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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15149: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIV Parte): Fuzileiros, Páras e Felupes; O que se terá passado em Catió; Casamento com data marcada e Ponto da situação em Brá

1. Parte XIV de "Guiné, Ir e Voltar", enviado no dia 21 de Setembro de 2015, pelo nosso camarada Virgínio Briote, ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67.


GUINÉ, IR E VOLTAR - XIV

Fuzileiros, páras e felupes

A acabar de chegar a Brá, uma carta em cima da cama.

“Caro Alferes
Já antes da sua partida para a zona de Cuntima estava prevista uma operação na área do Ingoré, base de Campada. A ideia é o seu grupo embarcar nos helis até Teixeira Pinto, onde aguardará indicações para intervir.

Não será um golpe de mão clássico, visto que as notícias não definem bem a localização. Como as forças empenhadas são numerosas procurar-se-á o IN de dia, no caso de não se encontrar de noite. Pormenores da operação ser-lhe-ão dados pelo Tenente-Coronel H. Calado. A data prevista é de 3 para 4. Felicidades, um abraço, cap. Leandro.”


Cena do filme. Um descampado enorme, palmeiras desgarradas aqui e além, a mancha de militares a surgir ao longe numa nuvem de pó, a lembrar-lhe a cavalaria dos filmes de coubóis no cinema Batalha do Porto, só não bateu palmas porque as trazia ocupadas, a G3 numa mão, a Sudayev1, apanhada momentos antes, na outra.

Um pelotão de páras junto aos helis, mais as forças do batalhão do Tenente-Coronel Calado, dispersas aqui e além, e Felupes2 com a pila à mostra, conhecidos antropófagos locais, armados de arcos e setas envenenadas. As palmeiras, o fumo e os pós no ar, cheiros de pólvora e as cores da Guiné numa tarde a aproximar-se do fim.

Tinham saído do aeroporto de Bissalanca às 6h00 montados nos helis e cerca de uma hora depois estavam em Susana, no norte, mesmo junto à fronteira. Depois ficaram ali à espera que os outros destacamentos envolvidos fizessem saltar a caça. Pelo rádio foi acompanhando a guerra em directo. Houve tempo para meterem uma bucha, para passarem pelas brasas, e chegaram até a pensar que regressariam sem chegarem a entrar em acção até o atento Dornier confirmar que o IN estava a retirar, disperso em pequenos grupos, por locais diferentes.


É agora, dêem-lhes caça! Ordem para embarcarem já passava das 13. Dez ou quinze minutos depois, dispostos aos pares, os helis largaram-nos numa bolanha em Cassum.

Mal puseram os pés no chão foram recebidos com fogo muito alto, algumas rajadas de PPSHs e Kalashs.

Dirigiram-se para norte, a caminho da fronteira, junto a um carreiro pisado de fresco, até que os dois homens da frente fizeram alto e deram indicações para o pessoal se ajoelhar. O chefe do grupo, que seguia logo a seguir, chegou-se ao Jamanca e ao Kássimo e viu um guerrilheiro atrás de uma palmeira, aflito, a olhar para todos os lados, arma a brilhar nas mãos, para camarada fazer fogo no tuga danado, só podia ser.

A equipa da frente dividiu-se em duas parelhas, rodearam-no, o olhar dele não parava e não os via, um apareceu-lhe de frente, o outro do lado direito, o guerrilheiro não atirou a arma para o chão como lhe mandaram, uma voz algures deve tê-lo distraído, hesitou, o Kássimo, a 20 metros para aí, atirou. Deram uma volta pela zona, o PCA montado no Dornier em contacto a dizer-lhes que os avistaram, que estavam em cima da fronteira, que retirassem pelo mesmo caminho, o rádio a ouvir-se melhor agora, e que mais, que mais apanharam? Mais nada?
A voz do cavaleiro do ar a achar que era pouco resultado para tanta gente.
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Notas:
1 - Pistola-Metralhadora “Sudayev” cal. 7,62 mm M-943
2 - Grupo étnico que compreende as populações existentes no Sul de Casamance e São Domingos na Guiné, entre os rios Casamance e o Cacheu. Os felupes dedicam-se à pesca, à cultura do arroz, da mandioca e da batata-doce.

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O que se terá passado em Catió? 

Esgueiraram-se pelo caminho, a olhar para um lado e para o outro, as sombras da lua atrás deles, o barulho do gerador a ajudá-los. Encostaram-se ao pré-fabricado, colados à parede, ficaram assim um bocado, a luz acesa no quarto, janela com cortinado pequeno. 
Deve estar lá dentro, sussurra um para o outro. Este a espreitar entre os cortinados, a rir-se, mão na boca. Olhó o filho da puta! 

Deixa ver, diz o outro, mete os olhos e vê os óculos, a pele muito branca, em pelota, gordinho, barriga em cima da cama, as nádegas redondas, salientes, para o ar. 
Qué que o filho da puta tá a fazer, todo nu, de cu pró ar? Tá a jogar às cartas? 
São cartas com gajas nuas, tão todas espalhadas na cama! 
Ai o cabrão! E agora? 
Agora, pá, deita-se qualquer merda pró chão, para fazer barulho. Esse vaso, isso, esse serve, ali junto à porta pró gajo sair. 
Estrondo lá fora, cacos a partirem-se. Não está vento, o que será? Põe-se a pé, enfia as calças, as botas. Coração aos saltos, vai abrir a porta, volta a fechar, que esquecimento! Pistola na mão, abre outra vez a porta, espreita para um lado, para o outro. Um barulho na esquina, pareceu-lhe, pé ante pé, aí foi ele, o militar destemido em direcção à esquina.

No hospital em Bissau o tenente-coronel lembrava-se de pouco. Estrelas, muitas na cabeça entrapada e não se lembrava de muito mais, não. O major do QG insistia, mas meu tenente-coronel há-de se lembrar de mais alguma coisa. 

Houve algum problema com alguém lá do Batalhão em Catió? Não houve? Não desconfia de ninguém? E em Teixeira Pinto, recorda-se de alguma coisa? Houve alguns casos disciplinares não houve, meu tenente-coronel? 

Problemas, sim, um ou outro, todos temos, mão na cabeça dorida. 

Meu coronel, tem que haver qualquer antecedente, qualquer história para trás, qualquer coisa, veja se se lembra! 

Eu estava em cima da cama com o mapa da zona de Catió, estava a analisá-lo, a ver as referências, a assinalar a disposição inimiga, pareceu-me ouvir o barulho de qualquer coisa a partir, um ruído de passos na esquina, não, não me lembro de mais nada, a cabeça dói-me muito. 

Na rede suspensa nas duas árvores do jardim, Teresa tinha posto o livro de lado, estendeu os olhos para longe, para a rua com pouco movimento àquela hora. Viu um jipe dos comandos, um soldado ao volante, pareceu-lhe o Alegre, deixa lá ver quem é que está na Ultramarina. Pôs-se a pé, olhos para a rua, portão aberto, rua abaixo a correr. 

Então! Estava ali a estudar e tu aqui! 
Pareceu-lhe uma menina, mais pequena. Olá, Teresa! Fica-te bem essa saia branca, os ténis brancos também. 
Nem disseste que ias nem que chegaste, nunca mais apareceste! 
A Dora faz anos no sábado, queres ir? 
O Alegre a apontar para o relógio, está na hora, meu alferes. 

Foi então ao QG tratar de um assunto qualquer. E quando passava junto à secção de Justiça um camarada, em jeito de brincadeira, claro, perguntou-lhe quando tinha sido a última vez que estivera em Catió. Catió? Porquê? Porque o teu nome foi falado a respeito do caso de Catió! Qual caso? 

No jeep, de regresso a Brá, a cabeça não parou. Não escondia o gozo que lhe dava imaginar como tudo teria sido e intrigava-o alguém ter pensado que ele seria capaz de tal safadeza. 

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Casamento com data marcada

O alferes adjunto do capitão para os assuntos administrativos, tinha assumido o comando do grupo “Vampiros”. O Vilaça andava com o moral apagado, há meses que não saía. Vou sair na próxima, dizia alto, chegava-se à véspera e não, não consigo, pá, não estou em condições. Passou a ser tema de conversa entre os outros chefes de grupo, que combinaram colocar a questão ao capitão. 

O que é que nós podemos fazer se ele não quiser? A psiquiatria não é bem assim, não podemos empurrá-lo para lá se não for da vontade dele. É melhor mantê-lo debaixo de olho, ocupá-lo com trabalhos aqui dentro, que há muito para fazer, enquanto o tempo vai passando e a evolução dele também nos dá tempo para arranjar a melhor solução. E vejam se ele bebe só água. 

O Vilaça levantava-se quando calhava, à tarde ia para Bissau, regressava quase de manhã ou mais cedo se alguém o trouxesse. De início, os outros não atribuíram grande importância, o quadro a agravar-se alertou-os para medidas imediatas que o capitão encarava agora. 

