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Barro > CCAÇ 3 > 1968 > Um prisioneiro, elemento suspeito de ser do PAIGC.
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A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
I. Terminou, às 22h de 3 de julho de 2014, uma das nossas pequenas "sondagens", desta vez sobre um tema "melindroso", que pode ferir as suscetibilidiades de alguns camaradas nossos, mas em relação ao qual não podemos deixar de ter opinião, em nome do nosso direito à memória mas também ao nosso direito ao bom nome... Não temos
cadáveres escondidos no armário, falamos de tudo (ou quase tudo) com serenidade, isenção, preocupação de rigor e verdade e direito ao contraditório...
E sobretudo não queremos que daqui a 10, 20, 30, 40 ou 50 anos, quando nós já não estivermos cá, venham fazer acusações gratuitas a uma geração que, na sua generalidade, combateu nas bolanhas e matas da Guiné com honra, coragem e humanidade, dando oportunidade aos políticos da época para encontrarem soluções para a paz...
A guerra que travámos na Guiné não se compara com outras que, histórica e geograficamente, lhe estiveram próximas: por exemplo,
a guerra da Argélia (1954-1962), uma dupla guerra de descolonização e uma guerra civil, uma das mais violentas e cruéis do séc. XX. Ainda hoje são
polémicos os números das baixas entre civis, guerrilheiros e militares. Para não falarmos da ocorrências, e das acusações, de um lado e doutro, de massacres, tortura e execuções sumárias...
Em todo o caso, a investigação historiográfica (e a documentação) sobre a guerra da Guiné é muito pobre e limitada quando comparada com a da
guerra da Argélia... Nem a Argélia era a Guiné, nem a FLN - Frente de Libertação Nacional era o PAIGC, nem Ben Bella (1916-2012) foi o Amílcar Cabral (1924-1973), nem o nosso exército era o exército francês, e muito menos eram os mesmos os interesses em jogo... Recorde-se que numa população de 10 milhões, em 1954, 1 em cada 10 era de origem europeia, colonos ou descendentes de colonos (mais tarde chamados "pieds noires").
Os resultados da nossa sondagem, que obteve 107 respostas, têm de ser interpretados com todas as reservas, já que o voto é anónimo, não sabemos quem votou, não podemos sequer controlar os votos de gente eventualmente mal intencionada ou que nem sequer tenha combatido no TO da Guiné. Além disso, o voto pode ser feito pela mesma pessoa em computadores diferentes... Portanto, há risco de vieses e sobretudo a amostra de modo algum representa (nem era essa a intenção) o vasto e complexo de universo combatentes que passaram pela Guiné, entre 1959 e 1974. Cremos, em todo o caso, que as respostas são-no de camaradas que fazem parte da Tabanca Grande, que nos leem regularmente, que partilham dos nossos princípios e valores, e que responderam de boa fé. Apresentamos a seguir alguns comentários sobre este tema.
II. Sondagem sobre "eventuais execuções sumárias de elementos IN, por parte das NT, no CTIG"...
Respostas (n=107)
1. Nunca participei
11 (10,3%)
2. Nunca assisti
12 (11,2%)
3. Nunca ouvi falar
51 (47,7%)
4. Participei
1 (0,9%)
5. Assisti
6 (5,6%)
6. Ouvi falar
25 (23,4%)
7. Não sei ou não me lembro
1 (0,9%)
3. Comentários de 3 camaradas nossos, V. Briote, A. Silva Santos, M. Lomba, e 1 amigo guineense, o Cherno Baldé, todos grã-tabanqueiros (*)
(i) Virgínio Briote [ex-al mil cmd, cmtd Gr Diabólicos, CCmds, CTIG, Brá, 1965/67] [, foto à direita do Café Bento, maio de 1965]
Estive lá [, em Jolmete,] com o meu grupo cerca de uma semana em Out/Nov 65, a render o grupo do Luís Rainha (o Júlio Abreu deve ter lá estado) que durante o ataque (que julgo ter sido o 1.º) teve três feridos, um dos quais com muita gravidade. A Companhia que lá estava era comandada, salvo erro, pelo cap. Corte Real (mais tarde morto numa mina a/c entre Farim e o K3.
