: How Guinea was really set free (Niwot: University of Colorado Press, 1993).

“O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada, Tinta-da-China, 2016, é uma peça da melhor filigrana dos métodos historiográficos atuais: mostrar o que é dado como consabido, pôr a nu omissões e contradições, gerar envolvimento levando os protagonistas ao local dos acontecimentos, contextualizar o que motivou o massacre e quais as suas consequências, do particular ao geral.

Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes da pequena aldeia de Wiriamu, perto de Tete, em Moçambique, na Praça Central e ordenaram-lhes que batessem adeus e que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, militares da 6.ª Companhia de Comandos abriram fogo e lançaram granadas. Incitados pelo brado “matem-nos todos”, os militares levaram a mortandade a quatro povoações vizinhas ao longo do rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabué (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ‘a terra esquecida por Deus’. No final do dia, perto de 400 aldeões tinha sido mortos e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias pelos soldados com o capim que cobria as palhotas. Peter Pringle, um jornalista inglês que procurou apurar a verdade ao tempo, e que foi expulso pelas autoridades coloniais, descreve estes factos no prefácio da obra.

Quem conseguiu escapar relatou os acontecimentos aos missionários locais, a informação chegou a Espanha e ao Reino Unido. Sensivelmente meio ano mais tarde, a 10 de Julho de 1973, em vésperas da visita de Marcelo Caetano a Londres, o jornal inglês The London Times denunciava na primeira página o massacre. As autoridades portuguesas repudiaram a notícia, chegando mesmo a negar a própria existência do lugar. Seria por via deste artigo que Mustafah Dhada, então um jovem moçambicano em Londres, teria contacto com os acontecimentos que marcariam a sua vida académica. Ao longo da sua carreira de investigador, Dhada foi publicando diversos artigos sobre esta matéria, obteve depois uma bolsa que lhe permitiu trabalho no terreno, e foi assim que ele consolidou uma investigação de décadas.

A grande surpresa, observa Peter Pringle, é que cerca de 40 anos depois do massacre, muita bruma e desconhecimento continuada a rodear a verdade daquilo que se passou, di-lo claramente: “Ao longo dos anos – em artigos, livros, revistas académicas, dois romances e um documentário, diversos autores procuraram reconstituir o que de facto aconteceu. Todavia, não tem sido fácil recompor a história de Wiriamu. Os relatos são escassos. Documentos oficiais importantes perderam-se, foram deliberadamente destruídos ou nunca existiram. Os arquivos do movimento de libertação, a FRELIMO, são incompletos. O contacto com testemunhas foi e continua a ser problemático".

O que torna este documento uma obra ímpar, de leitura obrigatória, é a metodologia e o primor da escrita, com um pendor para a reportagem (que a tem) e uma análise rigorosa no trabalho do terreno, tudo estruturado como deve ser: quem era quem na luta nacionalista e como se processava a guerra, o leitor não iniciado ficará a aperceber-se de que a história da FRELIMO incluiu rancores, assassinatos e turbulência ideológica interna; apercebemo-nos da crescente importância de Tete na evolução da guerra e como a ameaça era pressentida pelas autoridades coloniais e militares, ali se viveu, como em muitos outros confrontos, o papel dramático das autoridades locais metidas entre dois focos, como escreve Dhada: “Wiriamu e o seu régulo estavam condicionados pelos imperativos da sobrevivência e da defesa do interesse colectivo. Não lhes restava outra alternativa senão permitir o acesso da FRELIMO aos seus desfiladeiros para transporte de armas, e autorizá-las a recrutar homens na região do triângulo para ingressarem nas suas fileiras”; é relevado o papel da igreja de Tete, também ela obrigada a respeitar a autoridade portuguesa e a dar cuidados aos seus fiéis, Dhada ilustra atos de violência anteriores e outros que se seguiram a Wiriamu e qual o comportamentos dos missionários; Dhada devolve humanidade a Wiriamu, conta a sua história, mas antes, mostra-nos o que logo constou da informação e se tornou público sobre o massacre e como aos poucos as próprias autoridades portuguesas tiveram que explicar que tinha havido excessos, mas nunca dizendo quais, na Operação Marosca; são páginas muito belas as que Dhada escreve sobre o triângulo de Wiriamu, será porventura a voz do sangue que o leva a narrativa tão primorosa que mete riachos, rios e charcos e mesmo feitiçaria, como era a vida a aldeia, como este microcosmo funcionou até que tudo se extinguiu em cinzas; temos depois a anatomia do massacre, a chegada dos Comandos comandados por Antonino Melo, é um texto horripilante onde até um sentimento de compaixão comparece:  
“Em Wiriamu, as execuções correram de forma expedita. Enquanto alguns militares incendiavam palhotas cheias de pessoas, Antonino Melo encaminhava, pessoalmente, outros habitantes para a palhota dos Tenente Valete, uma das maiores da povoação. Foi uma tarefa fácil, pois muita gente já se encontrava ali devido às festividades. Em determinado momento, Antonino Melo sentiu um puxão na perna. Baixou a cabeça e os seus olhos cruzaram-se com os dela. Uma menina com menos de dez anos agarrava-se a ele com força e recusava-se a avançar. Não conseguiu libertar-se. Melo ordenou, então, aos seus homens, que retirassem a mãe da criança do interior da palhota e disse a ambas para fugir dali. 23 anos mais tarde, ao ser informada que Antonino Melo seria entrevistado no âmbito do projecto, a menina, então uma mulher adulta, pediu que lhe fosse transmitido o seu agradecimento por lhe ter salvado a vida”.