Agora o Luís, também? Num dos primeiros dias de Abril entrou-lhe no quarto, sem mais nada, desembaraçado como de costume, é pá, olha, estás convidado para o meu casamento. É pá, ouviste o que te disse ou não? 

Que dependia, se a data coincidisse com a estadia dele na metrópole, teria muito gosto. 
Que não era na metrópole mas na Guiné. Não é brincadeira nenhuma não senhor, vou-me casar com a Lurdes. 
Lurdes? Que Lurdes? 


À entrada da messe, em Brá, com o Luís 

O Luís era oriundo de famílias bem colocadas, o pai, médico com nome numa cidade do litoral, era uma pessoa muito respeitada, bem relacionado, até com as irmãs do Dr. Salazar, a quem media as tensões quando elas iam passar o mês de Agosto à Figueira. 

Medrara no enorme areal com as ondas a rebentarem lá ao fundo, sempre junto da namorada, cresceram e estudaram no liceu local até se separarem com promessas, ela a terminar o curso, ele a caminho da Guiné. Mantiveram-se em contacto o tempo todo, numa fúria de cartas para lá e para cá. 

No regresso de férias viera encantado, saudoso, morto por regressar de vez à metrópole e consumar o que tinha deixado a meio. Agora, a dois meses do fim da comissão, mudara de ideias? 

A Lurdes. A Lurdes era uma moça nascida em Bissau, aí dos seus 23 anos mais ou menos um, com raízes familiares em Cabo Verde, tu cá tu lá com as autoridades locais, as colonialistas e as outras. Tinham ou dizia-se que tinham propriedades no Gabú, em Bafatá, arrozais inteiros no leste e no sul, agora ao abandono ou nas mãos da guerrilha, plantações de abacaxi, mato, comércio em várias localidades, uma das famílias com mais teres que havia naquela zona da Guiné. 

Morena, um metro e setenta para aí, alta para os padrões locais, cabelos loiros, olhos irrequietos, esverdeados, figura atraente, foi um ai mal se viram. O Luís entrou logo em casa, lá nisso ele fazia jus à imagem que tinha de não recuar perante nada, inimigo ou amigo, tanto se lhe dava. 
Até àquela altura, ao que se sabia até então, sempre mantivera alguma distância em relação às beldades locais, o eterno noivo da que lá na metrópole, pacientemente aguardava a chegada do seu mais que tudo. 

Nunca se souberam grandes pormenores de como evoluiu a relação, mas não é difícil a gente imaginar, o Luís a acabar a comissão, as forças a irem-se, as fraquezas a virem, e não se sabe mais porque o Luís não era de grandes falares sobre assuntos dessa natureza. 

Ia marcar a data, logo diria. Seria em Bissau, os pais dela iam tratar de tudo, falar ao Bispo, o Governador ou um representante deveria estar presente, outras autoridades do pró e do contra também, iria ser certamente o acontecimento social mais importante do ano na capital da Guiné. 
E os camaradas a olhar para ele, a magicar, isto é a sério? Uma coisa tão repentina, o tipo não estará embrulhado? Não será melhor a gente ver o que se passa? 

Juntaram-se cá fora na cidade, trocaram impressões, estabeleceram o plano principal e outro alternativo, o objectivo assente logo desde o início, todos de acordo que aquele casamento só se faria com o conhecimento antecipado dos pais do Luís, a não ser que o fizessem por cima dos outros dois alferes, que o Vilaça estava fora dos campeonatos todos. 

Abordaram com tacto o capitão. Desconfiado, olhos dentro dos óculos castanhos, não mostrou grande interesse no caso, que se tratava de um assunto particular e, em assuntos destes era partidário da não ingerência. 

Cá fora os dois, parecendo-lhes que do capitão não viria grande ajuda decidiram pôr a família ao par, os pais, claro. Jogaram à porra, calhou a um o cumprimento da missão, telefonar ao pai do Luís. 

Não queria acreditar, devia ser brincadeira deles. 
É verdade, doutor, sou eu que estou a falar. 
Senhor alferes, esse casamento não se faz, não se pode fazer, compreendeu? 
Tem que ser o senhor doutor a tratar do assunto, não podemos ser nós. 
Poucos dias depois soube-se que o capitão tinha chamado o noivo ao gabinete, que preparasse o grupo para uma estadia de uma a duas semanas, pelo menos, para a zona sul. 
Mas ainda agora regressámos de Farim e já vamos sair outra vez, meu capitão? 
E quem lhe disse que agora é o alferes que escala as saídas? 
Uma semana muito comprida para o Luís, quase até ao fim da comissão. E quando pôs os pés em Brá, não o perderam de vista, só o largaram quando o viram embarcar de regresso a Lisboa. 

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Ponto da situação em Brá

Os primeiros grupos, os 'Fantasmas', 'Camaleões' e 'Panteras', percorreram a Guiné de uma ponta a outra. Com o entusiasmo inicial, superaram tudo o que fossem dificuldades, empregaram-se a fundo, os resultados ultrapassaram as expectativas e eram vistos com muito apreço pelo Comandante Militar e pelo próprio Governador-Geral. 

Olha vão ali os gajos dos Comandos, a maralha a olhar para eles. Sabe-se como é, ganharam fama e respeito pelo trabalho que fizeram e por aquilo que contaram também. As comissões individuais e as baixas em combate ou por doença, começaram a fazer estragos, os grupos ficaram mais pequenos, era necessário começar novo curso de quadros, aproveitar os resistentes e formar novos grupos. 

O Major Dinis fora entretanto promovido e regressou a Lisboa.  Depois o Capitão Rubim tomara conta do Centro e foi o que se sabe. Não por incompetência militar, operacionalmente até era bem competente. Talvez uma certa dificuldade ou falta de paciência no jogo diplomático dos corredores do QG. As questões prendiam-se com a logística e com o emprego operacional dos grupos. 

Promessas e mais promessas. Resolveu bater com a porta, sem estrondo como era da sua maneira. Não se entenderam também uns com os outros, a história da Associação Comercial, os problemas disciplinares e os alferes também não ajudaram muito, a verdade tem que se dizer. 
De baixa estatura, o corpo maciço escondia uma robustez física incomum. Espantava num tipo daqueles, o jeito que tinha para o desenho, para as pinturas, para tudo que metesse mãos. O tempo vago passava-o a montar modelos de peças de artilharia, carros de combate, aviões de sonho, militares e civis, navios de guerra, desde patrulhas a porta-aviões. Tudo pintado nas cores dos originais, os nomes e tudo. Na saída, deixou-lhe ficar um porta-aviões, as outras maravilhas levou-as todas. 

Dois meses depois de ter tomado posse, o novo comandante de companhia estava a ver a história toda para trás, relatórios e actas nas mãos. 

Analisara a organização, o quadro orgânico, os efectivos, o sistema de recrutamento, as instalações, a alimentação, a administração, fardamentos, cargas. O estado moral, físico e disciplinar do pessoal. Os oficiais, sargentos e praças, os materiais, a instrução durante e depois do curso, as operações em que intervieram, antes e depois da sua tomada de posse, a forma como os grupos estavam a ser utilizados, tudo a pente fino. 

Apesar de ter poucos anos ainda como oficial, achava que, atendendo às circunstâncias próprias do povo português, o pessoal, entenda-se cabos e soldados, era quase sempre bom. Quando surgiam problemas, normalmente deviam-se à organização, frequentemente mal montada ou aos graduados, algumas vezes as duas coisas juntas. Neste caso dos Comandos da Guiné, os oficiais eram cruciais na organização, não se cansava de insistir. 

Saía com eles para o mato, acompanhava-os na instrução, fazia-lhes ver a importância do papel deles na organização, moralizava-os, até os tempos livres aproveitava para os acompanhar. 
Os alferes tinham colaborado e também neles sentiu a necessidade de falarem com ele. A agressividade incrível com que tinham sido formados e treinados, jovens de 20 e poucos! Como é possível que possam ter dois comportamentos tão distintos, no mato em contacto com o IN e umas horas depois com a PM e a população civil na cidade? 

E seria mesmo adequado que estivessem tão próximos de Bissau? Não seria mais sensato, e mais proveitoso até, que estivessem em Mansabá, em Nova Lamego, em Buba, ou num sítio desses? De quem fora a ideia, tê-los a meia dúzia de passos da cidade? 

Em alguns casos, não tinha dúvidas, tinham sido mal orientados, deixados ao sabor da intuição de cada um, sem a mínima directiva. Até achava que o produto final era positivo e, se tivessem tido orientação, os problemas disciplinares que ocorreram não teriam existido. 

Dos cinco alferes a que a companhia tinha direito, quatro comandantes de grupo e um adjunto, restavam-lhe agora dois, o sobrevivente dos chefes de grupo iniciais e o adjunto, o Caldeira, até então com mais experiência administrativa que operacional. E, pelo que tinha visto deles até agora, achava-os competentes, mereciam-lhe confiança, esperava que continuassem como até aqui na parte operacional, e se integrassem no seu estilo de comando. Contava com eles, eram as pedras base do edifício a reconstruir, dissera-lhes mais que uma vez. 

