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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8520: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (28): Guiné - Tempo de Verão

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Julho de 2011:

Caríssimo Carlos Vinhal
Vim aqui, em tarde de fica ou sai, li um ou outro texto e comentário e meditei um pouco. Ia responder. Desisti. Para quê dizer que todos, quase todos, os militares desembarcados em Bissau deviam ter feito, (mesmo curta ou muito, muito curta... uma semana com viagens e alimentação incluídas) uma passagem pelo mato. Norte, Sul ou Leste. Viam, ouviam e regressavam mais confortados com uma realidade... bem, ponto final.
Assim, nada comentei e "farejei", encontrando, um escrito de outro tempo.
Passagem de olhos, cortes em demasia talvez e aí vai.
Repara que, ao viver assim nós éramos, disso tínhamos consciência, uns privilegiados.

Bom resto de Domingo.
Eu irei fazer por isso, agora que o Sol se começa a aquietar...

Abração amigo do
Torcato


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 28

GUINÉ - TEMPO DE VERÃO

Para avivar a memória abri a Agenda de 1969.

Escolhi, essa a intenção, os meses de Julho e Agosto. Folheei a amarelecida Agenda. Apelei fortemente à memória, sobre essa parte de minha vida, quase o quotidiano do 2.º Grupo, o “meu Grupo”. Ali estavam, em breves notas, demasiado telegráficas, o bom senso de então assim aconselhava, o nosso viver colectivo.

Relembro agora. Há sempre um certo receio, uma dúvida quanto ao relato hoje, de acontecimentos há tanto tempo vividos. São o que em verdade, na minha verdade, recordo e transcrevo então.

Picada Afiá / Candamã

Assim:

- Em 13 de Julho, saída de Candamã e Afiá, depois de atribulada estadia de cerca de um mês.

Passagem e pernoita em Bambadinca.

Aí estava o desejado duche, depois de um mês sem o tomar, a roupa limpa, a cama com lençóis, o jantar servido em pratos sobre mesa coberta por toalha, talheres e copos. Um luxo, uma alegria.

No dia seguinte seria o regresso a Mansambo, a nossa base, o campo fortificado como estupidamente o Paigc o apelidava.

Tínhamos assim breves horas para respirar ar puro entre paredes, beber conteúdos frescos em copos de vidro, rir, ver revistas de nosso País e conversar descansadamente. Podíamos, se para isso tivéssemos tempo, melhor se para isso tivesse tempo, fazer uma passagem, em local certo, para passar um bocado com mulher de ocasião. Em Mansambo a única população eram os picadores e famílias. O respeito era a norma, claro.

No dia seguinte afivelávamos vestes e cinturões e partiríamos para fazer aqueles vinte ou trinta quilómetros de picada.

Voltávamos a picar a estrada, aos automatismos, às rotinas, aos olhos na nuca, a carícias às armas. Voltávamos a ser nós ou no que queriam que fossemos. Ali, na picada, na mata um segundo valia muito, o descuido era quase crime. O segundo de distracção podia custar uma vida.

Em Mansambo tratamos do correio, de roupas e relatórios, das novidades e do abraço aos camaradas.

- A 15, dois ou um dia depois, a ordem:

- Amanhã seguem para Bambadinca e depois recebem ordens. Devem ir reforçar, em Galomaro, a 2405 e o COP 7.

E assim foi.

Galomaro era um lugar simpático. Camaradas impecáveis, Posto de Administração Colonial, alguns comerciantes e muita tranquilidade.

Fomos para um aquartelamento em construção. Ao lado, uma pequena pista de aviação de onde, em operações relâmpago saiam os Pára-quedistas. Nós assistíamos, guardávamos as instalações e sabíamos como o In andava furioso. Natural depois da nossa saída do Boé e o termos deixado toda uma imensa zona desguarnecida. O Administrador de Bafatá não entendia assim. Como ele, outros, e, nesses outros é que estava o mal. As nossas Info militares eram pobres, mais do que pobres. As Informações fidedignas tinham outros autores. Para depois…

- A 22 estávamos em Madina Xaquili. Lugar nada agradável.

Galomaro > Torcato Mendonça à esquerda

Regressamos a Galomaro e, em 1 de Agosto, devido ao comportamento do IN fomos para Nova-Cansamba. Tabanca em pretensa autodefesa, mas estava, isso sim, desordenada, sem qualquer plano de defesa e a sofrer ataques com certa frequência. O Grupo que lá estava e fomos render, rapidamente se eclipsou a caminho de destino mais calmo. Ficamos gratos.

Nessa noite fomos logo atacados. Tínhamos montado, no pouco tempo que ali estávamos, uma defesa ainda incipiente. Estavam lá, ao serviço da tal autodefesa, uma Degtaryev, um morteiro 82 IN, muitas munições e bastante armamento entregue à população. Preparamos o nosso material e distribuímos o Grupo. Com um bidão fizemos a nossa “pesada”. Ou seja, cortava-se totalmente uma tampa e, no outro lado só metade. Lá dentro em rajada curta, mais longa de quando em vez, funcionava uma G3. O barulho era brutal. Certo é que a resposta ao ataque, depois de dezoito ou dezanove meses de comissão, foi o suficiente - forte e feio - para não mais, nos quinze dias que lá estivemos, aparecerem. Apareceu mais um ataque de paludismo para mim.

Só.

No dia seguinte, certamente pelo ruído dos rebentamentos e tiros. Não tínhamos rádio mas tínhamos operador, não tínhamos enfermeiro mas tínhamos bolsa, apareceu um Major Pára-quedista. Fizemos breve relatório verbal, pedimos material para a autodefesa e pouco mais. Tinha condições o local e aos poucos iria melhorar. Além disso a população era simpática.

A 15 de Agosto, para desgosto nosso, aí estava a ordem de regresso a Galomaro, em trânsito para Bambadinca.

Em Bambadinca, já com o nosso Comandante de Companhia, breve “briefing” e recebida a ordem. Partida imediata para Candamã. Missão: Encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Informações recebidas sobre esta personagem, breve troca de palavras e uma chamada à parte, feita por alguém, a mim:

- Só sais de lá quando o encontrarem. Depois têm um fim-de-semana em Bafatá. Não tivemos, não havia tempo… falhou… está esquecido e tudo bem.

Saímos, comandados pelo nosso Comandante de Companhia e outro Grupo.

Fizemos uma breve paragem em Afiá para convencer o Lhavo (o melhor Guia que conheci) a acompanhar-nos. A contragosto acedeu.

No dia seguinte lá fomos, com saída de Afiá onde se dera o ultimo ataque IN.

O Lhavo, bem protegido, seguia à frente na habitual progressão tão nossa conhecida. Foi detectado um local onde o IN tinha pernoitado. Apanhado, cuidadosamente claro, algum material perdido e vistas as coberturas feitas com ramos de palmeira (era época de chuvas). Tivemos então consciência de que era um grande e bem armado grupo. Com mais cautelas ainda prosseguimos. Ao final do dia detectamos e confirmamos o local do acampamento.

Regressamos a Candamã e o Batalhão foi informado.

Dois dias depois, em madrugada com chuva miudinha, se a memória me não atraiçoa, os Pára-quedistas, heli-transportados claro, assaltaram o acampamento, destruíram tudo e todo o grupo reforçado do Cmdt do Paigc, Mamadu Indjai, se pôs em fuga. Nós ali emboscados, ajudados por outros não os detectamos.

Caíram numa emboscada, muitos quilómetros depois na estrada de Mansambo para o Xitole, montada pelo 3.º Grupo da “nossa 2339”. Baixas confirmadas e ferimentos graves no Mamadu Indjai.

Regressamos, ainda nesse dia a Mansambo com passagem e, nesse caso, talvez tenhamos pernoitado em Bambadinca.

- Em 24 de Agosto estávamos a fazer parte das tropas que faziam a primeira Operação Pato Rufia. Guiava as NT um elemento do Paigc, aprisionado aquando da destruição do acampamento do Mamadu Indjai.
Borregou a operação e regressamos.

Foi feita a versão dois da Pato Rufia e já não participamos.

Dias depois, já não o esperava, fomos para Afiá e Candamã. Seria uma estadia de um mês, com vinte meses de Comissão. O In desta vez não atacou.

Entre as breves notas e os “flashes” da memória fica muito por relatar.
Digam lá, mesmo assim, se não era divertido fazer tanta viagem, ver e conviver com tanta e variada gente, ter tanto desconforto e algum conforto.
Boa e saudável vida.

Que mais desejaria um jovem de vinte e quatro anos (quase a fazer vinte e cinco), acompanhado de outros, a maioria mais novos, alguns já casados e pais de filhos?

