Caríssimo Carlos Vinhal
Vim aqui, em tarde de fica ou sai, li um ou outro texto e comentário e meditei um pouco. Ia responder. Desisti. Para quê dizer que todos, quase todos, os militares desembarcados em Bissau deviam ter feito, (mesmo curta ou muito, muito curta... uma semana com viagens e alimentação incluídas) uma passagem pelo mato. Norte, Sul ou Leste. Viam, ouviam e regressavam mais confortados com uma realidade... bem, ponto final.
Assim, nada comentei e "farejei", encontrando, um escrito de outro tempo.
Passagem de olhos, cortes em demasia talvez e aí vai.
Repara que, ao viver assim nós éramos, disso tínhamos consciência, uns privilegiados.
Bom resto de Domingo.
Eu irei fazer por isso, agora que o Sol se começa a aquietar...
Abração amigo do
Torcato
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 28
GUINÉ - TEMPO DE VERÃO
Para avivar a memória abri a Agenda de 1969.
Escolhi, essa a intenção, os meses de Julho e Agosto. Folheei a amarelecida Agenda. Apelei fortemente à memória, sobre essa parte de minha vida, quase o quotidiano do 2.º Grupo, o “meu Grupo”. Ali estavam, em breves notas, demasiado telegráficas, o bom senso de então assim aconselhava, o nosso viver colectivo.
Relembro agora. Há sempre um certo receio, uma dúvida quanto ao relato hoje, de acontecimentos há tanto tempo vividos. São o que em verdade, na minha verdade, recordo e transcrevo então.
Picada Afiá / Candamã
Assim:
- Em 13 de Julho, saída de Candamã e Afiá, depois de atribulada estadia de cerca de um mês.
Passagem e pernoita em Bambadinca.
Aí estava o desejado duche, depois de um mês sem o tomar, a roupa limpa, a cama com lençóis, o jantar servido em pratos sobre mesa coberta por toalha, talheres e copos. Um luxo, uma alegria.
No dia seguinte seria o regresso a Mansambo, a nossa base, o campo fortificado como estupidamente o Paigc o apelidava.
Tínhamos assim breves horas para respirar ar puro entre paredes, beber conteúdos frescos em copos de vidro, rir, ver revistas de nosso País e conversar descansadamente. Podíamos, se para isso tivéssemos tempo, melhor se para isso tivesse tempo, fazer uma passagem, em local certo, para passar um bocado com mulher de ocasião. Em Mansambo a única população eram os picadores e famílias. O respeito era a norma, claro.
No dia seguinte afivelávamos vestes e cinturões e partiríamos para fazer aqueles vinte ou trinta quilómetros de picada.
Voltávamos a picar a estrada, aos automatismos, às rotinas, aos olhos na nuca, a carícias às armas. Voltávamos a ser nós ou no que queriam que fossemos. Ali, na picada, na mata um segundo valia muito, o descuido era quase crime. O segundo de distracção podia custar uma vida.
Em Mansambo tratamos do correio, de roupas e relatórios, das novidades e do abraço aos camaradas.
- A 15, dois ou um dia depois, a ordem:
- Amanhã seguem para Bambadinca e depois recebem ordens. Devem ir reforçar, em Galomaro, a 2405 e o COP 7.
E assim foi.
Galomaro era um lugar simpático. Camaradas impecáveis, Posto de Administração Colonial, alguns comerciantes e muita tranquilidade.
Fomos para um aquartelamento em construção. Ao lado, uma pequena pista de aviação de onde, em operações relâmpago saiam os Pára-quedistas. Nós assistíamos, guardávamos as instalações e sabíamos como o In andava furioso. Natural depois da nossa saída do Boé e o termos deixado toda uma imensa zona desguarnecida. O Administrador de Bafatá não entendia assim. Como ele, outros, e, nesses outros é que estava o mal. As nossas Info militares eram pobres, mais do que pobres. As Informações fidedignas tinham outros autores. Para depois…
- A 22 estávamos em Madina Xaquili. Lugar nada agradável.
Galomaro > Torcato Mendonça à esquerda
Regressamos a Galomaro e, em 1 de Agosto, devido ao comportamento do IN fomos para Nova-Cansamba. Tabanca em pretensa autodefesa, mas estava, isso sim, desordenada, sem qualquer plano de defesa e a sofrer ataques com certa frequência. O Grupo que lá estava e fomos render, rapidamente se eclipsou a caminho de destino mais calmo. Ficamos gratos.