No relatório inicial que fizera para o Comandante Militar, adiantara várias propostas, pensara até que com tantas dificuldades, de tanto lado, se calhar não seria má ideia extinguir os grupos. O Brigadeiro refutou com o argumento de que, apesar de todas as dificuldades, os grupos até então existentes eram os que mais contactos tinham tido com o IN e com mais material capturado até à data. Vira os resultados das tropas especiais que a 3.ª Repartição tinha preparado para o brigadeiro, comparou-os com os fuzos, os páras e com os anteriores grupos de comandos.

 Contacto efectivo com o IN em mais de 80% das saídas para o mato. Ouvira o Brigadeiro dizer que não se podia esquecer que os Comandos, a maior parte das vezes, actuavam em áreas densas de IN, em grupos de 20 a 25 homens e às vezes menos, enquanto as outras forças não se metiam lá com efectivos inferiores a meia centena de homens. 

Nem um por cento do efectivo total das NT na Guiné, quase 10% das baixas totais causadas ao IN. Extingui-los? Não, a saída deve ser outra, o Brigadeiro a decidir-se por outra solução, para aproveitar o pessoal que restava. 

Concluíram a reunião assentando que deveria ser feito o recompletamento para manter o quadro orgânico, isolá-los em Brá, resolver a questão alimentar, ministrar o próximo curso e utilizar os grupos em operações específicas para Comandos e não para reforçar algumas guarnições em sector. 

O capitão regressara encorajado, sentira o apoio que andava a reclamar.  Depois mudou quase toda a organização administrativa, conseguiu mais praças para o recompletamento, arranjou cozinheiros, alimentação própria, obrigou-os a almoçar todos juntos, disciplinou as saídas, arranjou novas viaturas, melhorou as instalações, e conseguiu, o que não fora nada fácil, fazer aprovar as orientações e normas para o emprego dos grupos. 

Agora, todo este tempo passado, achava que valera a pena, que tinha feito bom trabalho. 
Os grupos melhoraram os resultados, os conflitos com a PM deixaram praticamente de ocorrer, nem um castigo fora necessário.

(Continua)

Texto e fotos: © Virgínio Briote
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Nota do editor

Poste anterior da série de 10 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15098: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (XIII Parte): Conversa em Brá e Nunca digas adeus a Cuntima

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10325: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (37): Guerra de titãs, o Almeida Comando contra o Vilar Pára

1. Mensagem do nosso amigo e irmão Cherno Baldé, com data de 29 de agosto último:
  

Caros amigos Luís e Carlos Vinhal,
Junto envio uma crónica na linha do habitual, algumas imagens e poemas da minha colecção da juventude que podem utilizar de acordo com os habituais critérios de utilidade e bom gosto bloguistico.

Um grande abraço,

Cherno Baldé



2. Guerra de Titãs > Almeida contra Vilar / Comando contra Pára

por Cherno Baldé (*)

Hoje vou contar uma pequena estória sobre uma disputa física entre dois militares muito especiais e que, não fosse o ambiente tenso da guerra subversiva que transformava misteriosamente o destino das pessoas envolvidas, poderiam ter cumprido a sua missão normalmente, regressar a sua terra natal, casar-se e ter um destino feliz, como aconteceu com a maioria dos seus companheiros de armas que passaram no TO da Guiné, dita portuguesa.

Estou a referir-me ao duelo entre o Almeida-Comando e o Pára-Villar que ficou gravado na memória de todos os que se sentiam, de uma forma ou outra, atraidos ou ligados à vida dos soldados do quartel local.

Como habitualmente acontecia na época, havia pouca gente que estava informada das suas verdadeiras identidades, nao pertenciam ao corpo original da companhia, tinham vindo de parte incerta para integrar e conviver no meio de soldados milicianos numa localidade meio esquecida do nordeste guineense de Fajonquito, que o soldado Inácio M. Gois tão bem descreveu no seu Diário da Guiné (1964/66).

Dos dois contendores, o Almeida-Comando tinha sido o primeiro a chegar à Fajonquito na coluna que todas as semanas ia à cidade de Bafatá, sede do Batalhão, com a sua G3 numa mão e uma bolsa contendo os seus pertences, noutra. Soldado robusto, estatura media e boca de lâmina (lábios miudinhos), olhar decidido, europeu típico da raça dos Victor Tavares, José Dinis, Antonio Dâmaso ou Silvio Abrantes, cedo mostrou a sua preferência pela solitude, não tinha amigos e os companheiros de caserna não tardaram a desertar, procurando locais mais seguros. Nas suas costas falavam que era maluco ou que estava apanhado, mas ninguém se atrevia a repeti-lo a sua frente. 

Militarmente aguerrido, oferecia-se para todas as saídas ao mato e quando havia ataques nas localidades mais próximas, enquanto os outros ficavam a espera de ordens superiores, ele seguia correndo, sozinho. Era sempre o primeiro a chegar ao local do ataque e, quando os outros chegavam, já ele estava de regresso ao quartel, exausto.

O boato que circulava a seu respeito era que ele teria cometido violações graves que tinham provocado a sua expulsão de uma companhia de comandos para o cumprimento de um castigo que o condenava a ficar na Guiné durante muito tempo. De qualquer modo o que era certo e sabido é que não apreciava muito os seus companheiros brancos, preferindo a companhia das crianças nativas e que não estava programado o seu regresso com aquela companhia de metropolitanos. Quanto tempo teria da Guiné? Ninguém sabia ao certo.

O Pára, Villar,  chegaria mais tarde e, ao contário do primeiro, ele era alto e direito como uma palmeira das bolanhas, mãos largas e fortes, olhar insolente e brincalhão, mas também ele marcado pelo destino e pela carreira que escolhera como militar, pois quando abria a boca viam-se alguns espaços vazios entre os seus dentes da frente e no maxilar esquerdo.

No meio da soldadesca macaca, minado por intrigas e pequenas quezílias de rancho do quartel, não tardou a circular de boca em boca entre criancas e auxiliares nativos da messe e do refeitório que entre os Páras havia uma norma ou lei que se designava "regra da dentadura",  segundo a qual os candidatos à  entrada para a mais exigente de todas as especialidades militares deviam possuir uma dentadura completa e bem saudável e ainda ter que mantê-la durante o periodo de serviço militar sob pena de serem expulsos deste corpo de elite.

Verdadeiro ou falso, para os miúdos que faziam do quartel a sua primeira escola de vida, não era muito importante, o certo-certo mesmo era que dai em diante o ambiente habitual do quartel seria necessariamente alterado com a presença de duas espécies raras da paisagem militar portuguesa com garras bem afiadas. Um soldado comando corajoso e psicologicamente desequilibrado, que no seu estilo de lobo solitário, qual cowboy saído de um Western americano e que fazia das crianças nativas seus instruendos e um Paraquedista durão e provocador, aparentemente normal, amigo da farra, das bajudas e do jogo de cartas.

A chegada do Villar também trazia de volta um debate muito frequente, no começo dos anos 70, no seio da miudagem dos aquartelamentos, que era a questão de saber quem,  entre Comandos e Páras,  é que tinha a melhor preparação militar. Cada um argumentava com as suas armas sem que tivessem, na realidade, noção clara sobre o que os distinguia na prática, suas forças e fraquezas. O facto de os Páras fazerem-se ejectar de um avião em pleno voo, embrulhados num simples pedaço de tecido, parecia conferir-lhes uma nitida vantagem, mas os adeptos dos comandos levavam sempre melhor, pelo menos a luz dos acontecimentos no terreno e o respeito que impunham no mato e, também, nas ruas de Bissau, claro.

O Almeida tinha como "hobby" preferido a caça às pombas na orla da bolanha. Homem de poucas palavras, quando estava de acordo em que o seguissemos,  não dizia nada e ia a nossa frente. Quando não estava no seu melhor dia, com o cano da G3 apontada ao chão, mostrava a direcção da porta de armas com a mão livre, não a descendo enquanto os "djubis" não tivessem transposto o limite dos arames farpados, depois seguia cabisbaixo no seu trote rápido de homem que sabia ter o destino nas suas próprias mãos. 

Inocentes e impertinentes, sempre que as crianças tinham a sorte de o poder acompanhar, não se cansavam de admirar o fisico compacto deste homem, os seus reflexos rápidos e o tiro certeiro da G3. Nunca se precipitava nem perdia muito tempo em pontarias de inclinar cabeça e fechar olhos como faziam os outros, era "tau-rau", isto é, por cada tiro dado era uma ave que caia com uma mancha negra à volta do buraco da morte. Custava acreditar, por atrás dele, movendo-se ligeiros, num silêncio de arrepiar, esperávamos pelo sinal da mão para ir buscar o animal que se esbatia com o corpinho ainda quente. 

