quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20153: Historiografia da presença portuguesa em África (177): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Antes de mais, permito-me relembrar a quem acompanha estes pedaços da História da Guiné que aqui no blogue se publicou em extensa recensão a obra incontornável do Padre Henrique Pinto Rema "A História das Missões Católicas na Guiné", da Editorial Franciscana de Braga, que ainda está à venda a preço módico.
Este segundo relato do opúsculo que Teixeira da Mota publicou no Bolamense em 1958 relata dois martírios, missionários mortos, bem como os seus acompanhantes. Repare-se que no segundo episódio Frei Manuel de Malpica fazia parte da Missão da Serra Leoa, o que nos reconduz ao território da Senegâmbia Portuguesa, que foi minguando até ao século XIX e depois destroçado na Convenção Luso-Francesa de 1886. Este opúsculo possui um bom recorte literário, incontestavelmente apologético: quem se oferecia para missionar devia estar mentalizado para o martírio.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (3)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, aqui se reproduz a capa do último número, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações para tal extinção. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa, inglória, de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”. No número anterior pôs-se ênfase no primeiro episódio do opúsculo referenciado pelo historiador Teixeira da Mota. Ele lembra estes folhetos que tiveram larga profusão, principalmente no século XVIII. E à data em que ele publicou esta notícia no Bolamense alguns já estavam reproduzidos. Estranhava o historiador que este opúsculo não era mencionado nas mais conceituadas investigações, como na obra de Sena Barcelos, João Barreto, D. José Ribeiro de Magalhães ou Freire Manuel de Monforte, estes dois últimos missionários.

Relatado o episódio do martírio dos Bijagós, vamos agora ao segundo caso:
Almirante Teixeira da Mota
“A notícia deste primeiro sucesso certamente move o sentimento ainda à mais insensível pedra, e quando na nossa lembrança vive impressa a magoada história pretendo com o segundo golpe aumentar mais o pesar.
Havendo pouco tempo que se tinha recolhido o Padre Fr. Manuel de Malpica da Missão da Serra Leoa, donde veio por terra à Deponga e Rio de Nuno, tendo feito nestas paragens grandes frutos em alguns cristãos que hoje vivem quase com os mesmos ritos dos gentios, e aos quais lhes posso dizer com o maior orador dos portugueses que são cristãos no credo e hereges nos Mandamentos, finalizada esta sua incumbência, que fez e concluiu com os olhos de Deus e proveito das almas, estando no Rio de Nuno com um moço do Hospício, que o acompanhava, depois de recitar naquelas estéreis e infrutíferas terras admiráveis sermões com proveito de muitas almas, lhe maquinaram e teceram tais enredos, mostrando sempre que o amavam e temiam, usando destes pretextos e pedindo-lhe se não ausentasse, ao que o religioso condescendendo a seus roubos se deteve algum tempo, que gastou em os catequizar. Mas vendo que não tinham emenda em o perseguir, tratou de se pôr nas mãos de Deus, cuidando em fazer sua viagem para a Bolola, vizinha do Rio Grande, por ter concluído por então da sua parte o desígnio da missão. Metendo-se a uns intrincados bosques por se acautelar do caminho, onde só habitavam feras e residiam monstros, principiou logo a experimentar o terrível efeito da fome, e para de alguma sorte não sentir o da sede lambia e chupava o orvalho que de manhã rociava a aurora nas folhas das plantas. E depois padecer grandes e imensos trabalhos, chegou a Bolola, e debaixo de fiança ao rei desta terra se passou à Praça de Geba, povoação cristã, de onde mandando-se pelo síndico dos religiosos que ali estava a dita fiança ou resgate, se embarcou para Bissau.

Deste Hospício de Bissau, depois de estar convalescido de algumas moléstias, foi para o Hospício de Cacheu. E depois de embarcado começou a navegar prosperamente, mas tendo a lancha dado fundo sobre o sítio chamado Bijamita lhe saíram ao encontro os gentios denominados Brames, de um rio que vai do caminho de Cacheu para Farim e si ao pé de Canhop. Ao qual sítio lhes saíram e se puseram em tom e forma de os cativarem, como costumam, tomando logo a popa e a proa da lancha; e entrando dentro não acharam resistência, mataram a maior parte dos escravos.
Desta tirania escapou por então o padre e o piloto, o padre absolvendo a todos e clamando aos gentios e dispondo aos cristãos da parte de Deus se conformassem. Outros que também dormiam, depois que o motim espertou a todos, se lançaram a nadar em forma de escaparem; e aos que ficaram, entrando a ira dos gentios, matou a todos. E este religioso experimentou o ser degolado com um traçado, permitindo Deus que o dito padre, escapando das fomes e sedes nos matos e da ferocidade de muitos bichos, viesse a acabar a vida nas mãos daqueles bárbaros, em 26 de Abril de 1743.

Para se louvar é o zelo da santa e reformada Província da Soledade, pela perseverança em que continua a mandar os seus religiosos para o exercício missionário para bem das almas de todos os inumeráveis habitantes daquela conquista, indo uns e vindo outros há cento e tantos anos, em tempo do Senhor Rei D. João IV, sendo pedidos e mandados pela sua real piedade e grandeza para conduzir ao redil da Igreja de Roma as ovelhas desgarradas pelas cegas veredas e caminhos da gentilidade. Colhendo com efeito nos primeiros anos e muitos depois conhecidos frutos de tão grande seara, expondo-os agora e a nós a esta parte aos referidos e semelhantes insultos que outras muitas vezes têm sucedido.

E por isso é necessário expressar, como é público e notório a todos os filhos da Europa que para as ditas terras selvagens navegam, o quanto vivem cativos quotidianamente da indolência e tirania gentílica”.

Findo o relato, Teixeira da Mota observa que se deduz claramente que o primeiro episódio passado nos Bijagós teve lugar entre a Ilha de Pecixe e a região de Canhobe portanto no Canal de Cajegute ou proximidades. Neste segundo episódio, a referência é confusa, mas a indicação da região de Bijamita sugere o Rio Mansoa. Na época designavam-se em conjunto por Brames os atuais Brames, Manjacos e mesmo Papéis, o que é difícil saber ao certo quais foram os autores do assalto à lancha em que seguia Frei Manuel de Malpica. Os “Rios da Guiné” não foram somente vias de comunicação pacífica facilitando o estabelecimento dos portugueses. Os episódios relatados são somente dois entre muitos outros atos de guerra e pirataria que neles tiveram lugar, e em que se destacaram os Bijagós.

Releva Teixeira da Mota que o comércio de escravos veio contribuir para o agravamento de tal estado de coisas. Estes textos de Teixeira Mota foram publicados no Bolamense em 1958.

E deste modo finda esta síntese informativa ao jornal Bolamense cuja leitura nenhum investigador das terras da Guiné deve descurar.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (175): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)

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