Nessa noite fomos logo atacados. Tínhamos montado, no pouco tempo que ali estávamos, uma defesa ainda incipiente. Estavam lá, ao serviço da tal autodefesa, uma Degtaryev, um morteiro 82 IN, muitas munições e bastante armamento entregue à população. Preparamos o nosso material e distribuímos o Grupo. Com um bidão fizemos a nossa “pesada”. Ou seja, cortava-se totalmente uma tampa e, no outro lado só metade. Lá dentro em rajada curta, mais longa de quando em vez, funcionava uma G3. O barulho era brutal. Certo é que a resposta ao ataque, depois de dezoito ou dezanove meses de comissão, foi o suficiente - forte e feio - para não mais, nos quinze dias que lá estivemos, aparecerem. Apareceu mais um ataque de paludismo para mim.
Só.
No dia seguinte, certamente pelo ruído dos rebentamentos e tiros. Não tínhamos rádio mas tínhamos operador, não tínhamos enfermeiro mas tínhamos bolsa, apareceu um Major Pára-quedista. Fizemos breve relatório verbal, pedimos material para a autodefesa e pouco mais. Tinha condições o local e aos poucos iria melhorar. Além disso a população era simpática.
A 15 de Agosto, para desgosto nosso, aí estava a ordem de regresso a Galomaro, em trânsito para Bambadinca.
Em Bambadinca, já com o nosso Comandante de Companhia, breve “briefing” e recebida a ordem. Partida imediata para Candamã. Missão: Encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Informações recebidas sobre esta personagem, breve troca de palavras e uma chamada à parte, feita por alguém, a mim:
- Só sais de lá quando o encontrarem. Depois têm um fim-de-semana em Bafatá. Não tivemos, não havia tempo… falhou… está esquecido e tudo bem.
Saímos, comandados pelo nosso Comandante de Companhia e outro Grupo.
Fizemos uma breve paragem em Afiá para convencer o Lhavo (o melhor Guia que conheci) a acompanhar-nos. A contragosto acedeu.
No dia seguinte lá fomos, com saída de Afiá onde se dera o ultimo ataque IN.
O Lhavo, bem protegido, seguia à frente na habitual progressão tão nossa conhecida. Foi detectado um local onde o IN tinha pernoitado. Apanhado, cuidadosamente claro, algum material perdido e vistas as coberturas feitas com ramos de palmeira (era época de chuvas). Tivemos então consciência de que era um grande e bem armado grupo. Com mais cautelas ainda prosseguimos. Ao final do dia detectamos e confirmamos o local do acampamento.
Regressamos a Candamã e o Batalhão foi informado.
Dois dias depois, em madrugada com chuva miudinha, se a memória me não atraiçoa, os Pára-quedistas, heli-transportados claro, assaltaram o acampamento, destruíram tudo e todo o grupo reforçado do Cmdt do Paigc, Mamadu Indjai, se pôs em fuga. Nós ali emboscados, ajudados por outros não os detectamos.
Caíram numa emboscada, muitos quilómetros depois na estrada de Mansambo para o Xitole, montada pelo 3.º Grupo da “nossa 2339”. Baixas confirmadas e ferimentos graves no Mamadu Indjai.
Regressamos, ainda nesse dia a Mansambo com passagem e, nesse caso, talvez tenhamos pernoitado em Bambadinca.
- Em 24 de Agosto estávamos a fazer parte das tropas que faziam a primeira Operação Pato Rufia. Guiava as NT um elemento do Paigc, aprisionado aquando da destruição do acampamento do Mamadu Indjai.
Borregou a operação e regressamos.
Foi feita a versão dois da Pato Rufia e já não participamos.
Dias depois, já não o esperava, fomos para Afiá e Candamã. Seria uma estadia de um mês, com vinte meses de Comissão. O In desta vez não atacou.
Entre as breves notas e os “flashes” da memória fica muito por relatar.
Digam lá, mesmo assim, se não era divertido fazer tanta viagem, ver e conviver com tanta e variada gente, ter tanto desconforto e algum conforto.
Boa e saudável vida.
Que mais desejaria um jovem de vinte e quatro anos (quase a fazer vinte e cinco), acompanhado de outros, a maioria mais novos, alguns já casados e pais de filhos?
Era agradável?
Se pensar, com a mente a regredir para esse tempo, nem sei ao certo.
Hoje não sei ou, melhor, não quero saber. Prefiro assim.
Regressamos um dia ao nosso País. Diferentes, como que vindos de um mundo irreal… ou teríamos desembarcado num mundo, esse sim, irreal…?
Ninguém me ou nos perguntou. Ninguém estava interessado. Ninguém, ao menos nos interrogou…
- Quem és tu (Romeiro)? Ou sois vós…
- Ninguém… responderia ou responderíamos…
(frase, adulterada, do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8503: Os nossos regressos (25): Tempo de partida, há tanto tempo... tanto (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 11 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7927: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (27): O absurdo do monólogo a dois