Durante o tempo em que lá permaneci não me lembro de ter ouvido qualquer alusão a esses fuzilamentos. Contactámos com a população, nomadizámos na zona, vimos barracas abandonadas, notava-se agitação recente naquela zona. Mesmo em Teixeira Pinto, onde estivemos em trânsito, à ida e no regresso, não me lembro de ter ouvido o que quer que fosse sobre o assunto.
Não ponho em dúvida que tal facto tenha ocorrido, quem participou em confrontos armados sabe o que é a Guerra e como ela transforma os homens. Algo surpreendente é que tal facto tenha escapado a tanta informação produzida durante treze anos de luta e surja apenas 40 anos depois da guerra ter terminado. (...)
(ii) Augusto Silva Santos [ex-Fur Mil da CCAÇ 3306/BCAÇ 3833,
Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73]
(...) Eu estive em Jolmete durante todo o ano de 1972, incorporado na CCaç 3306 / BCaç 3833. Apesar da distância temporal entre os factos relatados e a minha presença em Jolmete, nunca senti da parte da população da tabanca, qualquer animosidade para com as NT relacionadas com essa possível ocorrência, nem nunca ouvi falar desse eventual massacre.
Sem querer pôr em causa o que relatou o nosso camarada António Medina, julgo que se tal acontecimento tivesse de facto ocorrido, o mesmo seria por certo perpetuado ao longo dos tempos, até por implicar morte de familiares. Gostaria ainda de salientar que, na altura da minha passagem por Jolmete, o filho do então régulo era o Cajan, que pertencia ao Pelotão de Caçadores Nativos, e com o qual eu tinha um relacionamento próximo e com quem falava com alguma frequência sobre os mais variados assuntos, e nunca o ouvi mencionar fosse o que fosse sobre semelhante ocorrência, embora tenhamos por exemplo falado sobre a morte dos oficiais portugueses ocorrida na estrada Pelundo / Jolmete.
O Cajan, como sucessor legítimo por morte do pai, é ainda hoje o régulo de Jolmete, apesar de ter colaborado com as NT. Porque me poderia na altura ter escapado alguma informação sobre este possível caso, e para não estar aqui a relatar algo incorrecto, entrei em contacto com ex-camaradas meus daquela CCaç, um dos quais muito próximo do comando da Companhia, e todos eles foram unânimes em afirmar que não ouviram falar sobre semelhante situação.
Talvez o camarada António Medina (**) esteja na posse de mais elementos que possam esclarecer melhor o que de facto ocorreu. (...)
(iii) Manuel Luís Lomba [ ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705,
Bissau,
Cufar e
Buruntuma, 1964/66]
Como ciência e arte humana de matar em escala, a guerra contém de tudo - até crimes.
Em 1964/65, o Comando-chefe (gen A. Schulz) lançou-nos como tropa de intervenção pelo norte, centro e sul da Guiné, em missões de emboscadas, batidas e "cerco, assalto, busca e destruição" às tabancas onde as populações já estariam para o PAIGC como a água para o peixe. E era o medo que nos impelia a metralhar instintivamente tudo o que bulisse, folha, bicho ou gente. E assim fomos colhendo algumas eliminações, mais de populares que do IN, que não serão a mesma coisa que execuções premeditadas, aqui invocadas como sumárias - crimes abomináveis.
Fomos lançados na guerra da Guiné não como criminosos, mas como soldados. Os combates foram recorrentes, durante toda a nossa comissão e foi o seu contexto que nos formou a consciência e a ética de realizar as missões subordinados ao seu primado.