Era agradável?

Se pensar, com a mente a regredir para esse tempo, nem sei ao certo.
Hoje não sei ou, melhor, não quero saber. Prefiro assim.

Regressamos um dia ao nosso País. Diferentes, como que vindos de um mundo irreal… ou teríamos desembarcado num mundo, esse sim, irreal…?

Ninguém me ou nos perguntou. Ninguém estava interessado. Ninguém, ao menos nos interrogou…

- Quem és tu (Romeiro)? Ou sois vós…

- Ninguém… responderia ou responderíamos…

(frase, adulterada, do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett)
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8503: Os nossos regressos (25): Tempo de partida, há tanto tempo... tanto (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 11 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7927: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (27): O absurdo do monólogo a dois

sexta-feira, 11 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7927: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (27): O absurdo do monólogo a dois

1. "O absurdo do monólogo a dois". Texto enviado pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), em mensagem com data de 9 de Março de 2011:


Guiné - Mansambo - CART 2339
Foto: © Torcato Mendonça (2011). Todos os direitos reservados.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 27

O Absurdo do Monólogo a Dois.


Sentados num tronco do velho abrigo, Tabanca ao fundo, ali onde, Mansambo/aquartelamento tinha começado, dois jovens, resguardando-se do calor à sombra da frondosa árvore, conversavam.
Jovens de idade incerta, rostos vincados e onde, certamente há muito os sorrisos não apareciam.
Olhavam duro ou vazio o nada e falavam baixo:

- Como está ele?

- Calmo agora. O enfermeiro já o tratou e os medicamentos começam a fazer efeito.

- Está a repetir-se muito. Vezes demais.

-Diga-me lá o que se passa com ele. Já na Metrópole lhe perguntei e nada disse.

-Não. Na Metrópole era outro assunto sem correlação com este. Eram problemas da vida privada dele. Prefiro não falar. Só tínhamos que informar de quando em vez. Lá, e depois aqui, o comportamento dele sempre foi estupendo e disposto a fazer os mais diversos trabalhos. Você sabe e nem vale a pena falar disso. Tanto assim que praticamente deixou de ser operacional. Era mais útil noutros lados.

-Já falou com o médico nisso tudo?

-Falei durante muito tempo. O médico disse-me pouco quanto a uma solução concreta, uma solução que me descansasse. Não me estou a intrometer em questões de saúde. Vejo a situação dele, como a da maioria dos soldados. Nós, graduados, já fomos uma ou duas vezes de férias. Saímos daqui, voltamos a ver casas, automóveis, luzes, ou, o mais importante, fomos até á Metrópole e voltamos a estar com família e amigos. Os soldados, a quase totalidade, não. O desgaste psicológico é bem maior. Mais nuns do que noutros, é certo. Mas a carga de desgaste é bem maior. Sentimos isso facilmente. Passamos muito tempo juntos, quase as vinte e quatro horas. Comemos igual e dormimos nos mesmos abrigos. As diferenças que existem são poucas, nesse aspecto. Lembra-se de termos caído numa emboscada e o morteiro não ter funcionado normalmente. Porquê? Porque ficaram, apesar de ter havido problemas com um joelho, aqueles dois homens assim estáticos? Já tinham, nessa data, tantas horas debaixo de fogo. Não reagiram bem. Aconteceu a eles. É normal. É humanamente normal. Humanamente. Nós, aqui, preocupamo-nos com o humanamente? Temos preparação para isso? Não.

-Falou com o médico nisso?

-Claro que sim. Foi ele que me alertou para esse aspecto humano. Ele tem preparação. Nós, aos poucos, muitos de nós ou a maioria, fomos perdendo a parte humana que tínhamos. Somos unidos, solidários, partilhamos alegrias e tristezas, medos mas, penso eu, cada vez, estamos mais duros e vazios. Olhe as caras e olhares. Você e eu não notamos. O médico, esse sim, nota e vai vendo as transformações operadas. Se não tem a especialidade de psiquiatra irá acabar. Colocou-me diversas questões e eu fui respondendo e colocando outras. Por isso falo assim. Falei deste caso, do outro que temos e até de mim.

- De si porquê?

- Porque ele colocou-me uma questão e eu recordei algo que se passou comigo. Quando apanharam, na fonte, aquele nosso soldado à mão, tínhamos acabado de almoçar com o Comandante do Pel Mi 103 o Alferes Uro Baldé, da Moricanhe. Depois de ser dado o alarme fomos à fonte e iniciaram uma primeira breve perseguição. Entrei, via rádio, em contacto com o Batalhão. De repente sentimos aquele estouro e soubemos ter sido uma mina. Você estava lá e safou-se por pouco. Quando depois fui apanhar o Alf. Uro Baldé para o pano de tenda, ajudado claro, vi restos do esparguete do almoço, as ervas à volta negras e cortadas, o cheiro adocicado do sangue. Tudo isso, aliado ao pouco tempo que tinha de Guiné, à raiva que sentia provocou em mim uma perturbação forte. Durante tempos, certos cheiros perturbavam-me e dormia mal. O Enfermeiro, temos sorte em ter um enfermeiro assim, deu-me comprimidos para dormir. Foi pior. Antes acordava sobressaltado. Depois não acordava e era pior. Parei logo e o uísque foi bem melhor. Passou. Não ligava e aos poucos foi desaparecendo. Mais tarde fui de férias a primeira vez e foi benéfico. Lá, na Metrópole, não sabem o que aqui se passa. Faz calor e há bichos… Por isso, não só, lhe falei da falta de férias dos soldados. Não só, Não só.

- Isto mexe demais connosco.

- Efectivamente. O que está a acontecer a este homem do nosso grupo, passa-se, segundo o que o médico diz e não concorda, com muitos. A receita dada pelo Exército é, segundo ele, comprimidos "LM" de "x+y" e não admitem outra solução mais. Se ele diz ser impotente para resolver o assunto que direi eu? Por isso, às vezes, sinto o regresso da tal humanidade. Pode não ser e já nem sei ao certo. Por quanto tempo mais? Aqui neste viver ou neste sobreviver que há a fazer? Muito pouco. Qualquer descuido, qualquer fraqueza pode ser fatal para muitos.

- Vamos estar mais atentos. Eu estarei e falaremos mais destes casos. Ainda se lembra de Évora, onde nos conhecemos?

-Claro que sim. Essa agora.

- Parece que foi há muito tempo. Mas você mudou muito.

- Mudamos todos…

**********

O militar que aqui falamos, de quando em vez, começou, de modo inesperado e não muitas vezes, a ter atitudes pouco consentâneas com a normalidade. De forma inesperada fugia gritando. Numa dessas vezes foi de encontro aos bidões de duzentos litros, cheios de terra, que protegiam os abrigos. Outra foi de encontro à primeira fiada de arame farpado. Feriu-se na cabeça na primeira vez e no corpo na segunda. Melhorou.
Num dia, que devia ser de festa pois era a entrada de mais um ano, por descuido ou pelo tremer dos geradores Lister ficou ferido, pensando nós ser com alguma gravidade. Evacuado no dia seguinte para o Hospital Militar em Bissau veio, muitos dias depois, a ser evacuado para o Hospital Militar em Lisboa.
Encontrei-o trinta e cinco anos depois. Se falamos do tempo militar não recordo. Falamos, isso sim, da vida actual. Os seus olhos irradiavam um brilho que me diziam estar bem com a vida. Aquele brilho que nós vemos, só nós vemos, sair dos olhos de dois ex-combatentes, dois camaradas.

**********

Hoje, ouço, leio, ou “sonho”, afirmações ditas, descritas, sopradas, ou, em conjunto produzidas e, mesmo sem o tal cheiro incomodam-me. Sinto desagrado. Um ligeiro desagrado. Mas nada digo. Começa a aborrecer.

Deviam ter respeito, mais respeito, por todos os que não voltaram, os que regressaram deficientes, os que só vieram em parte ou por outros que vão calando, falando entre ex camaradas de armas e nada mais exigem do que esse mesmo respeito. Só.

Porque:

- O stresse de guerra existe!
- O sofrimento de muitos deficientes é um facto!
- A guerra dura e violenta existiu!

A não resolução dos problemas, de tantos problemas desses ex militares, por quem de direito, há trinta e muitos anos para cá (1974/2011) ou desde a Índia até os dias de hoje, tem, para a definir uma palavra demasiado “feia”. Ficava mal aqui.
Mas há muito que devia ter sido dito: - BASTA!

O ABSURDO do monólogo a dois é isso mesmo.