Todavia, acompanhar o Almeida era entrar num jogo atractivo, mas sem fim a vista, pois as suas mudanças de humor eram frequentes e imprevisiveis e,  quando isso acontecia, o divertimento inicial podia ultrapassar os limites do suportável, transformando-se num calvário para adultos. Os sinais de tal mudança manifestavam-se no súbito desinteresse pela caça habitual, na raridade dos tiros e na aceleração da marcha. 

Os menores, como eu, não podiam passar dos limites da bolanha de Sunkudjuma e, depois desta, começava a grande floresta de Oio e Cola-Caresse, região povoada de "Djinnés", prenhe de perigos vários e dominada pela guerrilha. O segundo grupo de temerários continuava a marcha, com o Almeida sempre à frente. Percorriam uma zona remota, semeada de centenárias Baga-bagas gigantes, habitat dos lendários "Kankurans" mandingas que coloriam o imaginário da nossa infância mestiça e, quando começavam a escassear os sinais da presença humana, as crianças, impelidas por um instinto natural de defesa, começavam a desertar, uma a uma, deixando o Almeida-comando no meio de intrincados trilhos de gazelas e de porco-espinhos, entregue a si mesmo, a sua inseparável G3 e a granada expansivel na cintura. E, estafados de tanto caminhar, quando voltavam à aldeia e iam ao quartel, encontravam o homem tranquilamente sentado à porta da sua caserna, limpando a sua arma. 

Num certo dia em que vínhamos de uma jornada de caça normal, dei uma fugida rápida e imprevista entrando de rompante numa das moranças da aldeia com a intenção de impressionar os aldeões com as dezenas de pombas que trazia em cima dos ombros. O resultado foi receber uma valente reprimenda também ela inesperada. Os mais velhos não teriam gostado de ver tantos animais mortos com arma de fogo numa só tarde. Descobri assim que o africano,  mesmo levando uma vida miserável,  é, por princípio, avesso ao desperdício de vidas e de recursos. Era muito pouca, de facto, a carne que se aproveitava nos pássaros com o estoiro dos projécteis.

O Almeida, no interior do seu silêncio, parece que fazia tudo para provocar a ira das hierarquias militares e estes, por sua vez, armados de bom senso e instinto de conservação, parece que faziam tudo para não entrar em rota de colisão com um subordinado de modos estranhos e psicologicamente instável. Esta postura oficial, mais tarde, revelar-se-á muito negativa e com consequências bem drásticas e que afectará toda a companhia, a escassos meses de fim de comissão.

Tanto assim que, uma vez por semana, o Almeida ao comando do seu pequeno e barulhento pelotão de "djubis", crianças caídas na órbita do quartel, dirigia os treinos físicos e de preparação militar, seguidos de uma faxina no interior do aquartelamento, tal como apanhar o lixo, capinar e limpar os sanitários. Após estas tarefas que habitualmente terminavam à hora do almoço, todo o grupo se dirigia ao refeitório-geral para servir-se dos restos do almoço do dia, servido em cima das mesas pelos cozinheiros nativos, utilizando os pratos e talheres disponiveis na cozinha da companhia e ainda com direito a sobremesa.  Enquanto isso, o Almeida-comando punha-se a passear de um canto a outro do refeitório, ao som das batidas ritmadas do chicote na parte mais alta das suas botas de cabedal reluzente, peito inchado e olhos vermelhos no rosto inexpressivo de ferra indomada.

Os "djubis", indiferentes ao ambiente tenso que reinava devido a contrariedade que provocava a sua presença indesejada no refeitório, comiam com a sua habitual gula e, ao mesmo tempo, estavam atentos aos movimentos de vaivém do seu Comandante-chefe. Quando este se afastava um pouco e os talheres começavam a atrapalhar, metiam rapidamente as mãos dentro das terrinas metálicas para dai retirar pedaços de carne ou restos de comida. Se a refeição era feita com pedaços de batatas ou arroz, tudo bem, mas às vezes era massa de esparguetes compridos e delgadinhos, que nem com as mãos se seguravam e constituíam tarefa complicada metê-los dentro da boca. Nestes casos a melhor solução era absorvê-los directamente com a boca, "tchúúph". Os brancos não gostavam desta forma muito prática de comer animal, o Almeida também. A ameaça do chicote era real.

Foi o Vilar que acabou com o nosso reinado no refeitório. Para todos os efeitos, era uma situação anormal e que não podia perdurar, pois não agradava a ala mais conservadora da tropa e não era muito apreciado pelos miúdos que, habituados à liberdade natural de comer à mão, sentiam-se bastante constrangidos com o espectáculo de comer com facas e garfos em cima de uma mesa e diante de olhares curiosos, coisas de brancos.

No dia em que se deu a briga, estávamos na cozinha do refeitório a preparar, em fogo brando, as pombas que o Almeida tinha trazido na tarde do dia anterior. O refeitório ainda estava quase vazio, estando numa das mesas o Vilar, sozinho, a entreter-se com a sua faca de mato, de cara para a porta do quarto onde residia o Almeida, facto que, pela sua ousadia, não augurava nada de bom. De vez em quando mandava uns palavrões ao ar, sem se dirigir a ninguém em especial. Caso estivesse a tentar provocar a fera, decerto que não perdia nada por esperar, pensávamos com os nossos botões.

Ninguém viu como  nem quando aconteceu, mas parece que o Almeida teria saído do seu quarto a vomitar impropérios e num salto teria voado em cima do Vilar com os pés em riste. Da violência do choque dos dois corpos, a faca do Villar tinha caído das suas mãos e os dois, entrelaçados, tinham rolado ao chão num grande estrondo, derrubando mesas e cadeiras. Durante alguns segundos, que pareceu um longo espaço de tempo, lutaram no chão cada um tentando dominar o outro e, de repente puseram-se de pé. Ofegantes e punhos cerrados, mediram-se novamente com os olhos e, quando se preparavam para um novo embate,  ouviu-se uma potente voz de comando que gritava "alto ai!!!". Era a voz do Capitão da companhia, Carlos Borges de Figueiredo, também ele com volume e estatura respeitável.

Não ficamos para saber como terminou a briga e, na confusão do momento, aproveitamos para sair dos arames farpados e regressar as nossas casas, na certeza, porém, de que se tratava apenas do começo de uma história que, qualquer dia, poderia terminar muito mal.

Depois, para a posteridade, de aldeia em aldeia, de bantabá em bantabá, como a notícia não pesa nem tem custos de transporte, cada um encarregar-se-ia de descrever o sucedido à sua maneira, acrescentando alguns pormenores ou dando vantagem ao herói da sua preferência. Comando contra Pára, Almeida contra Vilar e, de tanto tocar e retocar no assunto tornou-se dificil distinguir, ao certo, quem conta do que assistiu e viu com os seus olhos de quem conta do que ouviu alguém contar. 

Nasceu assim esta crónica que se inspira da vivência de um imaginário real, de tal modo que qualquer semelhança com a vida real de alguém só pode ser uma coincidencia fortuita e irreal.

Com abraços amigos de

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
Bissau, 27 de Agosto de 2012.


Na imagem: os meus dois filhos Luís e Domingos numa esplanada da Praça do Império rebaptizada Praça dos Heróis Nacionais em Bissau, 2011. Teria eu a mesma idade quando acompanhava o Almeida-Comando nas aventuras da Bolanha de Sunkudjuma, em Fajonquito, nos anos de 1971/72. Sinais dos tempos.

Cherno Baldé (direita) e o seu colega de infância Saido Candé (esquerda), conhecidos no quartel com os nomes de Chico e Barbosa, antigos alunos e adeptos do Almeida-Comando. O Barbosa realizou o seu sonho de infância e é hoje um graduado do Ministério do interior.

Bissau, Setembro de 2011. Cherno Baldé com os filhos Domingos Ali e Luís Bubacar.


O Duelo entre Almeida-Comando e o Para-Villar, visto por um cartoonista/ humorista da época. Imagem de um desenho mural no bar de um Bairro da periferia de Bissau (Antula, Agosto de 2012)


Sunkudjuma - Eu nasci aqui, / É Sunkudjuma, / É rio dormindo, / É bolanha, fossas e lianas, / São leitos secando, / Peixes escuros e lama, / Aqui lavramos o arroz e / A tristeza dos olhos

Extrato de um poema da minha colecção de juventude com data de 1985.


O Kankuran é um elemento cultural da etnia mandinga, hoje largamente adoptado por muitos grupos de confissão muçulmana na Guiné, associado ao ritual de iniciação e de mudança de estatuto social entre os homens (sexo masculino). O mito fundador quer que as pessoas acreditem que o Kankuran tem poderes mágicos de desmistificar e neutralizar os maus espíritos, proteger, unificar e reforçar a coesão social da comunidade (ver Nhinte Camatchol entre os nalus). Portanto, é um instrumento unificador e propiciador da harmonia social, especialmente direcionado contra o malefício da divisão social associado aos excessos do poder feminino no seio das comunidades. O kankuran emerge das baga-bagas gigantes de onde tira a sua cor vermelha como o próprio chão da Guiné. 