A conclusão da obra é um monumento de síntese, por ali desfilam a lógica colonial, os constrangimentos da Igreja e os seus conflitos com o poder político e militar, a importância daquele local, o branqueamento que se pretendeu depois do massacre, o que era a vida e a identidade daquelas gentes de Wiriamu. Do lado português, permanece o silêncio. E assim termina o documento histórico: “A única resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência?”.

É um livro magnífico, e até me apetece perdoar a Mustafah Dhada o incompreensível dislate de dizer que Amílcar Lopes Cabral era um engenheiro agrónomo natural de Cabo Verde.

Mustafah Dhada
Foto: Jornal Público, com a devida vénia

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Sobre o papel dos missionários católcios, em especial dos Padres de Burgos, a denúncia do massacre de Wiriamu, ver aqui:


http://ceg.fcsh.unl.pt/2018/06/14/um-galego-marcello-caetano/

Wiriamu não foi o primeiro nem o último massacre cometido pelas tropas portuguesas em Moçambique. Foi, contudo, o melhor documentado e aquele que permitiu denunciar e provar os factos. Estre os grupos religiosos presentes naquela altura na colónia portuguesa, devemos destacar os Padres Brancos e os Padres de Burgos. Estas congregações, de origem estrangeira, tinham sido autorizadas a trabalhar em Moçambique, dada a incapacidade do governo colonial para evangelizar e assimilar culturalmente a área apenas com clérigos formados nas instituições ligadas ao regime. Impregnados da nova teologia emanada do Concílio Vaticano II, transformaram a velha escola da alienação colonial numa escola da consciência crítica. Sem ser esse o propósito dos padres, muitos dos alunos acabaram por aderir à FRELIMO.

No início, as congregações tentaram manter-se num equilíbrio precário entre as partes contingentes. Porém, as atrocidades cometidas pelas autoridades portuguesas levaram os Padres Brancos a abandonar o território e os Padres de Burgos a registar cada vez melhor os factos e a denunciá-los. Acudir às instâncias superiores não foi de grande ajuda: eram ignorados ou despedidos com boas palavras. A DGS e a PIDE acompanhavam e investigavam ativamente os movimentos dos religiosos, que enfrentavam interrogatórios, penas de prisão e deportações.

Desde a direção da congregação, Julio Moure trabalhava em conjunto com outros membros e com a equipa de advogados para tentar travar as detenções e as expulsões de missionários. Ele e Miguel Buendía, um padre murciano chegado recentemente que se tinha mostrado muito diligente na denúncia das ações portuguesas, receberam uma ordem de expulsão. Porém, também receberam um relatório sobre o massacre elaborado por Domingo Kansande, Domingo Ferrão e José Sangalo com uma encomenda: sair com os documentos do país e denunciar o massacre. Apesar da pouca incidência inicial do relato, os factos chegaram aos ouvidos do britânico Adrian Hastings, um dos Padres Brancos. Hastings escolheu muito acertadamente o jornal e o momento para publicar a notícia: o London Times uns dias antes da visita oficial de Marcelo Caetano a Londres para comemorar o 6º centenário da aliança Luso-Britânica. A repercussão foi máxima: a oposição exigiu que a visita fosse cancelada, enquanto o governo de Londres defendia o regime português. As autoridades portuguesas começaram por negar a existência da aldeia de Wiriamu, posteriormente mandaram construir uma aldeia pequena num lugar de nome semelhante para levar os jornalistas e, finalmente, acabaram por reconhecer o massacre e categorizá-lo como «normal».