A conversa existiu, não textualmente assim talvez, entre um furriel e um alferes sobre o ABSURDO de como certos militares, carentes de ajuda ONTEM e agora HOJE, ERAM e ainda SÃO tratados.

Fnd Mar/2011
____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7922: Efemérides (61): Op Lança Afiada, triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, 8 a 19 de Março de 1969 (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7889: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (26): Chuva em noite escura

quarta-feira, 2 de março de 2011

Guiné 63/74 - P7889: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (26): Chuva em noite escura

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 1 de Março de 2011:

Caro Vinhal, Caros Editores
Sempre gostei da Noite.
Há quem a passe de maneiras diversas. Esta que anexo foi assim... passada.
Ia falar de um Bar e lembrei-me logo de outro. São, (será que ainda existem?) em Lisboa. Desisti.
Ainda ontem falei, pelo tele claro, com o Vinhal. Perguntei ao Carlos se ainda estava aborrecido com aquele comentário. Era um convite, um simples convite mais direccionado para camaradas ou camarigos de Lisboa. Lisboa o Centro deste rectângulo cada vez mais inclinado para o Atlântico e sem uma noite tão boa assim... sempre tem algo na macrocefalia de certas mentes... ou egoísmo...

Tudo bem com o convite, voltei a receber hoje e os lisboetas irão delirar. Mais um evento! Eu mandarei um abração ao meu Amigo Mário.

Disse ao Carlos Vinhal: logo te mando um escrito... uma estorieta. Vai esta. É longa. Mais de mil palavras é estopada para ler. Quinhentas a mil... no meio... as virtudes e eteceteras estão sempre no meio.

Olha meu Caro aí vai. É Tua e ou Vossa. Não foi bem condensada. Está aí uma mas ainda necessita... uns cortes para não me baterem... vidas...

E vai um abraço colectivo
(Carlos se for recebida... Agradeço um - recebida OK)... logo falamos da noite...

Abraço do T.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 26

Chuva em Noite escura

Passava das nove da noite e veio para o abrigo.
Preparou o resto do material. Vestiu-se e, sem o dólmen, deitou-se em cima da cama.
Ia ouvindo a chuva a cair forte, tabaqueava mais um cigarro e, mais uma vez, tentava memorizar tudo o que lhe tinha sido dito.

Noite boa para mais uma operação. Logo agora que os fulanos deviam andar a querer vingança. Saldavam-se as contas de vez. Era assunto sem fim. Bater forte, forte mesmo era preciso. Nós. Eles pensariam igual? Certamente.

Se saíssem à meia-noite, ao alvorecer deviam estar lá. Com aquele tempo era difícil. Além disso não devia haver “tecto” e tanto apoio aéreo ou evacuações “ká tem”. Pior, bem pior. Para depois se ver e não pensar nisso agora.

Chovia muito, demasiado para se puder progredir com segurança.

Podiam adiar a operação. Não era tão importante assim. Se ainda fosse lá um major ou tenente-coronel… agora arraia miúda. À medida que se alargavam os galões nos ombros menos saídas para o mato. A idade claro, a idade e as comissões uma e depois outra.

Nem sempre isso acontecia. No dia que fez cinquenta e um anos um tenente-coronel, o actual Comandante deles, fez uma operação, com contacto, ao Galoiel. Há sempre excepções à regra. Ali é local de regras rígidas e excepções, pois então.
Agora, sem excepções ou regras, ali estava ele esperando, fumando, sem nada ter a ver com aquilo. Talvez tivesse. Talvez naquele momento sentisse que sim, que fazia parte daquilo, uma peça, reles peça da engrenagem.

Mesmo hoje, já depois de ter terminado a primeira década do Século XXI, pensa, tenta recordar aquele período e não entende como se deixou amarrotar tanto.
Porquê? Porque ouve tanto comentário de inverdade ou de incompreensão sobre o que, pelo menos na Guiné, aconteceu? Fica bem assim falar. Depois é o momento. Parece que há agora um momento de falar, escrever, recordar, dizer que se tem que fazer algo para reparar muito do que se passou e tanto mal causou. Momentos, momentos a irem e virem.

Ele, naquele tempo, aos poucos pensou ser melhor assim. Aceitar. Procurar respeitar quem o comandava e fazer respeitar essas ordens. Com um ou outro ajustamento é certo. Mas será que houve justificação para tudo. Certamente que não, certamente que não. Porquê e para quê? Durante anos e anos, décadas, tentou viver sua vida longe das recordações desse tempo. Quantos anos por lá passou? Quatro ou cinco? Só? Marcaram assim tanto? Talvez outros períodos, outras vivências, de sua vida claro, foram tão ou mais fortes que as daquele tempo. Porque recorda agora esse tempo militar? Claro que o período militar pouco tem a ver com a vida civil. Pouco ou nada. Gente a pensar de forma diferente. Gente com divisas ou galões, vaidades ou fragilidades, necessidades de, para se sentirem mais gente, depreciavam os outros.

Normal e humano. Certo é que a maioria assim não procedia. Preferia fazer-se respeitar como gente. Temos que ver as diferenças entre a Instituição militar e a vida civil que, efectivamente obrigava o militar, profissional claro, a outro tipo de comportamento. Comportamentos direccionados para a guerra, o confronto, a disciplina e a camaradagem. Seria essa instituição democrática? Nesse tempo nenhuma o era. Mas hoje, agora? Respeito pelas outras instituições democráticas, sim. Agora, penso eu, continua com uma maneira própria de estar na sociedade. Normal? Assunto para posterior reflexão. Certo, certo é que de lá, entre outros, trouxe um ensinamento importante – a disciplina.

Podemos comparar com a vida civil, esta vida dita civil onde existe um amontoado de vaidades, de gentes a treparem, não em valor mas em favor. Gentes que, mesmo olhando de esguelha para a vida militar no seu todo ou só para aquele breve período de outrora, não perdem oportunidade de adularem o galão, a estrela, o título académico e, mais ainda, isso sim é um “posto” civil ou militar, o cifrão, a posição e o penacho. Esta evolução, infelizmente, tem desvalorizado, com muitas excepções e não sendo a regra, a meritocracia e valorizado por baixo. Não avancemos em reflexões ou meditações.

Por ser confuso? Nada disso.

Normal. Era assim, é assim e, por muito tempo, pelo absurdo e não pela normalidade, será assim.

É a Vida… diz “Zé Portuga”, português de Norte a Sul… aqui, como em tudo, com excepções e, felizmente digo eu, muitas.
Nivelar por baixo… boa essa… saída do tema inicial. Perca do norte e entrada em desnorte ou não.

Não perdi a recordação de outrora. A recordação daquela noite de chuva forte. A ela voltamos então.

Noite de chuva forte, escura como breu. Lá foram eles ”em bicha de pirilau”, o detrás agarrando a arma do da frente. De quando em vez a queda, o barulho, o palavrão abafado, a chuva forte a escorrer, a arrefecer e a noite negra a demorar o seu fim.

Pára, alto.

Acomodar o material, compor aquele grupo de homens, aliviar e distender os músculos. Limpa e protege bem a bazooka (8.9) na zona do disparo eléctrico.

- Está a andar. Palmada no Lhavo, o guia, e os tropeções a voltarem.

A chuva forte a não abrandar e a noite negra a não querer desmaiar e a ser, assim, mais difícil a progressão para eles.

A marcha a parar novamente, a noite a desmaiar e a claridade, ainda muito ténue a aparecer.
Pára e descansa um pouco. Ajeita o material e descansa. Só um pouco.

-Não se consegue ainda ver a carta, só a bússola. Esperamos um pouco e protege depois para ver isto. Chamem o Lhavo porque devemos estar perto.

Efectivamente estamos perto, muito perto já. Vamos esperar um pouco pela claridade e vamos montar a emboscada e esperar pelo trabalho do outro Destacamento.

- Já se vê melhor. Vamos para aquela mata. São cinco horas. Esperamos já lá o contacto rádio.

Passa o tempo e os rádios nada dão. Esperamos. Escolheram um bom sítio. Daqui temos um bom campo de tiro. Está tudo montado. Nada de descuidos agora que a chuva está a abrandar.

O tempo passa lento, lento e o relógio é constantemente consultado.

De repente, não muito longe, os rebentamentos, tiros, aquele “brua” em espiral, o ruído do tiroteio a envolver a madrugada fria e a aumentar e a diminuir. Armas mais aperradas, mais prontas, olhares mais despertos, músculos mais tensos e ouvidos a destrinçarem os sons:

- São mais nossos, são mais nossos - e a madrugada, como por magia, aquece um pouco mais.

-Cuidado agora, se vierem vêm por além. Só dispara à voz.