Na imagem, Kankurans da nova geração nas ruas de Bissau (Bairro Militar, 2011).  
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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de julho de 2012 >  Guiné 63/74 - P10146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (36): Recordando o inesquecível amigo João, ex-1.º Cabo Mecânico da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4514/72

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9966: Efemérides (98): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (4): O Regresso (António Dâmaso)

1. Quarta e última parte da narrativa da "Operação Mamute Doido", de autoria do nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista da CCP 121/BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária)  que participou nesta operação levada a efeito no fatídico mês de Maio de 1973.

Fotografia de alguns elementos do 3.º Pelotão da CCP 121, tirada dias antes de partir para Guidage

Legenda:
1 - Cabo Gonçalves, foi ferido no ataque ao Navio Patrulha em 20MAI73
2 - Soldado António das Neves Vitoriano, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
3 - Soldado José de Jesus Lourenço, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
4 - Soldado A Ferreira Carvalho, morto em Combate em 22JUL73 em Cubonge
5 - Soldado Manuel da Silva Peixoto, morto em combate na emboscada de Cufeu em 23MAI73 (a) (b)
6 - Soldado Fernando Jorge Ferreira Dias, morto na Operação «Gato Zangado I» Nova Lamego em 05FEV74

(a) Ficaram sepultados em Guidage
(b) Os restos mortais foram resgatados e entregues às famílias em Julho de 2008


OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (4)

 O REGRESSO

No dia 30 de Maio pelas 06H30 saímos do Guidage, saí com um misto de alívio por me ver livre daquele inferno e uma tristeza enorme por deixar para trás aqueles três Bravos rapazes que abnegadamente tinham dado a sua vida pela Pátria. Ao sair deitei um último olhar para as campas desejando paz às suas almas, mesmo armado em “duro”, senti um nó na garganta e um ardor nos olhos, foi como se tivesse deixado ali três irmãos mais novos que não consegui proteger, o Lema dos Pára-quedistas “NINGUÉM FICA PARA TRÁS” tinha sido quebrado.

A minha Companhia ia em guarda de flanco esquerdo no sentido Guidage-Binta, os Fuzileiros iam no flanco direito, estávamos arrasados, alguns dos meus homens estavam mesmo em baixo. Antes da saída pedi-lhes que fizessem um esforço, pelo que acederam e lá nos dispusemos a palmilhar os quase 20km de distância, mas depois de passar a zona mais perigosa, ordenei aos que estavam com maior dificuldade para subirem para as viaturas, mas eu como tinha de dar o exemplo, fiz um esforço para aguentar.

Ao passar pela última vez pelo Cufeu lá estavam os esqueletos espalhados comidos pelos bichos, dando uma imagem fantasmagórica, um dos meus homens ia a olhar para a esquerda, de repente olha em frente, depara-se com dois esqueletos junto a uma árvore, fez uma ligeira paragem repentina, mais de respeito do que medo e no momento lembro-me de lhe ter dito para não se preocupar que aqueles já não lhe faziam mal. Ao todo passei pelo Cufeu quatro vezes. Desta vez os guerrilheiros do PAIGC, optaram por não nos incomodar, fiquei com a impressão que eles gostavam mais de atacar pessoal que passava lá pela primeira vez, pelo que chegamos a Binta sem incidentes. Ficámos a aguardar por uma lancha que no dia 01JUN73 nos transportou até Farim, nessa noite fomos dormir no Kapa3, no dia 02JUN73 seguimos em escolta a uma coluna de viaturas de Farim para Bissau, na estrada entre o Kapa 3 e Mansabá, que eu quatro anos antes tinha por lá andado a fazer segurança à construção da mesma. Viam-se algumas viaturas na berma que tinham sido incendiadas, no trajecto entre Mansabá e Mansoa, reconheci os pontos críticos por também ter feito segurança a várias colunas quatro anos antes. Chegamos a Bissalanca pelas 15 horas depois de 15 dias de martírio.

Era fim-de-semana, depois de proceder à operação de recolha do material e do entregar na arrecadação, deixei os homens na camarata e dirigi-me aos meus alojamentos, como o bar de sargentos ficava em caminho, fui lá para matar a longa sede. Ao chegar ao jardim fronteiriço dei uma cambalhota em frente e soltei um grito estridente, deixando escapar toda a raiva e emoções contidas naqueles dias, os presentes já estavam informados do que tinha acontecido, as más notícias sabem-se logo, entreolharam-se e pensaram: "Este tipo vem apanhado de todo, este não é o primeiro-sargento que nós conhecemos". Não se enganaram porque nunca mais fui o mesmo que tinha de lá saído quinze dias antes, noutras circunstâncias ter-se-iam fartado de gozar mas a situação era grave, soube disto por confidência de um deles mais tarde em conversa.

Resumindo, naquelas duas Operações, “Ametista Real” e “Mamute Doido”, sofremos ataques/flagelações em Bigene nos dias 18 e 19 de Maio à noite; na noite de 20 quando érammos transportados no Navio Patrulha que navegava no rio Cacheu, este foi atacado, tendo o meu Pelotão sofrido um ferido que teve ser evacuado. Na noite de 21 fomos atacados no Cais de Binta; no dia 23 sofremos uma emboscada na Zona do Cufeu, onde o meu Pelotão teve três mortos e o 2.º teve um ferido grave que acabou por morrer mais tarde, das seis vezes que passamos na zona de Ujeque, fomos flagelados três; não contabilizei as vezes que fomos flagelados em Guidage nos oito dias que lá estivemos onde num desses ataques uma só granada provocou sete vítimas.

“Diz-se que foram quinze dias para esquecer” mas o pior de tudo é que não se consegue esquecer, têm-me dado muitos pesadelos e tirados milhares de horas de sono.

Curiosamente, apesar de ter tomado notas há muitos anos, tenho uma “branca” desde o espaço de tempo que passei por Genicó e desembarquei em Farim, dizem-me que fomos pernoitar em Binta mas não me lembro de nada

Um Ab
Dâmaso
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Notas de CV:

- Sobre a a batalha de Guidaje (ou Guidage), é obrigatório ler o livro de José de Moura Calheiros - A Última Missão (Lisboa, Caminhos Romanos, 2010, 638 pp) e em especial as pp. 437 - 491: cap 31 (A batalha de Guidage) e cap 32 (Como morrem os soldados)...
- Há referências sobre Moura Calheiros (que era na altura o Segundo Comandante e Oficial de Operações do BCP 12) (Guiné, 1971/73)
(http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Moura%20Calheiros%20%28Cor%20P%C3%A1ra%29)

Vd. postes anteriores da série de:

 27 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (60): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

28 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (61): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)
e
29 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9963: Efemérides (63): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (3): Permanência em Guidaje (António Dâmaso)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (95): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)

1. Segunda parte da narrativa da "Operação Mamute Doido", trabalho enviado pelo nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista do BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária)  que participou nesta operação levada a efeito no fatídico mês de Maio de 1973.


OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (2)

Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu

António Dâmaso



Apesar de passados 39 anos e ter havido alterações da paisagem, agora com menos árvores e área de cultivo através desta imagem captada por satélite, a memória visual levou-me até ao local da emboscada de 23 de Maio de 1973. Lembro-me muito bem porque estive no local 4 vezes, por outro lado a carta topográfica neste pormenor é pouco elucidativa, nesta imagem pode-se compreender o porquê de toda a Companhia ficar debaixo de fogo, que os homens da frente estiveram sempre mais expostos. Mais dez, menos dez metros posso garantir que o local da emboscada foi este, as árvores mais grossas que lá existiam foram cortadas, tal como palmeiras e outras, as árvores de maior copa são muito poucas, restam apenas os arbustos e isto vem mostrar a rarefacção da floresta como se pode verificar através da imagem “que vale mais vale uma imagem do que mil palavras”.

Toda esta conversa só tem uma intenção que é repor a verdade dos factos, quando dizem que a emboscada foi na bolanha do Cufeu são imprecisos, porque bolanha propriamente dita, é aquela zona mais à frente sem vegetação onde passa a linha de água, em 1973 a Tabanca estava desabitada e o terreno inculto, nem sei se existiam lá algumas moranças.

Entre os mil e os quinhentos metros antes do Cufeu, depois de atravessar a estrada e descer a encosta, deparei-me com uma clareira enorme antes da bolanha, a mata circundante era muita rala e com árvores de reduzido diâmetro, palmeiras e outras árvores mais grossas eram muito poucas. Seguimos pela orla em direcção a uma ponta de mata mais avançada para a bolanha, para fazer a travessia da mesma na parte mais estreita, íamos com os sentidos alerta nomeadamente o primeiro homem, ciente que da sua capacidade de apuramento de três sentidos: visão, perscrutando todos os movimentos normais e anormais, o olfacto e a audição e que em grande parte, sabia que naquele momento os camaradas que o seguiam contavam com ele, daí que sentia a responsabilidade sobre ombros.