Durante anos, uma parte da imprensa internacional e o governo português travaram uma batalha em relação à veracidade dos factos. Neste contexto, Julio Moure e o padre Vicente Berenguer, que tinha socorrido as vítimas do massacre, desempenharam um papel fundamental: viajaram por diversos países de Europa, denunciando os massacres e o modo como os portugueses tratavam a população nativa.

(...) Vencida a Guerra Colonial, o novo país enfrentava um novo desafio: criar e desenvolver um país com uma taxa de alfabetização muito reduzida, cujos novos dirigentes careciam da formação necessária. Moure foi convidado para ocupar-se da escola da FRELIMO e ele assumiu esta nova missão com dedicação, até a emoção inicial se transformar num desencanto crescente. Julio percebeu rapidamente que a corrupção estava a tomar conta das novas instituições e fez o mesmo que tinha feito anteriormente durante a administração portuguesa: denunciar. Porém, a situação era cada vez mais complicada e, pouco depois de ter-lhe sido oferecida a possibilidade de ficar permanentemente em Moçambique pela própria Graça Machel, decidiu abandonar o país.

Atualmente, Julio Moure mora numa pequena vila em Quintana Roo, no México.(...)

Antº Rosinha disse...

"Wiriamu não foi o primeiro nem o último massacre cometido pelas tropas portuguesas em Moçambique. Foi, contudo, o melhor documentado e aquele que permitiu denunciar e provar os factos. Estre os grupos religiosos presentes naquela altura na colónia portuguesa, devemos destacar os Padres Brancos e os Padres de Burgos. Estas congregações, de origem estrangeira, tinham sido autorizadas a trabalhar..."

Wiriamu e todos os massacres da guerra do Ultramar/colonial foram bem denunciados por toda a espécie de missionários católicos e protestantes que havia tanto em Angola como em Moçambique que eram de diversas nacionalidades, italianos, alemães, espanhois e portugueses, pelo menos.

É absolutamente gratuito e até cobarde e uma "filhadaputice" o termo que "Wiriamu não foi o primeiro nem o último", como que tenham sido cometidos massacres que eles se esqueceram de denunciar ou não se preocuparam em denunciar, embora tivessem conhecimento.

De facto não devia de haver colonização...mas também não deveria haver evangelização!

Se as autoridades corriam com alguns deles, era porque muitas vezes eram denunciados pelo "paroquianos" que os evangelizavam contra o tuga.

O que vale é que agora tanto no norte de Moçambique como na grande parte da costa oriental de África, os seus fiéis têm sido muito atraídos pelo islã.

É que esses missionários só saiam das colónias portuguesas à força, tão bem se sentiam por lá, agora fogem a sete pés como este galego Júlio que já de lá se pirou.

Fernando Ribeiro disse...

Quero chamar a atenção para o facto de que houve duas "6as. Companhias de Comandos" e não uma só. Houve a 6ª. Companhia de Comandos "tout court" e houve a 6ª. Companhia de Comandos de Moçambique. É desta última que fala o autor.

Até 1969, todas as companhias de Comandos que atuaram em Angola e em Moçambique eram formadas em Angola: primeiro em Zemba, a seguir também na Quibala Norte e, por fim, nos arredores de Luanda. Só depois de se terem formado em Angola, é que as companhias de Comandos destinadas a Moçambique eram enviadas para este outro teatro de guerra.

Em 1969, criou-se um centro de instrução de Comandos em Montepuez, no norte de Moçambique, onde se passaram a formar as companhias de Comandos que em Moçambique atuaram, com um forte composição de militares da incorporação local. O próprio alferes Antonino Melo era da incorporação local. As companhias formadas em Moçambique adotaram uma numeração que começava outra vez do nº. 1:

1ª. Companhia de Comandos de Moçambique,
2ª. Companhia de Comandos de Moçambique,
3ª. Companhia de Comandos de Moçambique,
etc.