O rádio manda aguentar. O tempo passa lento e eles aguentam, aguentam e desesperam com tanta tensão.
Ouve-se o ruído da avioneta PCA e esperam. Ouvem pedirem a vertical aos outros e continuam a esperar.

- Cuidado agora que se eles vêm para aqui podemos ser descobertos.

- São dez horas. O PCA diz que vai sair e já volta.

Que se passa? Felizmente o tempo passa e não se ouve barulho de hélis.

- Bom sinal, bom sinal. Não há feridos.

Aguentamos. O corpo dói, as dormências aparecem aqui e ali.

- Mexe e não faças barulho. Isso passa. Aí está a avioneta a voltar. Demorou. Se ele passar na vertical não digas nada e espera.

-Dizem algo pelo rádio.

- Mandam regressar.

-Que porra é essa? São três horas. Chama o Lhavo.

- Vamos pela picada antiga e depois viramos para a estrada. Ele e dois picadores atrás e a malta logo a seguir.

- Há malta com cãibras.

-Estica e pica. Vamos devagar. Parar é pior.

Andam depois mais rápido com mil olhos e ouvidos atentos a tudo.
A bússola. Eu vejo e já está a virar para a estrada, mais um pouco e paramos.
Está tudo bem.

- Dói-me tudo e não consigo comer.

- Estamos perto e come quando lá chegar… falta pouco. Todo o cuidado agora é pouco.

Pois é, mas pouco a parecer uma eternidade. Finalmente aí estão as luzes do aquartelamento. Finalmente, banho e roupa lavada.

- Arruma o material e podem destroçar.

Está tudo estoirado com o efeito da chuva.

- Há comida quente daqui a uma hora.

- Estão a chamá-lo.

Já? Esperem que estou ainda nu. Deve haver bronca.

Fnd –Fev/11
____________

Nota de CV:

Vd. poste da série de 23 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 – P7849: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (25): Amuleto

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 – P7849: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (25): Amuleto

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 21 de Fevereiro de 2011:

Meu Caro Carlos Vinhal
O Silêncio dizem ser de ouro. Vale muito e se o ouro tem subido de cotação.

Certo, certo é que nada tenho dito. Não me apetece necessito de um viagra para contadores de "estórias". Também estive engripado. Mais gripado do que en.

Assim fui vendo as novas modas. Um ou outro comentário. Mesmo assim deve arrepiar ...será? Creio que não.

Ouvia o Benfica ao longe, som de fundo, bonito o som e arrumei umas letras... e por que não um dos meus amuletos??? Pois, meu caro Carlos aí vai, e eu te ofereço a estória deste amuleto. Está ali. Um dia mostro-te. É bonita.

O escrito é teu, é vosso, e dele farão o que entenderem.

Um abraço do Torcato (se recebeste e disseres OK, agradeço)
Torcato Mendonça


2.º GCOMB/CART 2339

ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 25

AMULETO

Soou, quase como um clarim, a voz estridente e ríspida do Furriel, ainda a manhã dormia.

- Está a levantar… está a levantar.

Tudo ainda era silêncio, todos se entregavam nos braços de Morfeu.
Ele não, ele já estava levantado, barbeado, aprumado, pronto. Até o quico estava impecavelmente colocado.

- Está a levantar…fod…

Olhou-o a um só olho. Manteve o outro de reserva, fechado e a resguardar-se, ainda, das lâmpadas alimentadas aos soluços pelos “Lister”.
Que tipo este. Uma máquina, sempre pronto e sem falhas. A continuar assim ainda vai a Sargento. Era isso. O tipo tinha ares de Sargento. Mas dos porreiros, claro.

Abriu então os olhos, aconchegou o material nos calções e espreguiçou-se urrando. Só depois, ainda devagar, se foi levantando.

Todas as gentes do abrigo se aprontavam rápidas, gestos mecânicos, conversas brejeiras, risos jovens, corpos a deixarem a nudez e a sentirem o desconforto dos camuflados duros e envelhecidos. A seguir vinham cinturões e cartucheiras, granadas e outro material. Curiosamente, à medida que se aprontavam, a alegria ia desaparecendo. Iam endurecendo as faces jovens de meninos soldados.

Aprontou-se ele, mais rápido agora, dando um olhar final pelo material preparado de véspera e, agarrando nas armas e no bornal, saiu.

Enquanto comia, ouvia o Capitão. Recebia ordens, papeis, e tomava uma ou outra nota. A rotina habitual.

- Quanto tempo tem disto?

- Eu? Para aí ano e meio, sei lá. Tenho tempo demais, tempo demais.

Saiu e dirigiu-se à coluna já pronta. Um simples menear de cabeça e tudo estava a andar. A pé claro. A pé até perto de Samba Juli, cerca de uma dúzia de quilómetros picando cuidadosamente a estrada, dura e seca naquela época do ano. Não facilitavam nada, nem ele nem os outros. Mantinham as rotinas habituais e a máxima “o suor poupa sangue”.

O olhar a tentar tudo ver, tudo sentir que dessa rotina fugisse.
Iam devagar, um quilómetro e mais outro, a picada de Candamã para a direita.

- Não vamos por Candamã?

-Não.

- Então ainda hoje vamos a Bafatá.

- Se der tempo, se der tempo. Vão vocês e voltam logo. Logo se vê.

O Pontão do Almami aparece e os cuidados redobram. A subida suave, a zona à volta da estrada desmatada. Abre o campo de tiro ao IN ou facilita a manobra das NT? Uma dúvida que se manteve e controversa.

A frente da coluna faz uma paragem breve. O cão, Geba, farejou algo. Picam mais forte e segue a coluna. Redobram os cuidados, ouvidos mais atentos, olhares a entrarem mata adentro.

De repente tudo pára. São décimas ou milésimas de segundo, são o breve instante, a paragem de tudo, o inexplicável, a separação entre a vida e a morte.

De repente tudo parece desabar, acaba o silêncio e tudo explode em sons de morte, de loucura, sons de rebentamentos, tiros, granadas, gritos, berros e a violência extrema está presente. Todos sabem o que fazer, como fazer e, quais autómatos, reagem na explosão máxima, na máxima força.

- O rádio, o rádio….

- Estamos a embrulhar a seguir ao Pontão. Quebec x a Quebec Y varre tudo com os 10.5. O 81 na picada de  Candamã. Deviam estar lá. Fogo nesta merda toda.

E o som lindo dos 10,5 e 81 ouvem-se e outro som aparece vindo das garganta daqueles homens. Riem e reagem mais forte, com mais alegria.
Lindo, lindo aquele som e chegam os camaradas vindos do aquartelamento.
Os sons vão perdendo força, a alegria está presente pela ausência de feridos e o rescaldo começa a ser feito por quem veio do aquartelamento.

Emboscada curta, vinte minutos talvez.

Encosta-se a uma árvore e ouve as explicações, o pedido de reforço de granadas e os preparativos de nova partida.

- Olhe aí. Os tipos acertaram em cheio na árvore. Olhe aí. Dia de sorte.

Viu os orifícios das balas. Uma, curiosamente mais saída. Puxou da “Zézinha”, a faca de mato, e extraiu a bala quase intacta. Mirou e remirou. Será de que arma?

- Da sorte. Da sorte que você teve.

- Merda. Merda para a sorte.

Guardou a bala no bolso e a coluna seguiu.

Vinte anos depois, menos. Talvez muito menos mandou-a banhar em prata e colocar uma argola na parte mais grossa.

Desde aquele dia acompanhou-o sempre. Virou amuleto.

Está aqui a olhar-me ou sou eu que para ela olho. Certo é que ainda consigo sorrir, talvez com menos alegria do que outrora.
Seria impossível e faltavam os sons.

Fica só a “sodade, sodade… da Cesária Évora…
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7505: Blogoterapia (170): A Casa da Praia (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 31 de Outubro de 2010:

Caro Carlos Vinhal e Editores
Como é feriado, ou domingo hoje e feriado amanhã deve estar de serviço o Vinhal. Ele está de serviço de segunda a segunda e aos feriados e dias de festa. Por conseguinte, salvo contratempo de ultima hora de serviço está.

Assim sendo, mesmo com o baralhar desta hora, que é só uma e dá para aborrecer, deprime, veio com neve e frio, chuva e vento uma m... chatice. Raio isto por vezes faltam as palavras e não queria dizer merda.

Como dizia e, em virtude de andar por aí, um ou outro escrito sobre os antigos militares portugueses de origem africana, cortei dois escritos, voltei a cortar, arredondei e vou anexar.

O titulo pode ser pouco ortodoxo. Cabral, Cabrais e suscitar alguma dúvida. Nada tenho a ver com o nome deles.

