quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20143: Historiografia da presença portuguesa em África (176): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Teixeira da Mota era um investigador estrénuo, imparável, teve uma escola magnífica, a do Centro de Estudos da Guiné, ali deixou obra imbatível. Frequentava alfarrabistas e leilões de livros, investigava a fundo no Arquivo Histórico Ultramarino, foi bem-sucedido nessas andanças, encontrou peças preciosas.
Neste artigo do Bolamense dedicou-se a referir um opúsculo pouco conhecido onde se relatava o martírio de dois franciscanos na Guiné, em 1742 e 1743. Pelo que o leitor vai ter oportunidade de conhecer, é um documento comovente, ao nível da fé que estes missionários possuíam, na maior intensidade, e daí a aceitação que conferiam às estruturas de que padeceram até à morte. Aqui se relata o martírio de 22 de fevereiro de 1742, nos Bijagós.

Um abraço do
Mário


O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2)

Beja Santos

O primeiro número deste jornal publicado em Bolama data de 1 de agosto de 1956, trazia uma consigna: “Servimos Bolama, os governos da Província e toda a família guineense”. O jornal irá desaparecer em 1963, do que se consultou os editores não deram quaisquer explicações. Há dois aspetos surpreendentes, no cômputo destas edições: a tentativa inglória de reerguer a importância de Bolama, dela falando a torto e a direito, dedicando-lhe farto noticiário, sem descurar um aspeto etnográfico geral, mostrando imagens das diferentes etnias e realizações por toda a colónia; e procurando dados culturais que ajudassem a entender a presença portuguesa, na administração, na ocupação e até na missionação. Da leitura de todos os números, pareceu de manifesto interesse republicar um artigo de Teixeira da Mota intitulado “A morte de dois franciscanos setecentistas, na Guiné”.
Vejamos o essencial do trabalho de um dos mais prestigiados historiadores portugueses nas coisas da Guiné:
“Por feliz acaso veio-me parar às mãos um curioso folheto setecentista onde são narrados os acontecimentos que originaram a morte de dois padres da Província da Soledade às mãos de gentios.
Numa altura em que ainda não havia – ou rareavam – jornais, era através de folhetos deste género que se divulgavam muitos sucessos. Existe uma grande quantidade deles, principalmente do século XVIII. Estão neste caso dois de 1753 relatando a viagem da fragata ‘Nossa Senhora da Estrela’ a Bissau e acontecimentos ligados à reedificação da Fortaleza de São José e ainda outro descrevendo o trágico naufrágio na foz do Casamansa da corveta ‘São Sebastião e Almas’, do qual resultou a morte ou aprisionamento pelos Felupes de vários missionários, incluindo o Bispo Frei João de Faro.
O opúsculo de que nos ocupamos e os factos dele referidos não são indicados pelos que modernamente têm versado a história da Guiné. Talvez venha alguma coisa na 2.º Parte da Crónica da Província da Soledade, cuja descoberta anunciou em 1945 o Padre Dias Diniz e continua inédita. Segue-se esta reportagem de há mais de 200 anos, dos dois lastimosos casos sucedidos na Guiné em 22 de fevereiro de 1742 e em 26 de abril de 1743 com dois religiosos missionários da Santa Província da Soledade.

Primeiro caso. Embarcado o Padre Frei João de Fonte-Arcada, Presidente do Hospício da Ilha de Bissau, em canoa dele, para o fim do bem das almas, saiu desta ilha com vento tão próspero e favorável que parecia evidente sinal da sua feliz viagem. Em 22, vendo-se os moços da canoa defronte Canhop, viram que pelo rio saíam duas canoas de gentios Bijagós, em direitura a buscá-los pelo ódio que têm aos cristãos. Requerendo com piedade os cristãos aos gentios que se retirassem, eles lhes disseram e responderam que queriam água, sendo que procuravam em lugar dela sangue; os moços da canoa expressaram que se não chegassem para ela. E vendo-se que os bárbaros faziam pouco caso da nossa advertência, começaram logo a implorar o Divino auxílio. O que se verificou, porque disparando os gentios uma arma fez o seu tiro despojo da tirania e simulacro ruína da morte a um moço que na canoa tinha a incumbência de governar o leme. Vendo-se o religioso nesta aflição, porque uma das canoas contrárias estava à popa a clamar e a requerer da parte de Deus desistissem do intento por ser contra a Divina Majestade, que eles ignoravam; eles não fizeram caso, porque logo se viu um escravo chamado Mabiá ferido com uma bala, a qual não fez efeito por não achar capacidade suficiente o emprego. E também o dito Padre passado pelo peito até às costas por uma azagaia, a qual um deles lhe tinha empregado. À veemência da dor e à profusão e abundância de sangue caiu o Padre, fixados os olhos no Céu e a contemplação em Deus pedindo-lhe que perdoasse àqueles inimigos por não saberem o que faziam. Este sucesso fúnebre avivou nos corações dos escravos tão repetidas tristezas e mágoas que para as fazerem públicas eram os olhos testemunhos do pesar e as lágrimas do sentimento. Tiraram-lhe do corpo a azagaia, e para que a sua vista não multiplicasse maiores penas, o lançaram ao mar, onde em cristalino túmulo urna transparente espera a ressurreição universal. E entrando todos os gentios na canoa às azagaiadas mataram outro escravo chamado António Vieira. E atando os mais de pés e mãos só deixaram a dois para remarem, e ao Mabiá para governar o leme. E foram caminhando todos com aqueles inocentes para a Ponta Ilha em que assistem os Bijagós, e fazendo os gentios as suas costumadas cerimónias com tão desentoadas vozes, desmarcados alaridos e medonhas acções ao som de vários tambores e muitos tiros que fariam afugentar ao mais curioso de ver, com a que eles em tal caso chamam festa. Logo com discurso bárbaro prenderam novamente ao moço Agostinho pelo pescoço a uma corrente de ferro, e atado com cordão nos pés e mãos o arrastaram pelo espaço de muito tempo pelas ruas, dando-lhe múltiplas pancadas e infinitos tormentos, que para acabar a vida bastava qualquer.

Deixaram a maior execução da sua ira para outro dia. Amanheceu este, se alegre para os gentios, infausto para o corpo do Agostinho que vendo as muitas dores que padecia lho penalizavam, na certeza porém de que lhe aproveitarem a sua alma, querendo ao que parece pedir à morte tréguas, para pedir perdão de suas culpas, se soltou da ligadura com que estava preso, e do modo que pôde começou a caminhar para as margens do mar, pedindo a Deus misericórdia por intercepção de Maria Santíssima e Santos a quem se encomendava. Porém, como a debilidade que padecia o não ajudava para o intento, teve tempo a ligeireza dos bárbaros para o apanharem e começando estes a darem princípio a tão diabólica tragédia dando-lhe os mesmos ou maiores tormentos, sofrendo todos com a maior paciência e edificação dos mais cristãos, o puseram em tão miserável estado que se lhe viam patentes as entranhas, depois de um gentio lhe der separado o corpo com um alfange um dos braços. Querer explicar as dores que padeceria este aflito é impossível, basta para fazer penetrante esta lembrança a consideração dos castigos. E aos mais cristãos, que ainda deixaram com vida, cuidaram logo de os resgatar, pelo síndico, os religiosos do dito hospício de Bissau.”

(continua)

Almirante Teixeira da Mota 

Interior da Câmara Municipal de Bolama
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20121: Historiografia da presença portuguesa em África (174): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (1) (Mário Beja Santos)

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