Aconteceram episódios de execução, de prisioneiros sob custódia, em pequeníssima escala, não pelo código de guerra das nossas FA, mas pela multiplicidade das idiossincrasias dos seus membros. Fiz público o conhecimento dum caso e da sua generalizada reprovação.
Se Amílcar Cabral mandasse entregar à tropa os seus correlegionários que condenou à morte, no I Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, por crimes de delito comum, eles teriam escapado à execução dessa pena, porque seriam tratados não como cidadãos bissau-guineenses, mas como cidadãos portugueses. Sob a bandeira de Portugal, a Guiné funcionava como Estado; o Estado que aquele líder acabava de criar nesse congresso não passaria da ficção.
A partir da execução por enforcamento do famigerado Vegueiro, no século XIX, jamais haverá em Portugal julgamentos ou condenações à morte.
Amílcar Cabral coexistiu em Bissau e Fá com o governador e com a PIDE e os fundadores do MLG, provocadores do "massacre" do Pidjiquiti e do terrorismo em Susana e Varela e os principais quadros do PAIGCV que a PIDE prendeu, com a ajuda do Exército, foram sujeitos a julgamento judicial, uns absolvidos e outros condenados a prisão, que cumpriram em Bissau ou no Tarrafal. Esses acontecimentos serão coevos ao "massacre de Jolmete". (...)
(iv) Cherno Baldé [, foto à esquerda, jovem estudante em Kichinev, Moldavia, dezembro de 1985; é quadro superior, vive em Bissau]
(...) Acho que assistimos a um debate importante e muito interessante sob todos os pontos de vista que, de certo modo, confirma uma das forças do pensamento europeu e ocidental, que é a força da contradição.
Gostei do comentário de Manuel Carvalho, tão directo e profundo que faz recordar os clássicos da filosofia grega.
Prestei especial atenção ao texto do amigo Manuel L. Lomba que resume a situação e acaba com o vazio das dúvidas que podiam existir.
Facto relevante e uma possível pista a explorar sobre o episódio da emboscada em Jolmete pode estar relacionado com o MLG [, Movimento de Libertação da Guiné,.] que tinha um contencioso, no meio de grandes rivalidades, com o PAI de Amílcar Cabral (ver o livro de Julião Soares). Assim, os homens da tal emboscada podiam pertencer a um outro movimento que não o PAIGC. É uma mera hipótese que poderá explicar o desconhecimento ou o silêncio por parte do PAIGC sobre este trágico acontecimento.
Eu acredito na versão do A. Medina que, a meu ver, não tem nenhum interesse em denegrir a imagem de Portugal e das forças armadas que o próprio serviu na juventude.
Precisamos é reflectir, sem tabus, sobre as causas que poderiam ter levado a tais excessos. Não é segredo nenhum se se disser que a colonização sempre se fez com base na utilização da repressão, logo da violência, a mesma que serviu de pretexto, aos nacionalistas, para a Guerra de "libertação" que acabou por nos prender nas malhas da tirania que hoje conhecemos. (...)
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Notas do editor
(*) Vd. postes de:
30 de junho de 2014 >
Guiné 63/74 - P13349: Sondagem sobre a ocorrência de eventuais execuções sumárias de elementos IN ou pop, por parte das NT, no CTIG
26 de junho de 2014 >
Guiné 63/74 - P13333: (Ex)citações (234): Comentários ao poste do António Medina sobre os acontecimentos de 1964 em Jolmete: Vasco Pires, António Graça de Abreu, Manuel Carvalho, Joaquim Luís Fernandes, Júlio Abreu, Manuel Luís Lomba, António Rosinha e António Medina
(**) Vd. poste de 24 de junho de 2014 >
Guiné 63/74 - P13326: De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65) (António Medina) - Parte II: Foi há 50 anos, a 24 de junho de 1964, sofremos uma emboscada no regresso ao quartel, que teria depois trágicas consequências para a população de Jolmete: como represália, cerca de 20 homens, incluindo o régulo e o neto, serão condenados à morte e executados pelas NT, dois meses depois