Quanto ao tal americano ou alemão ou só doutorando de história também pouco tem a ver com isto. Fica a saber, já sabia certamente, que há o verbo fuzilar. Não se praticava nas Forças Armadas Portuguesas.
Quanto à tese que atinja os objectivos pretendidos.

Um bom feriado.
Abraços do Torcato


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 24

Cabrais

Por vezes escrevo e ponho o título depois. Neste caso pus antes. Um nome, dois homens e, segundo estou informado, bem ou mal, muito diferentes.
Vou só abordar dois casos, levemente, parecendo muito pouco com eles ter. Não faço qualquer consideração mais. Devia faze-lo. Penso mesmo que seria necessário dizer algo mais. Fica para depois. Terei esse direito? Não sei. Mas se o não tiver que interessa isso, se nada dissermos caímos no amorfismo.
Quantas vezes se encobrem em mantos de silêncio crimes? Quantas vezes se assistem ao tecer de louvores e não são tão merecidos assim?


1 – Cabral (Luís)

Quatro anos depois de Abril, diante do pelotão (?) de fuzilamento qual teria sido o seu comportamento?
Acredito ter olhado com algum desprezo para quem comandava, para quem iria puxar o gatilho e, certamente, antes de abraçar com o ultimo pensamento a família, desprezou os mandantes, os senhores dos efémeros poderes daquele jovem País.

Para quem dialogou tanto com a morte, feia, desdentada e velha, para quem tanto naquela guerra combateu, do nosso lado claro, para quem acreditou num País novo, penso, pelo que dele conheci não ter sido de outro modo.

É tão estranho caminhar para uma possibilidade de morte onde os homens se temem, não se vêem, não sabem se se encontram mas caminham no medo e, de repente no encontro, o medo voa, vai-se e eles ficam mas já não são eles no seu todo. A parte do medo foi e só a outra parte deles ficou. Se a morte acontece cai o silêncio e só se ouve o sair do cheiro adocicado do sangue dos feridos.
Ele e muitos como ele a isso se habituaram.

Conhecemo-nos em 1968. Ele comandava ou era segundo de um Pelotão de Caçadores Nativos. Gente boa e valente. Fizemos alguns trabalhos juntos. Um deles foi uma operação na zona do Enxalé. Foi fuzilado em Porto Gole, não muito distante dali, dez anos depois.

Dez anos a separarem aquela operação estúpida, aborrecida e com demasiados contactos com o IN.
Ficamos amigos. Enquanto estive na Guiné ia tendo contactos ou só noticias dele. O Pel Caç Nat passou a ter outro Comandante, curiosamente um amigo também. Ele, depois de breve sobreposição, regressou a Bissau. Continuou militar, passou depois para os Comandos Africanos. Há uma foto dele na capa do livro do Amadiu Djaló – Guineense, Comando, Português. Ele era isso.

Depois de Abril ficou pela Guiné. Certamente acreditou num País novo, num poder vindo de Cabral (Luís), e, porque não acreditou que se iam implementar os ideais de outro Cabral, já então falecido e, por isso mesmo ou não, a ser esquecido. Erro dele, desse meu camarada.

Gostava de saber o porquê. Gostava de saber porque quatro anos depois isso aconteceu. Ingenuidade minha.
Até gostava de saber porque não consigo esquecer, a morte dele e outros, e perdoar ainda menos.

Deformações. Gente mal formada ou, talvez melhor, deformada como eu.
Certamente teria, como eles, o mesmo fim.


II – Cabral (Amílcar)

Era correio dele. Entre Conacry e o Leste. Só? Talvez mais.
Tinha, se bem me lembro, o posto de Comandante do PAIGC.
Foi feito prisioneiro em Mina, base IN perto do Xitole e viajou para Bissau. Como habitualmente falaram com ele e respondeu, tanto assim que veio fazer, como guia, chamemos-lhe assim, uma operação connosco.

(Nota breve: - Cheguei a Bissau, vindo de férias em Portugal, cerca de um mês antes desta operação. Disseram-me, com todo o à-vontade, que iria ser feita uma grande operação na “zona onde eu trabalhava”. Com estas fugas de informação... lá ia a guerra… mas era demais creio eu. Mesmo com tanto bufo).

Como dizia: - na véspera da tal importante operação, foi recebida uma mensagem a anunciar a vinda de um guia especial.
Horas depois, montada a segurança ao héli, eis que chega o homem.
Fui buscá-lo. Porquê eu? Não me recordo. Recordo, isso sim, ter assinado uns papéis e ter havido uma cena caricata com umas algemas. Continuemos.

Os papéis assinados, entregues, salvo erro por um oficial carteiro, eram uma espécie de apólice de seguro de vida ou encomenda recebida com aviso de recepção. Acrescentaram, em reforço, a importância da encomenda e foram-se a caminho de Bissau, levantando a poeirada do costume.

Olhei para o tal guia e vi um homem de estatura média, magro, calção e camisa, olhar sereno. Nada lhe disse. Enquanto caminhava para a zona do comando pensava para comigo: - mas que vale a vida de um homem aqui neste buraco ou nos locais para onde vamos? Nada. Menos que zero ou zero a caminhar para menos infinito. Eu, ele, todos nós éramos peças de um sistema.
Só que sem garantia. Se tinham defeito ou avariavam era um problema. Ele devia saber e tanto assim que a uma pergunta minha nada respondeu. Entrei no jogo e entreguei-o a quem sabia tratá-lo com cuidado.

No dia seguinte lá fomos, cuidados redobrados, as dúvidas a aumentarem e a resposta veio pela madrugada; uma valente e bem montada emboscada. Nunca esqueço aquela emboscada. Quatro feridos no meu grupo e a raiva a descarrilar. Ele e certamente muitos carregadores balantas a observarem a nossa reacção. Com a acalmia e depois das evacuações fizemos o balanço, mais um balancete e, para mim, foi a evacuação num dos últimos hélis.

Voltei recuperado dois dias depois.

Há pouco tempo, ao ver um vídeo de um helitransporte as imagens bateram fortes em mim. O aviso do piloto: - um minuto… o rotor mais forte, três para um lado e dois para o outro, o capim a ondular forte e a agachar-se e a subir com o héli a sair, a espera breve a virar eternidade e a fuga para o desconhecido da mata. Só que, desta vez, estavam lá o Comandante da minha Companhia e os meus camaradas. As saudações, os risos breves e a alegria do regresso. Passado pouco tempo vi-o. Perguntei pelo comportamento dele. Fala muito pouco e a comida quase não lhe faz falta.

Como estávamos à espera de ordens e era quase final de dia, sentei-me perto dele. Passado pouco veio cumprimentar-me em francês. Respondi-lhe e perguntei se não falava português. Sabíamos que ele falava várias línguas e dialectos.
Sorriu e falou em português. E em português nos entendemos durante os dias que durou a operação. Não descrevo aqui e agora. Creio já dele aqui ter falado.
Por vezes torneava e não me respondia. Outras era ele a perguntar e eu a fugir à resposta. Um dia disse-me:

- Sou um homem morto. Se tento fugir vocês abatem-me. Se conseguisse o PAIGC fuzilava-me.

Olhei-o e pouco ou nada disse. Retive a palavra fuzilar. Nesse dia ou no outro perguntei-lhe e ele habilmente fugiu à questão. Era natural. Mesmo assim fiquei a saber bastante nas conversas tidas.
Regressou connosco. Vinha estafado e ajudamos na sua recuperação.

No outro dia um héli veio buscá-lo. Despedimo-nos com militares e amigos. Amigos de futuro incerto. Tinha a noção de que, naqueles dias tinha convivido com um homem de fortes convicções e saberes. Sabia o que dizer e até onde podia ir. Respeitava a nossa tropa e disse-o sem lisonja.

Mansambo > Alf Mil Torcato Mendonça acompanhado pelo prisioneiro do PAIGC

Talvez em Bissau o regresso tenha sido festejado com interrogatório mais duro. Talvez. Certo é que, passado pouco tempo no Batalhão foi recebida uma mensagem a pedir informações sobre um alferes. Tudo passou.
Dele nunca mais soube.

-Em nota de rodapé:
Devia ser feita uma análise ao PAI e ao PAIGC. Duas letras GC, dois Países hoje, colónias outrora, gentes que tinham e têm enormes diferenças. Um dia disso poderemos falar. Porque não?
Até poderá falar alguém. Devia ser feito.

