segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20135: Controvérsias (134): os trágicos acontecimentos de Morocunda, Farim, em 1 de novembro de 1965: a memória das vítimas e o risco de falsificação da história... Excertos de reportagem do jornal "O Democrata", Bissau, 13/11/2014


Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 2015 > Memorial e largo Mártires do Terrorismo >  Alguns dos sobreviventes do massacre de Morocunda (ou Morcunda), em 1 de novembro de 1965. Foto de Armando Conte, um dos organizadores da homenagem às vítimas. Cortesia de TV Guiné-Bissau (*)


1. Parece que ainda há, na Guiné-Bissau, e em especial em Farim, quem pense, mais de meio século depois, que os trágicos acontecimentos do dia 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim (**), foram provocados pelos "colonialistas portugueses"... 

Nessa noite teria havido "uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' (sic) iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-sapo e Praça." (**)

Consequentemente, "o massacre de Farim" terá resultado de um "bombardeamento", indiscriminado, efetuado por um Dakota (!)... Indiscriminado, não, digamos... cirúrgico!... As vítimas, sobretudo mulheres e crianças, terão sido apanhadas "no meio da dança do 'Djamdadon' uma das manifestações culturais da etnia Mandinga"... Mas também houve, entre os militares presentes, um ferido grave e vários feridos ligeiros..., o que é omitido na reportagem do jornal 'O Democrata'.

Alguns dos sobreviventes, entrevistados em 2014 pelo jornal 'O Democrata' (**), admitem honestamente que são incapazes de atribuir responsabilidades ao PAIGC ou aos "colonialistas"... O próprio jornalista [,Filomeno Sambú,] reconhece que até agora [, 2015,] não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. 

Mas outros são perentórios: "Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC. (...) Ao mesmo tempo {que] pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos."

Há óbvias contradições nos depoimentos: Malam Sané, um dos sobreviventes, diz que "depois do bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião" [, avião esse que sabemos que foi um Dakota, a única aeronave da FAP que estava em condições de voar à noite]. A explosão do engenho, lançado para a fogueira, terá sido tão violenta que algumas testemunhas tê-la confundida com a de um "bombardeamento aéreo"..., o que nos parece totalmente inverosímil. O 'Dakota', o avião de transporte (e não propriamente um "bombardeiro"),  que aterrou nessa noite em Farim, veio fazer as evacuações dos feridos mais graves... Na memória de alguns sobreviventes, na altura crianças, poderá ter ficado a imagem aterradora de um Dakota que provavelmente nunca tinha visto antes, muito menos à noite...

Naturalmente  também temos sérias reservas em relação à versão "oficiosa" dada na altura pelas autoridades portuguesas, neste caso o comando do BART 733 (***)... Bom seria que, ainda hoje, passados estes anos todos, o exército português fizesse uma investigação independente ao ocorrido em 1 de novembro de 1965. Alguns camaradas nossos, como o António Bastos e o Virgínio Briote, estavam lá, em Farim, nesse fatídico dia, mas não exatamente em Morocunha (antigo bairro, afastado do centro da vila).

O segundo grupo de feridos, onde se incluía Malam Sané, foi evacuado "de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte".

Que foi um ato de terrorismo, hediondo, foi, estamos todos de acordo. Perpetrado por quem, não sabemos. O PAIGC nunca o reivindicou. AS NT, por sua turno, acusam elementos locais,  como o comerciante Julio Lopes Pereira, de estarem por detrás deste atentado, que vitimou sobretudo mulheres e crianças, vítimas inocentes.

2. Aqui vão alguns excertos da reportagem de Filomeno Sambú (**), com a devida vénia:

(...) Depois de quarenta e nove (49) anos do Massacre de Morcunda, uma tabanca situada nos arredores da cidade de Farim, no norte do país, um grupo de pessoas decidiu trazer à memória os acontecimentos ocorridos a 1 de novembro de 1965 com registros de mais de trinta vítimas mortais e cerca de cem feridos, na sua maioria mulheres e crianças.


Na cerimónia de homenagem às vítimas deste bombardeamento de 1965, foi depositada uma coroa de flores em memória dos falecidos. O Governo central, a administração local e os deputados da nação eleitos em Farim nas últimas eleições legislativas de abril fizeram-se representar na cerimónia.


Segundo informações de testemunhas, o atentado que matou civis inocentes, aconteceu à noite, no meio da dança do “Djamdadon”, uma das manifestações culturais da etnia Mandinga.



A dança ocorria ao ritmo de sons de tambores tocados pelos “Djidius” com a multidão à volta do local. Dados recolhidos no terreno pelo Jornal 'O Democrata' revelaram ainda que o número das vítimas poderá não ter sido o que consta dos documentos coloniais [27 mortos e 70 feridos graves, todos civos, mais um ferido grave entre os militares portugueses] .

Depois do bombardeamento houve pessoas que tentaram resistir aos ferimentos, mas acabariam por morrer, ficando fora dos dados oficiais disponíveis nos boletins de informações coloniais.