O primeiro homem, o Peixoto, era apontador de uma MG mas naquela operação levava uma HK 21 nova, em virtude da sua MG estar para reparação. Entrou na orla de uma clareira, a fronteira entre a mata e a clareira era quase inexistente, em virtude da raridade e espessura das árvores, detectou movimentações dos guerrilheiros a montarem o dispositivo da emboscada, não teve tempo de fazer quaisquer gesto  e abriu fogo imediatamente. Por azar a arma nova encravou-se logo, assim que a arma se encravou ele virou-se para mim muito aborrecido, lamentando-se disse:
- Meu primeiro, logo aqui é que me acontece uma coisa destas!

Quando se virou para mim foi atingido com um tiro no flanco direito, caiu de joelhos e ainda fez uma tentativa de desencravar a arma sem o conseguir e pediu-me que o tirasse dali.

Não podia ignorar um pedido daquele dirigido à minha pessoa, pois se ele o fez, lá tinha os seus motivos para o fazer. Embora o Peixoto fosse rebelde por natureza, havia respeito mútuo entre nós, aliás, como havia entre mim e todos os elementos do pelotão, até porque se eu fosse incumbido para realizar uma missão difícil, eu ia convidar os rebeldes porque apesar de não saber nada de psicologia, sabia que podia contar com eles até ao limite.

Nunca cheguei a saber o que tinha visto naquela emboscada para me solicitar que o tirasse dali, pois era auto-suficiente e aguerrido apesar da tenra idade, capaz dos maiores sacrifícios. A emboscada tinha rebentado, a Companhia ficou toda debaixo de fogo, em décimos de segundo avaliei a situação de risco, não pensei duas vezes, não havia tempo para pensar duas vezes, não podia deixar um homem meu que confiava em mim para o tirar ficar naquela situação. Saí detrás da árvore onde estava que não tinha mais de um palmo de diâmetro, corri para ele, agarrei-o para o trazer mas não tive forças suficientes para o arrastar mais ao armamento e equipamento que estava preso a ele. Vi-me na necessidade de pedir ajuda, o segundo homem, o Lourenço, foi imediatamente ajudar-me mas quando já tinha pegado no Peixoto, estávamos os dois de costas para a emboscada em progressão, foi atingido com um tiro na região posterior da cervical, ficando logo ali e só disse:
- Ai que já me mataram.

Fiquei cosido ao chão com o Peixoto encostado a mim e o Lourenço atingido do outro lado. Apesar do risco, o Ferreira de Carvalho, “o comprido” ou Vila de Rei, foi lá e ajudou-me a levar o Peixoto para trás do baga-baga, onde foi assistido pelo maqueiro Carvalho. Vi que tinha um pequeno orifício de entrada que quase não sangrou, sempre pensei que se safava, na altura muito embora tivesse um curso de primeiros socorros com a duração de uma semana, não tinha tempo nem os conhecimentos que tenho hoje para avaliar da gravidade de um ferimento, estava entregue aos cuidados do enfermeiro, eu naquele momento estava preocupado em sair daquela enrascada.

Os restantes homens do pelotão tiveram que se deslocar por lances, para a minha direita na procura de reagir à emboscada e ao mesmo tempo procurar protecção e foi aí que o Vitoriano foi atingido com um ou mais tiros que o atravessaram de flanco a flanco, segundo a versão de uns, mas segundo a versão de outros, foi quando procurou sair debaixo de uma árvore para ter ângulo tiro, isto por informação à posterior, uma vez que estava na minha retaguarda e não tinha ligação à vista de uma maneira ou de outra, lamento a sua morte.

Choviam morteiradas, roquetadas, canhoadas e tiros de armas automáticas, consta que tinham dois canhões sem recuo na emboscada, pois estavam à espera das viaturas, era um ruído ensurdecedor com tanto rebentamento, os nossos diminutos baga-baga iam ficando reduzidos drasticamente, os que estavam na parte de fora estavam alapados ao chão. Com o som ensurdecedor, fiquei com um zumbido permanente nos ouvidos que nunca mais me deixou e se tem agravado ao longo do tempo.

Além das baixas, tivemos algumas armas encravadas outras que não puderam ser usadas por falta de protecção dos atiradores, fui alternando a fazer fogo e falar no rádio, até que repentinamente chega junto de mim o Sargento Marques e larga o morteiro 60. No momento exacto que se baixa para deixar o morteiro, uma bala levou-lhe o chapéu camuflado, deixando-lhe um sulco de raspão no coiro cabeludo, desapareceu imediatamente para a posição dele, não me deu tempo de lhe perguntar nada.

Agarrei-me ao morteiro e comecei a “despachar” granadas para a zona onde estavam emboscados. Apercebi-me que as primeiras estavam a sair longas, eles estavam tão perto de nós que fui obrigado a quase endireitar o tubo para corrigir o tiro, em virtude da proximidade as granadas saiam quase na vertical. Enquanto tive granadas foi a despachar, o tubo do morteiro ficou muito quente, ainda me queimei mas sem gravidade, as granadas que pedimos em Binta deram-nos uma grande ajuda, depois comecei a fazer tiro de pontaria para um baga-baga onde vi vários guerrilheiros, só via sombras de um lado para o outro, pela movimentação é natural que estivessem a preparar a retirada, eles também me ripostavam da mesma maneira, o sol já estava baixo e dificultava-me a visão. Não sei se acertei em algum, os alvos não estavam estáticos, uma vez que não fomos lá ver, gastei as minhas munições todas e tive de pedir carregadores. Pensei em mandar uma granada de róquete, olhei para o lado, vi o apontador de RPG com a arma a seu lado, estava a esgravatar com as mãos para poder proteger a cabeça, não tive coragem de lhe perguntar se ainda tinha granadas, para o mandar expor-se mais, nunca o censurei porque se estivesse na pele dele teria feito o mesmo, provavelmente foi o que lhe salvou a vida pois à sua frente já não restava nada do bagabaga que tinha sido totalmente arrasado. Eu tinha começado a fazer tiro com a G3 e com o morteiro na posição de joelhos e já estava na posição de deitado, um tinha-me gritado:
- Meu Primeiro, tenho a arma encravada!

A minha resposta foi:
- Desencrava-a e deixa-te de estar para aí aos berros senão ainda te vêm apanhar à mão!

No momento compreendi que ele estava preocupado com a situação, mas não havia tempo para ir junto dele e explicar, fazes assim ou assado, havia que o acordar drasticamente para aquela realidade

Estávamos no mesmo lado da mata, mesmo no Cufeu e no ar andava o PCA (Posto de Comando Aéreo), bastante alto para estar fora do alcance dos mísseis, sabia que andava lá pelas comunicações que ouvia, aquele chamou apoio aéreo os Fiat, os pilotos afirmaram que tinham dificuldade em determinar uma linha de separação, foi aí que mandei colocar uma tela a indicar a nossa posição e a direcção do inimigo.

Entretanto deu-se o bombardeamento dos Fiat, foi muito providencial, porque os guerrilheiros terão pensado que atrás daqueles vinham outros e talvez, tal como nós, as suas munições também estivessem à beira de se esgotarem, ainda vi a retirada de alguns “turras” para o meu lado direito por uma picada que ficava junto à bolanha.

Foi um dia terrível, tínhamos uma sede horrível, vi homens a beber soro que era destinado a feridos, vi um urinar e senti um forte desejo de beber urina.

Fiz o que estava ao meu alcance fazer, os outros camaradas também fizeram o que puderam, enquanto estive com a adrenalina do combate a coisa correu bem mas quando este acabou, com o quadro que se me deparou, senti uma apatia momentânea como se não quisesse acreditar no que tinha acontecido aos meus camaradas. Estava com a ideia de organizar uma equipa e ir fazer uma batida ao local onde tinha estado a fazer tiro de pontaria, ao mesmo tempo pensei que por questões de segurança tinha de dar conhecimento ao Comandante da Companhia, depois o passa palavra que demorava muito tempo, ainda nos sujeitávamos a ser alvejados pelos nossos camaradas, tempo era aquilo que não dispúnhamos devido ao adiantado da hora, nesse momento veio uma ordem de cima, fazer macas improvisadas, mesmo assim ainda fiquei com a ideia de ir ao local a martelar-me na cabeça, mas depois o bom senso aconselhou-me que o melhor era sair dali rapidamente.

Era quase noite, o Comandante da Companhia mandou cortar varas para fazer macas improvisadas para o transporte de feridos e mortos, foi aí quando andava com os homens a escolher as varas melhores, que me apercebi da existência no local de esqueletos espalhados, e de uma estrada que não estava na carta, sem o saber, fomos ter mesmo ao local onde eles costumavam fazer as emboscadas, conhecedores do terreno movimentavam-se com rapidez.