Em Parte Incerta Outubro de 2010
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7196: Blogoterapia (166): Um abraço fraterno neste ultrapassar dos 2,1 milhões de visitas (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 3 de Outubro de 2010:

Caro Carlos Vinhal e Editores
Escrever pela manhã é porque algo se escapou ao normal.
Desta vez foi o Outono, não como prenuncio de "inverno do nosso descontentamento" mas chove. Não me alegra o suficiente para sair a chover assim. É natural e ciclo normal.

Vim ao blogue, li parabéns ao Hélder em alegria e, como o dia envio-te um texto molhado, não de lágrimas, na data desta emboscada já as perdera, talvez alguém, menos desumanizado do que eu tenha deixado cair alguma.

Aí vai o engenheiro e as desigualdades entre os homens... até na morte???. Não. Isso não. Até... fica para depois.

Um abraço e bom domingo.
Torcato

Vamos andando e rindo


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 23

Os Filhos d’um Deus Menor

Chegou cansado, sujo, farto.
Depois de deixar o Grupo foi direito ao comando.
Entrou e viu gentes de fora. Sobre a mesa papeis e desenhos.
Depois dos cumprimentos, informou o capitão de que tudo tinha decorrido como o previsto e ia tomar um banho.

- Vá e depois venha ver isto. E, “isto”, eram os desenhos e papéis.

À saída ainda agarrou numa “White Horse”.

Após o banho estendeu-se na cama. Bebia pequenos goles da “cavalo branco”. Aquietava, assim, os bichos que por dentro o devoravam, os medos, e, deixando-se embalar nas saudades, adormeceu.

Sentiu que o chamavam. Olhou para o telefone sobre o caixote, pomposamente apelidado de mesa-de-cabeceira, soltou um palavrão e ficou a saber que o capitão o queria ver, já. Vestiu, pouca roupa, soltando palavrões e dando, nos intervalos, um ou outro gole de uísque.

Voltou a entrar na “sala do abrigo” multiusos; comando, messe, bar, tudo e nada ou muito naquele deserto de desconforto onde, o aproveitamento de um caixote ou similar eram luxos.

- Aqui o engenheiro trouxe o projecto de sanitários e balneários novos. Até fossa céptica tem. A água saída de lá é melhor da que aqui bebemos. Capitão disse!

Olhou para a papelada e trocou breves palavras com o engenheiro. Homem de calvície precoce, olhar e palavra calma e triste, aspecto, naquele local, de peixe fora de água.

- Nós temos balneários, bidões ligados em entre eles, chuveiros por debaixo e, se o IN não os furar, funcionam como em hotel de cinco estrelas. Não de hotel, temos sanitários rudimentares e nada privados; valas abertas em paralelo e umas tábuas a atravessá-las. Depois, bem depois com a pá deita-se terra por cima e está concluído. Funciona.
O engenheiro da calvície precoce disse:

- Mais primitivo não deve haver. Eu já visitei tudo e estou a par das instalações que têm. Depois de abrirem, conforme o projecto, o terreno, avisam e mandamos o material.

- Tudo bem respondeu.

O capitão já enrolava papéis e desenhos. O jantar vinha aí e a mesa iria sofrer mais uma transformação. O que nunca sofreu qualquer transformação foram os balneários e sanitários.

No outro dia, com a madrugada a chegar, sentiu-os partir. Lá ia a escolta ao engenheiro e a materiais diversos na véspera trazidos.
Pouco tempo depois, ainda Morfeu não tomara conta dele, sentiram-se sons de rebentamentos e tiros. No abrigo todos se ataviavam na confusão habitual e ouviam-se gritos: - emboscada… bora… bora…

Meio vestido, G3, cartucheiras e sacola (dilagramas e afins) na mão tomou lugar na viatura e lá foram.
Chegaram rápido com o som de poucos tiros ainda a ouvirem-se.

Viu o engenheiro, sentado e com o olhar ainda mais triste. O Grupo da escolta estava em posição pouco habitual e foi falar com o alferes. Sentiu então chamarem-no e viu alguns, mais rápidos que ele, a fugirem estrada acima. Lá no alto, no local habitual das emboscadas, estava quem a sofrera. Uma secção reforçada do Pelotão de Milícia 145 caíra naquela emboscada com mina comandada e forte potencial de fogo. O IN só parara a frente da coluna.

A mina comandada provocara dois mortos, três feridos, um militar que foi apanhado à mão e o Sargento tinha desaparecido. Houve quase corpo a corpo, troca de palavras, em fula certamente, sobre a “Lança Afiada” que o IN tentava vingar e, nesta emboscada o “libertador” que accionou a mina faleceu, vítima de tiro na cabeça.

Como prova deixou miolos. Sofreram cinco mortos, confirmados pelo cabo Milícia Laminé que conseguiu fugir e apareceu três ou quatro dias depois. Talvez os obuses 10.5 tenham sido responsáveis por algum dano.

Dano forte sofreu o Pelotão 145 com dois mortos destroçados pela picada e, em parte, no cimo das árvores, certamente para gáudio dos jagudis.

O Sargento, desaparecido, desistiu da perseguição, estava ferido, e regressou ao quartel.

Tempo, muito mas muito tempo depois leu algures, onde, não sabe ao certo ou seria só o vento ou o sonho a trazerem-lhe recordações? Seria esta emboscada? Talvez. Dizia assim, se bem se lembra:

- A Virgem Maria (ou um Ente Superior), protegera, mais uma vez, aqueles homens.

Claro, os do Grupo da escolta e, todos eles, saíram ilesos.

Felizmente, digo eu.

Só que, também digo, infelizmente, outros, talvez Filhos de um Deus Menor, sofreram na carne a violência, a dor, a morte, o horror de uma guerra fratricida. Sim mortes de ambos os lados em gentes que, talvez, anos antes conviviam como irmãos.

É a guerra. O estúpido desentendimento entre os homens e, porque não, entre os deuses.

Mansambo, aos 02 de Abril da ano da Graça de 1969
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(*) Vd. poste de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7090: Blogoterapia (159): Paradoxo e uma Orquídea (Torcato Mendonça)

Vd. último poste de 2 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969

sábado, 2 de outubro de 2010

Guiné 63/74 – P7070: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (22): A morte no final da comissão, Bissau, em 3 de Outubro de 1969


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Álbum fotográfico do Albano Gomes > Foto nº 10 > "O Obus 10.5, virado à fonte, que, conjuntamente com outro instalado do lado contrário do Aquartelamento, e quando manuseados pelo Pelotão de Artilharia ali instalado, faziam Manga de Ronco" (AG). 

Fotos (e legendas): © Albano Gomes (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os  direitos reservados.


1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 28 de Setembro último:

Assunto: Destinos


Meu Caro Camarada e Amigo [Carlos Vinhal]: 


Antes que o mês acabe vou fazer paragem na sabática. Ou seja, envio um texto lamechas na leitura apressada. O 3 de Outubro está perto. Sabes,  aquele escrito e outros estão "aquietados". Mas li este e fiquei a pensar, a recordar. São coisas que só um homem sabe bem e, se for lido em linhas e entrelinhas ou se vai lá ou, em gente de certo passado como nós, estabelecemos analogias.

Tenho ultimamente lido mais ao correr do rato. Outros paro e consumo devagar. Concordo, discordo e,  como anteriormente disse,  não comento. É pior e fica-se a remoer. Há concepções...bem não adianto mais ou... delete. A pluralidade opinativa é um valor adquirido e tem toda a razão, Felismina, de existir. Mas será extensível a tudo o que aqui aparece. O "aqui" é o blogue.

Eu nem sei se estás ao serviço ou de serviço. Parto do princípio que sim e, como quase sempre peço,  diz se chegou...basta um Ok. Quanto ao anexo é vosso e dele fazem o que quiserem.

Ainda vou tratar de uns assuntos e já é 28 de Setembro

Abraço a ti e extensível aos Editores e a Todos claro está.
Torcato

PS- Esta Bolha pode ser a uma por semana. Serei capaz? Sem compromisso,  como sempre. 