A equipa de 'O Democrata' que se deslocou a cidade de Farim,  viu o local e pôde ainda constatar a tristeza e as lágrimas a caírem dos olhos de crianças depois de vários depoimentos de testemunhas ainda em vida. Este facto revela que o que aconteceu foi muito doloroso e que ainda abala a memória dos cidadãos daquela terra.



Os organizadores pretendem que no futuro a iniciativa seja institucionalizada como dia de Farim, porquanto é um dos maiores massacres da história do povo local.



Malam Sané, um dos sobreviventes do ataque, recorda de 1 de novembro de 1965 com muita tristeza e mágoa. O sobrevivente disse que estava inconsciente e que apenas se lembra dos momentos ocorridos antes do ataque.



Depois do Bombardeamento, na mesma noite do dia 1 de novembro, o primeiro grupo dos feridos foi evacuado de imediato para Bissau num avião [, um Dakota}. A segunda equipa que incluía Malam Sané saiu de Farim em direção a Bissau às 8 horas do dia seguinte.



Malam Sané informou ainda que antes do rebentamento, estava ainda em casa com a sua mãe e que de repente chegaram-lhes uma série de rumores que indicavam que um avião militar 'Dakota' iria efetuar uma rusga para perseguir e consequentemente prender pessoas nos bairros de Morcunda, Nema, Sintcham, Gã-Sapo e Praça.


Mas sobretudo Gã-Sapo e Praça, não especificando contudo as razões porque os dois últimos bairros foram sublinhados. Poucas horas depois de chegar no local, por volta das 22 horas, aconteceu o ataque que vitimou civis inocentes e feriu perto de cem pessoas, explicou Malam Sane com lágrimas nos olhos: “não posso prosseguir, chega” – concluiu.

Sadjo, também uma das sobreviventes do atentado, conta a sua versão na primeira pessoa. Disse que foi atingida por um estilhaço de granada que lhe cortou a barriga e que, em consequência dos ferimentos, não conseguiu comer nem beber água durante um mês. E enquanto recuperava desses ferimentos foi ajudada por médicos que administraram um soro. “Até agora padeço de dores devido aos ferimentos na barriga. Não consigo fazer nada nem jejuar”, notou a vítima.

Ela fez parte do primeiro grupo evacuado para Bissau. Referiu que depois da detonação que ouviu, nada mais soube e não pode avançar com explicações se foi algo preparado internamente ou pelos colonialistas, porque “estava no ponto da morte”, assinalou.


Armando Conté, um dos membros da organização [da cerimónia de homenagem aos 'mártires do terrorismo'], referiu que o motivo fundamental da comemoração do dia é solidarizar-se com todas vítimas e também informar as pessoas que não tinham nascido, quando o triste acontecimento sucedeu em Farim, para poderem se informar daquilo que realmente se passou no sítio do monumento. ainda em construção.


Lembra que é um primeiro passo apenas para que agora em 2015, quando se completam 50 anos, que o Governo central declare o dia 1 de novembro, curiosamente dia dos fiéis defuntos, como um dia de “ reflexão de Farim”, referiu.

“Penso que o Governo vai estar na posição de nos ver, ouvir e dar a voz a quem não tem voz. Acredito que esse ato vai ser o princípio de muitas coisas que virão para Farim e com a iminência da exploração do fosfato local”, disse.

Armando Conté disse ainda que, em 2015, a organização está construindo um monumento com nomes de todas as vítimas, para que sirva de informação aos mais novos e as gerações vindouras.

Entretanto, até agora não há informações concretas sobre a verdadeira origem do ataque. Vítimas sobreviventes do atentado dizem desconhecerem por completo a proveniência desse bombardeamento e os seus motivos específicos.

Sobreviventes ilesos e testemunhas reclamam que se tratou de um ato bárbaro e premeditado perpetrado pelos colonialistas portugueses devido às perseguições contra certas pessoas ligadas ao partido PAIGC.

As vozes que se levantaram agora atribuem o ataque aos portugueses. Ao mesmo tempo pedem a intervenção do Governo guineense junto de Portugal para indemnizar todas as vítimas do atentado que ceifou as vidas de dezenas de pessoas e cerca de cem feridos.

O registo do atentado está nas duas páginas deste livro [, história da unidade, BART 733 ?] que 'O Democrata' conseguiu fotografar, com a solidariedade de um dos elementos da equipa de reportagem da RTP-África em Bissau. (...)

[Essas imagens das supracitadas páginas não constam da edição eletrónica desta reportagem, de que reproduzimos o essencial. LG]
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Notas do editor:

(*) TV Guiné-Bissau > Memória: Farim e o massacre de 1965. Reprodução de texto de Filomeno Sambu, jornal "O Democrata", 13/11/2014

(**) Vd. O Democrata, Guiné-Bissau > 13/11/2014 > Filomeno Sambú > Reportagem: Farim recorda o massacre de 1965 com mágoa.


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