O Comandante da Companhia deu ordens para que o pelotão que estava atrás de nós, avançasse para a frente para manter a segurança enquanto andávamos nos preparativos para transportar os nossos mortos e feridos.

O meu pelotão ficou inoperativo, dois mortos e um ferido grave para transportar, era um empenhamento de 15 homens, sobravam menos de 10. Desmoralizados por uma situação de que até ali não estavam habituados, era-lhes difícil entender porque antes eram evacuados por tudo e por nada e naquela situação, exaustos famintos mas mais grave ainda sedentos e desidratados, quase que a arrastar-se tinham que andar com os seus camaradas às costas. Fizeram-no porque existia aquele espírito de entreajuda, de irmandade e camaradagem entre combatentes, que caracteriza o ser humano nestas situações difíceis, dando-lhes forças para ultrapassar o limite e foi-lhe incutido na instrução, “que um pára-quedista depois de morto ainda faz dez flexões”.

O sol já se tinha posto, pegamos nos feridos e mortos, eu peguei num lado da maca do Peixoto e com três equipamentos às costas, entendi que naquele momento mais que mandar era preciso dar o exemplo. Aguentei até chegar ao Ujeque, enquanto os outros transportadores se foram revezando. Em Ujeque estavam os Fusos com viaturas, só aí é que conseguimos beber alguma água, sei que o Peixoto ainda chegou vivo a Ujeque, uma vez que o transportei até lá, os Fuzileiros que nos esperavam disseram estar admirados com a duração do combate, eles próprios já tinham tido um combate na zona, seguimos nas viaturas até Guidage onde chegamos já de noite escuro. Entramos pelo lado da pista, aí lembro-me que tive ordem para colocar o meu pelotão junto da vala, mais valeta do que vala, nas traseiras da cozinha perto do balneário, o 2.º ficou na vala que dava para a “pista”, onde mais tarde vieram a ser sepultados os militares falecidos.

Não cheguei a saber porque não fomos apoiados pelos obuses de Guidage, falta de munições, ou falta de lembrança?

Hoje é muito bonito dizer, temos de apostar mais na formação, a formação ajuda mas não é tudo, na altura se não estivesse debaixo de uma emboscada, tinha feito uma barragem de fogo e iam dois pegavam no ferido e tiravam-no para zona protegida, na teoria é muito fácil mas na prática é mais difícil, naquele dia caiu-nos um inferno de metralha em cima, improvisou-se.

Reflectindo sobre a maneira que os homens foram atingidos, o tiro que levou o chapéu ao Sargento Marques e ainda como me tentaram atingir, leva-me a crer que foram abatidos com tiros de precisão e que existia um atirador na emboscada, interrogo-me como não fiquei a fazer companhia àqueles bravos e chego à conclusão que se não fiquei lá, foi porque não tinha chegado a minha hora.

Saudações Aeronáuticas
Dâmaso
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 27 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (60): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8426: (Ex)citações (140): Vejo que os jovens estão atentos, pelo menos são mais jovens do que eu (António Dâmaso)

1. Mensagem de António Dâmaso, Sargento-Mor da FAP na situação de Reforma Extraordinária, com data de 13 de Junho de 2011:

Para todos os camaradas mais uma vez uma saudação especial.
Espero contribuir para esclarecer as dúvidas pertinentes ao poste em referência. Agradeço aos intervenientes a participação.
Peço ao CV que mais uma vez tenha a gentileza de postar
Um Ab


Operação Nestor

Referência ao P8405*

Vejo que os jovens estão atentos, pelo menos são mais jovens do que eu.

Quando escrevo que participei nesta ou aquela Operação, faço-o com dados dos relatórios resumidos de Operações e com o meu registo de alterações que diz que estive ou marchei em determinada data e me apresentei em Y data.

Quando escrevo, embora seja na primeira pessoa e por norma oculto nomes, não fui só eu que participei mas todos os outros elementos, por vezes muito mais activos do que eu, não me refiro só aos Páras mas aos camaradas de todas as Armas envolvidas.

Começo por responder ao Camarada José Câmara. O que escrevi no Poste em referência, as datas estão correctas, a CCP 121 foi substituída pela CCP 122 no fim de Junho de 1969.

Em 1971 eu não estive lá mas consultei o Livro da História do BCP 12 e posso adiantar que a CCP 121 participou nas:

- Operação «Papagaio A» em 27ABR71 na zona de Salancaur:
- Operação «Vespa A» a 10MAI71 na Zona de Choquemone a 2GCOMB;
- Operação «Relva Cortada» em 13MAI71 na zona de Quinara, juntamente a CCP 122 a 4GCOMB;
- Operação «Tordo Vermelho» 30MAI a 3JUN71, zona do Xime, a 4GCOMB com DFE 12; CCAÇ 12/ BART 2917; CART 2715/BART2917;
- Operação «Pinto Vermelho A» de 09 a 12JUN71, zona de Pelundo, Mansoa, Tite, CCP 121 e 123 a 4GCOMB;
- Operação «Sardão Dourado» de 27 a 29JUN71, zona de Quinara, CCP 121 e CCP 123 a 4GCOMB, CART 2771, 2772, 2773, 1.ª CCMDS Africanos, 27.ª CCMDS, DFE 12, DFE 21, CCAV 2765;
- Operação «Lince Azul» 02JUL a 17AGO71, zona de Teixeira Pinto, Pelundo, Bula, CCP 121 a 4GCOMB.

Quanto ao camarada S/Nogueira, tenho uma ideia dele em Bafatá, Galomaro e Dulombi e lembro-me de termos ido dar uma instrução prática de Morteiro 60 numa encosta depois da ponte de Bafatá, parabéns está sempre interventivo e não lhe ficava mal tirar um pouco da camuflagem.

Para o amigo Carlos Cordeiro e outros historiadores, confesso que cometi um lapso que foi não consultar um amigo Ucraniano e não ter fotografado a outra inscrição que está no lado do garfo que segue junta.


Já agora, preservem e divulguem as vossas memórias porque quando nos formos, os políticos encarregam-se de nos apagar de vez do mapa.

Saudações Aeronáuticas
Um Ab
Dâmaso
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8405: Memórias de Mansabá (14): Recordações de António Dâmaso, Sargento-Mor Pára-quedista - Operação Nestor

Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8321: (Ex)citações (139): Comentário ao Post 8318 - Notas de Leitura - Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (José Manuel M. Dinis)

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2841: Estórias cabralianas (35): A bajuda de Belel, os Soncó e o amigo dos turras (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > BART 2917 (197o/72) > Um despojo de guerra, uma fotografia de uma bajuda, certamente de etnia mandinga, oferecida a um tal Soncó, tendo no verso a data de 2 de Fevereiro de 1971. Foi apanhada, a foto, pelo Jorge Cabral no acampamento temporário de Belel, a norte do Enxalé, a sul do Oio, no limite do Cuor, e do Sector L1 (1).


Foto : © Jorge Cabral (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71, hoje jurista e professor do ensino superior universitário.

Estórias cabralianas > A bajuda de Belel... e o amigos dos turras (2)
por Jorge Cabral


Também eu entrei em Belel (1) em Junho de 1971. De Missirá até lá e de lá ao Enxalé, percorri o trajecto na companhia dos Páras e do Comandante do Pelotão de Milícias de Finete (3).

Saímos ao fim da tarde de Missirá, e pela manhã deu-se o assalto à Base. A resistência não foi muito forte, pois muitos fugiram. Ainda assim, alguns ficaram prisioneiros. Recordo um que ostentava umas divisas vermelhas de Cabo. Não se destruíram as instalações, armadilharam-se, designadamente, um depósito de arroz.

Lembro-me do Soncó ter quase causado uma catástrofe, quando a certa altura, me apontou ao longe tropa africana, dizendo-me que eram turras. Tratava-se da CCAÇ 12, que tomou parte na operação, saindo do Enxalé, e que logo depois embrulhou forte e feio, ao atravessar uma extensa bolanha.

Recordo o pesado bombardeamento da Força Aérea e a eficaz intervenção do Helicanhão.

Tive pois oportunidade de, sem ser convidado, visitar com o vagar possível a casa dos meus vizinhos.

Como recordação apenas guardei a fotografia de uma bela bajuda, certamente perdida na confusão da fuga. Tem a data de 2 de Fevereiro de 1971 e fora oferecida a alguém de apelido Soncó.

O especialista em Soncós, Beja Santos, que explique… Terei ido com um Soncó ao encontro de outro Soncó?

Ainda hoje, não entendo porque me mandaram sem o meu Pelotão. De quem foi a ideia? Do Polidoro? Ou de mais alto?