 
2.  Estórias de Mansambo II > Logo Ali, o Vazio…
por Torcato Mendonça (**)

Alegre, sorriso fácil, normal gosto por festas e bailaricos. Cresceu na planície com horizonte largo, a cidade lá muito ao fundo, e, á noite, sentado no portal da casa, olhava as luzes da cidade a tremerem devido ao calor a sair lento, lentamente da terra quente.
Planície de terra negra, fértil, terra de barros e terra mãe a dar sustento a ranchos de homens e mulheres que nela trabalhavam.
Ele trabalhava-a com carinho, mesmo com jorna magra e quando o sol se começava a querer esconder no horizonte a casa voltava.
Recebeu, através da Junta de Freguesia, a carta a dizer que teria que ir para um quartel. Carta curta, simples e a partir daquele momento estava incorporado como militar. Assim, poucos dias depois beijou a mulher, tocou-lhe ao de leve na cara a desviar a lágrima que descia.
Partiu então e por lá andou, correu, saltou, aturou berros e gritos. Nada disse, quase nada sentia a não ser o desejo de voltar. Voltar para junto da mulher, da terra negra, afagar ambas e á tardinha olhar a planície sem fim.
Um dia disseram que teria que ir para África. Onde? África e Guiné.
Ficou triste. Voltou a casa por breves dias, olhava ternamente a planície, o horizonte e com a mulher ao lado sem nada dizerem. Sentia quanto aquela aproximação seria breve. Sentiam, ele e ela, de modo diferente tudo o que os rodeava. Guiné? África? Porquê?
Voltou a despedir-se da mulher, fez-lhe uma festa no ventre e sorriu. Sorriram ambos na angústia de um destino desconhecido.
Meteram-no num barco, barco enorme, barco prenhe de militares companheiros de viagem em porão mal cheiroso e, cada vez mais nauseabundo á medida que os dias passavam. Sulcavam mares como o seu povo há séculos fazia mas, ele e outros, certamente também de pronto dispensavam. Passaram os dias, lentos e numa manhã ouviram o grito de que estava terra á vista.
Olhou e ao longe viu a neblina a levantar-se da terra. Lembrou a sua planície e rápido desviou o pensamento.
Horas depois aí estava o barco parado, a azáfama do desembarque, o calor a encharcar o corpo, a humidade a fazer-se sentir. Olhava e sentia ser tudo diferente, tudo a nada lhe dizer, tudo a levar a questionar-se o que ali fazia.
Não o deixaram gastar muito tempo, em visitas, olhares ou pensamentos. Não tardou a ser metido num batelão de nome esquisito. Ele, viaturas, caixotes enormes e, claro, os seus e outros companheiros, que aqui eram camaradas, lá seguiram viagem. Desta vez, não por mar, mas por um rio enorme acima.
Foi parar a um quartel. Chamavam àquele amontoado de casas desgastadas, barracões e buracos enormes tapados por troncos e com valas, no chão abertas, quartel. Seria um quartel ou um aquartelamento. Tudo bem para ele.
Tudo diferente, tudo estranho, onde o horizonte era já ali baço e verde, com a floresta num verde-escuro a sobressair da terra vermelha e quente.
Os amigos eram os camaradas do grupo e da Companhia. Falavam, riam, tentavam adaptar-se e afugentar para longe as recordações do seu Pais.
O tempo passava lento, tão lento que, sem por isso dar, veio a carta e nela a nova de que era pai de uma menina.
Se até aí as saídas para o mato em operações, as colunas com muitas viaturas, os tiros e rebentamentos eram a normalidade daquele estúpido viver e até a vontade de rir ou sorrir iam desaparecendo, naquele momento ficou parado, quieto, olhar vazio. Não soube o tempo que assim passou. Despertou com o vozear dos camaradas e sentiu que as forças lhe fugiam corpo abaixo, a cara a ficar molhada, os cheiros a serem os da planície, da mulher, da terra negra. Sentiu-se só, demasiado só. Sentou-se e o corpo ali e ele lá, ele a lá voltar, não sabia quem já era, que fazia ali, que tinham feito dele, porque, em tão pouco tempo, vira tanta desgraça e tanta miséria. Sentiu medo, mais medo, medo de tudo e dele também.
A partir daquele dia sentiu-se outro, mais temeroso e a desgastar-se no tempo. Tempo a passar cada vez mais lento, tão lento.
Andava cabisbaixo, diferente e fazia contas ao tempo que faltava. Quanto? Um ano, seis meses, três?
Se saía para o mato sentia-se mais fraco, sentia mais o medo, os medos que todos sentem e mais os dele.
Recebeu a notícia com certa indiferença. Ia para Bissau para tratar e cuidar de teres e haveres dos seus Camaradas da Companhia. Tinha tantos meses de comissão e nunca vira Bissau, excepto, brevemente, ao desembarcar e nem dera para ver nada. Vida de soldado era difícil.
Passados dias aí estava Bissau. Habituou-se rapidamente e reaprendeu a sorrir. Os pensamentos continuavam caminhando para a sua planície, família e os seus camaradas no mato. Como a guerra ali era diferente. Guerra só de nome e gente com risos e vidas a correrem rápidas e alegres. Muito deles em passagem para voltarem ao mato, aos medos, á vida que dispensavam.

Naquela manhã saiu alegre. Entrou no jeep, o amigo a conduzir, Bissalanca logo ali. Estrada fora ele a dizer que teria o embarque daí a dois meses. Seria?

A hiena apareceu, o jeep guinou, saiu célere da estrada, o baga-baga parou-o. Da testa escorria-lhe um ligeiro fio de sangue. Talvez o seu último pensamento tivesse chegado á planície, á terra mãe, á mulher e a sua filha…talvez…

Nenhures ou entre o Alentejo e Bissau aos 3 de Outubro de 1969
_____________

Nota de L.G.:

18 de Maio de 2010

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão


(**) 

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/05/guine-6374-p6423-estorias-de-mansambo.html

(***) Na lista dos Mortos do Ultramar, organizada pelo portal Guerra do Ultramar, consta, no concelho de Beja, o nome de  José Francisco Gaié Casadinho, natural da freguesia de São Matias, sold da CART 2339, vítima de acidente de viação em 2 (e não 3) de Outubro de 1969. 

terça-feira, 18 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão

1. Mais uma Estória de Mansambo, enviada pelo nosso camarada Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) em mensagem datada de 11 de maio de 2010.


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 21

ZUMBIDOS em NOITE de VERÃO



Vista para Poente. O abrigo com a entrada pela falta do bidão. Em Junho não havia espaldão do 10,5


O clarão, o som, a força bruta a atirá-lo de encontro ao fundo da vala.

Cabeça à roda, ouvidos a estalarem, olhos a nada verem, só, só aquela mancha de cor forte, entre o amarelo dourado e o esverdeado.

Tudo à volta roda. Sente que o puxam e deixa-se arrastar. Não sabe o que sente. Não sabe nada do que aconteceu. Parece que tudo desabou.

Molham-lhe a cabeça e a água escorre pelo tronco nu, vai activando o cérebro e aos poucos sente que regressa.

Regresso de onde? Quer falar e nenhum som sai ou se saírem, talvez, sejam sons de confusão.

Tocam-lhe e sente. Está confuso, nada ouve, nada vê. Tem vontade de ir para o fundo, vontade de descer.

Quanto tempo se passou, segundos, minutos? Quantos?

Lentamente, aos poucos, começa a passar as mãos pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos. Tenta levantar-se e ajudam-no. O calor de uma chama qualquer vem até ele, só que não vê. Metem-lhe um cigarro na boca e suga-o sofregamente.

Aos poucos sente um ruído, um zumbido diferente, um som que não consegue definir. Sente somente que os pensamentos voltam lentamente e a confusão se vai. Os zumbidos vão-se transformando e o pensamento voltando.

Começa a saber onde se encontra, a sentir o que o rodeia, a tocar objectos e a virem sons mais perceptíveis. A mancha que lhe turva a visão continua, mais suave, mas ainda lá está.

- Apanharam-me. Lixaram-me, espera, espera um pouco mais.

Sente aos pés o morteiro sessenta e uma caixa de granadas. Agarra-os e sai.

Apanharam-me sacanas… e sai uma e outra e mais outra granada… começa a ter noção do espaço, da situação. Do abrigo o guarda-costas grita, chama-lhe doido e, dizem-lhe depois, nomes piores. Ouve som que não consegue definir e de repente vê a chama da saída da granada pela boca do morteiro.

Vê. Vê e talvez tenha sorrido. Rebola para a vala e o abrigo dos dilagramas e dos sessenta. O morteiro está a ferver. As mãos estão queimadas e agora sente o ferrete da dor no peito. Que importa se já vai vendo, difuso, enevoado mas vê e começa a ouvir, a sentir as palavras do Serra e ali ficam naquele buraco a dar resposta ao inimigo que veio sem ser convidado. Veio para arrasar tudo. Quantas horas já se passaram? Não sabe e isso que interessa.

Amanhece e ainda se digladiam.

Entra no abrigo grande e tudo está bem. Parece que por ali passou um ciclone.

- Os cabrões não partem porque querem levar os mortos e feridos.

As munições começam a escassear, as dores e o cansaço a vir. Parece que tudo, na parte dele, da parte dos militares a que pertence está bem.

Vieram caçar-nos e foram caçados.

Aos poucos tudo começa a acalmar, lentamente os tiros soam espaçadamente e as armas pesadas já não se ouvem.

Estendem-lhe uns calções e tapa a nudez. Os abrigos comunicam entre eles e tudo está bem. Felizmente e da tabanca vêm sons igualmente animadores.

Tenta calçar as botas mas tem os pés lixados e sai de chinelos.

Apontam-lhe o buraco da morteirada junto à vala. Encolhe os ombros e sobe-lhe a raiva pelo que lhe aconteceu.

Voltam a chamá-lo. Vai um pouco mais à frente, junto da segunda fiada de arame, está enorme poça de sangue, metade de um cinturão e uma Ceska num coldre. Vêem-se sinais de arrastarem o corpo do dono dos despojos. Graduado de certeza, melhor ainda. Levanta os braços ao alto e ri, ri alarvemente em hino à morte ou à falta de sorte e lança ao ar palavras de ofensa. Tempos loucos.

Doem-lhe os ouvidos, os pés, as mãos. Dói-lhe tudo e ainda ri, riso alarve.

Que noite de merda, diz e afasta-se….

Ainda a sente. Basta com ele falarem.

Mansambo, 28 de Junho de 1968


Rescaldo do ataque de 28 de Junho


Mansambo > Bonito, agradável e saudável

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6410: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (9): O saco do Zé Paz D'Almas

Vd. último poste da série de 13 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Choro na noite, mais uma Estória de Mansambo, de autoria do nosso camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 20

CHORO NA NOITE


Noite clara e a chegar rápida.
O cansaço a tomar conta deles, a paragem a ser feita na bolanha do Bissári.

De repente choro de criança, choro de bebé a soar forte, a cortar a noite, a avisar o inimigo da posição.

- Vai com um milícia dizer à mãe para calar o gaiato.

Traziam três mulheres, uma ou duas com bebés e dois ou três rapazes. Vinham de Cancodea Beafada. Traziam os prisioneiros porque tudo ficara destruído e essas eram as ordens.

O choro parou e o sono foi tomando conta dele e dos outros.

De repente o som forte a cortar a noite. Choro de bebé novamente.

- Foda-se, vai calar o bebé.

- A mãe não percebe. É balanta ou beafada.

- Anda comigo.

A mulher olha-os, embala a criança, afaga carinhosamente o corpito, tenta dar-lhe a mama, cala-se por breve momento o bebé, breve muito breve e volta a chorar forte.

Por gestos tenta fazer-se entender. Sente que o som põe em perigo todos aqueles homens.

E agora? Agora, em gesto brusco, olhar de louco puxa da faca enorme e encosta-a ao seu pescoço. Faz o gesto de degolar.

Na pouca claridade da noite sente o olhar de terror daquela mulher a fundir-se com o seu, sente a criança a ser mais fortemente apertada, sente, nas outras mulheres o medo.

Levanta-se. Sente, ele mesmo, ser um selvagem. Mesmo sendo impossível concretizar a ameaça. Volta com a cabeça a latejar e ouve barulho noutro lado.

- O rapaz mais velho fugiu e outro está ferido…

Fala com o Capitão e rápido iniciam a marcha de regresso. Passos apressados, fatigados, caminhar de gente farta de andar e pouco depois ouvem a saída e o estrondo da granada de morteiro, logo mais outra e curtas rajadas… cabrões… foi o rapaz… Estavam perto… o gaiato ou o rapaz?

Apressam o passo. Andam, mexem as pernas como autómatos e esgotados param uns quilómetros à frente. Consultam o guia, a carta e a bússola, metem-se debaixo do “ponche”, encostam-se ombro com ombro sentados nos calcanhares… só uma hora… fuma um cigarro e “vê” o olhar da mulher… sente-o… raios o partam.

Voltou a vê-la com a criança já em Mansambo. Ela olha-o com terror… afasta-se dali… pede ao Leonardo, chefe da tabanca, para lhe darem o que ela quiser e conta-lhe. O velho ouve-o, bate-lhe no ombro e sorri ao afastar-se.

O olhar dela, daquela mãe não sorri… andou muitas noites de suor com ele e, mesmo agora que alinho letras, se fechar os olhos vejo-o ali… mesmo ali… e arrepio-me…

Mansambo 18 de Março de 1969
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6375: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (19): Tabanca de Fá Mandinga

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6375: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (19): Tabanca de Fá Mandinga

19.ª Estória de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

2.º GCOMB/CART 2339

Repasto

ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 19

Tabanca de Fá Mandinga

Sento-me num banco de madeira, baixo e feito de uma só peça.
Banco confortável e muito usual nas tabancas.

Observo a destreza do artesão a dar cor ao cabedal. Gestos quase de ritual, repetidos de há muito, gestos, certamente herdados e transmitidos há séculos pelo seu Povo. O povo Mandinga.

Falamos, entre um português que ele não domina bem, e um crioulo que eu, ainda, nada sabia. Entendemo-nos contudo.

Observo o artesão e toda a zona envolvente. Tudo é novidade para mim. Estou na Guiné há cerca de um mês. Um mês a parecer já muito tempo.

Um mês de descobertas e um mês a mostrar que, de África, muito pouco sabia. Tantas questões que a mim colocava. Logo essa da língua e porque, em cinco séculos, só ínfima minoria sabia falar português.

África era terra praticamente desconhecida, terra a necessitar quase uma aprendizagem total. O que lemos ou o que nos explicaram pouco, muito pouco, tinha a ver com a realidade vivida.

Os cheiros, a cor da terra, as gentes e a guerra. Tudo. Praticamente tudo merecia total aprendizagem. Em Fá de Cima, onde estava com a minha Companhia, reinava a paz e era um bom local para se aprender.

Não parávamos lá por muito tempo. Depois de termos ido ao Xime receber o treino operacional, sendo a Companhia de intervenção do Batalhão, estávamos quase sempre de saída.

Rusgas aos Nabijões, seguranças a Mato de Cão ou, em Bafatá à visita do Presidente da Republica, em operação, bem sucedida, ao Galo Corubal e onde recebemos o baptismo de fogo.

Mês intenso que relato em poucas linhas. Intensidade a prolongar-se até final.

Para ali viver, para estar de bem comigo e com aquela gente, para sentir África e passar melhor aqueles tempos, tentava adaptar-me o melhor e o mais rápido possível. Relevo só dois ou três acontecimentos:

- Bafatá; a primeira ida aquela cidade mostra-me uma realidade diferente. Cidade bonita, edifícios com ar colonial, vivendas a ladearem a rua principal e esta a terminar no rio Geba.

Só que antes estava um edifício, o que mais gostei em Bafatá, o Mercado com a sua arquitectura a imitar edifícios árabes. Um pouco mais abaixo, já com o Geba à vista uma piscina.

Recordo bem a primeira visita ao mercado. Os cheiros agoniaram-me.

Visita curta a não conseguir ver a diversidade dos produtos, a variedade das cores dos panos e o bulício de mercadores e compradores. Um encanto a ser vivido posteriormente.

O cheiro que me fez sair do mercado. Já, tempos antes, me tinha incomodado numa rusga aos Nabijões ou, pior ainda, numa visita para encontro de sexo. Foi sol de pouca dura e rapidamente me habituei e adaptei.

Agora, ali estava eu a ver a bainha da espada mandinga cada vez mais composta. Já tinha o cabo e a bainha da faca de mato coberta com um entrançado em preto e branco, em desenho mandinga.

O artesão tinha-me oferecido uns amuletos. Retribuí com outros objectos.

A afabilidade daquele povo, mandinga ou fula, era admirável e deixou-me marcas indeléveis. O modo como as mães tratavam os filhos ou o carinho e respeito para com os “velhos” não se esquecem.

A minha aprendizagem continuou até ao fim da comissão. Muito, mesmo muito, ficou por aprender.

O Povo das tabancas é diferente do das cidades, das “elites” dominadoras. Certamente, o fosso entre os detentores de poderes e dinheiro, de hoje, aumentou negativamente claro.

São conjecturas subjectivas. Certamente e infelizmente estão próximas da realidade.

A minha velha espada Mandinga ainda vive. A guerra acabou felizmente e a amizade, o carinho, o respeito e a saudade que sinto por aquela gente, aumentou com o tempo.

Não se explica e para quê? Parece um paradoxo a guerra, a convivência com o povo e a recordação de hoje.

Mas de facto não se explica. Só vivendo o ontem e o hoje.

Um abraço,
Torcato Mendonça
Alf Mil At Art da CART 2339
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Nota de CV:

Vd.último poste da série de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6363: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (18): Dia final