Como tive mais uma vez ocasião de confirmar no almoço da CCS / BART 2917, os boatos sobre a minha pretensa amizade com os guerrilheiros corriam... Contou-me o motorista Rogério, adido em Missirá, que uma vez o fui acordar às três da manhã, para me levar a Bambadinca, pois esquecera o meu pingalim. E que ele foi, sem medo nenhum, pois "toda a gente sabia que os turras gostavam do Alferes Cabral" (sic)...

Terá sido obra dos boatos, feitos mito. Mistério que um dia gostaria de desvendar…

A fotografia é esta que junto. Mas será legítimo e ético publicá-la? A decisão é vossa!

Jorge Cabral


2. Comentário de L.G.:


É uma despojo de guerra, meu caro. É cruel, mas é assim. Antes uma foto do que uma orelha. Ou uma orelha com brincos. Ou uma perna. Ou uma cabeça. Percebo o teu pudor, que não era certamente o do teu amigo Polidoro, já falecido, tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que nós, os quadros metropolitanos da CCAÇ 12, fomos rendidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971). Não sei por que caíste no goto do homem com quem andei no mato, uma vez, mas com quem não privei, como tu. Era um durão, ele, e certamente que adorava o teu gosto pelo teatro do absurdo. Em Belel, quis-te pôr à prova. Ou lixar-te. A tua fama vinha de longe e ele, por certo, sabia que Cabral só havia um..., o de Missirá e mais nenhum! ... Tal como Tigre de Missirá só houvera um, o nosso Beja Santos, ao tempo do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)...

Escrúpulos já não tenho eu, ao transformar esta tua história em estória... cabraliana.Tu também nunca fizeste questão de separar a ficção e a realidade, o humor e o depoimento, a estória e a história. Ou melhor, contigo, connosco, lá no cú do mundo, nunca se sabia onde acabava uma e começava outra... Espero que não me leves a mal, mas os teus fãs (onde eu me incluo) têm feito insistentes pedidos para publicar mais uma estória cabraliana... Ando a ver se isto esticadinho, chega a livro. Esta é a estória cabraliana nº 35. Ainda falta 15 para a meia centena. Em boa verdade, andas pouco produtivo ou então muito ocupado com a tua criminologia e o teu instituto e o teu ganha-pão de advogado. A última estória aqui publicada data de 10 de Março (2)... Desculpa o castigo, mas foi por uma boa causa.

Fica por responder a tua pergunta sobre legitimidade e ética. Estou a ver que vou ter que arranjar um comité de deontogia e ética (bloguísticas) para apoiar os nossos editores. Além de um conselho editorial... Pensa nisso, já que és jurista. Vemo-nos em Monte Real. Faz boa viagem. E, por favor, não alimentes mais boatos... sob pena de, in extremis, ainda ires parar a tribunal militar, acusado do crime (que nunca prescreve) de traição à Pátria que te pariu. Humor, puro humor negro, com a cumplicidade do editor... L.G.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

11 de Maio de 2008 > Guiné 63/74: P2833: Op Gavião (Belel, 4-6 de Abril de 1968) (Armando Fernandes, Pel Rec CCS / BART 1904, Bissau e Bambadinca, 1966/68)

7 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2817: Blogoterapia (51): O Alentejo do Casadinho e do Cascalheira, o Tura Baldé, a Op Gavião... (Torcato Mendonça / Beja Santos)

10 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio


(2) Vd. último poste desta série > 10 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2623: Estórias cabralianas (34): O Alferes, o piano e a Professora (Jorge Cabral)

(3) Vd. poste de 19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2778: Álbum das Glórias (45): Bacari Soncó, ex-comandante do Pel Mil Finete e actual régulo do Cuor, Janeiro de 2008 (Beja Santos)


Guiné-Bissau > Janeiro de 2008 > Fotografia de estúdio de Bacari Soncó, antigo comandante de milícias de Finete, na altura em que o Beja Santos era o comandante do Pel Caç Nat 52, e estava em Missirá (Agosto de 1968/Outubro de 1969), e actual régulo do Cuor.


Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Originalmente, em finais de 1968, o Pelotão de Milícias de Finete era o nº 102, e pertencia à Companhia de Milícias nº 1 . Em Missirá estava o Pel Mil 101, o Pel Mil 103 em Moricanhe, o Pel Mil 104 em Taibatá e Amedalai, e o Pel Mil 105 em Demba Taco. No final da comissão do BCAÇ 2852, em Maio de 1970, o Pel 201, o Pel 202 e o Pel 203, da Comp Mil nº 1 estão em Missirá, Finete e Madina Bonco/Bissaque, respectivamente. Por sua vez, Amedalai (Pel Mil 241), Taibatá (Pel Mil 242) e Demba Taco (Pel Mil 243) pertenciam então à Comp Mil nº 14. Moricanhe tinha sido abandonada em Junho de 1969. O respectivo Pel Mil (o 145) foi para Amedalai. Teria havido, portanto, uma reorganização das milícas do sector L1, da Zona Leste. Tudo isto girava (ou parecia girar) sob a batuta do poderoso régulo de Badora, fiel aliados dos tugas, e de quem se dizia que tinha 50 mulheres, uma cada tabanca do seu chão... e vários filhos na CCAÇ 12. Terá sido executado, publicamente, em Bambadinca depois da Independência. Curiosamente, temos falado muito pouco deste cabo de guerra e chefe tribal, precioso aliado das NT e da administração portuguesa. Na história do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), faz-se-lhe justiça, ao escrever-se a seu respeito o seguinte:

"(...) "A população Fula de um modo geral é-nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora que tem como chefe/régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido no meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população fortes dúvidas se tem, especialmente Nhabijões, Xime e Mero" (...).

Ainda de acordo com a mesma fonte, em 2 de Junho de 1969, "três grupos não estimados flageram durante a noite, simultaneamente, os Destacamementos de Amdedalai, Demba Taco e Moricanhe, utilizando 7 canhões s/r, 8 Mort 82, 13 LGFog, MP 12,7, várias ML e armas automáticas, causando 1 morto e 3 feridos, milícias, 1 morto e 4 feridos, civis, e danos materiais nas tabancas"...

Uns dias antes, a 28 de Maio de 1968, "um Gr IN de mais de 100 elementos flagelou com 3 canhões s/r, Mort 82, LGFog, ML, MP e PM, durante 40 minutos, o aquartelamento de Bambadinca, causando 2 feridos ligeiros"...

domingo, 27 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2796: Ninguém Fica Para Trás: Grande Reportagem SIC/Visão (6): Controvérsia (Virgínio Briote)

Ontem na SIC Notícias, a questão das trasladações das ossadas dos militares portugueses sepultados em Guidage

Presentes, o Presidente de uma Associação de Combatentes com sede em Braga (não fixei o nome), a antropóloga forense Eugénia Cunha e o Coronel Matos Gomes.

Depois do filme produzido pela SIC, aquando da deslocação à Guiné-Bissau dos especialistas em antropologia forense e geofísica, teve lugar a discussão sobre o controverso tema das trasladações dos restos mortais dos Camaradas pára-quedistas mortos naquele interminável mês de Maio de 1973.

Em 8 de Maio, Guidage (Bigene e Binta) foi atacada pelo PAIGC. Todos os acessos a essa povoação na fronteira Norte com o Senegal, foram sujeitos a uma das mais violentas acções de toda a Guerra da Guiné. Minas, emboscadas, abates de Fiats G-91, Dorniers, helis, houve de tudo naquele interminável mês (a acção prolongou-se até 8 de Junho).

As forças do PAIGC empenhadas nesta acção foram comandadas por Francisco Mendes (Chico Té) e pelo Comissário Político Manuel dos Santos (Manecas).

Na zona de Guidage estiveram envolvidos cerca de mil homens das Forças Armadas Portuguesas, segundo os Cors. Matos Gomes e Aniceto Afonso.

Em 20 dias de cerco, Guidage sofreu 43 ataques com foguetões de 122 mm, artilharia e morteiros.
39 mortos, 122 feridos, 3 desaparecidos, seis viaturas destruídas, três aviões abatidos (um T6 e dois DO 27) foi o saldo negativo para as forças portuguesas.
No decorrer do assalto do PAIGC a Guidage, a base do PAIGC estacionada em Kumbamory, Senegal, foi assaltada e destruída pelo BCmds do Exército Português em 17 de Maio. Nesta acção, segundo Almeida Bruno, o Cmdt da op Ametista Real, as tropas portuguesas reclamaram a destruição de mais de quatro centenas de armas automáticas, de mais de 100 morteiros, 14 canhões s/r e quase centena e meia de lança-granadas, para além de milhares de munições, minas anti-carro e anti-pessoal, granadas de mão, granadas de morteiro e de RPG, rampas de foguetes, etc.
No decorrer da operação o BCmds sofreu treze mortos e vinte e três feridos graves.
Notas retiradas do livro Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes e inserto em Guiné, Ir e Voltar (A Guerra da Guiné em datas). Editorial Notícias. Com a devida vénia.


A antropóloga forense Eugénia Cunha falou das questões técnicas relacionadas com a identificação das ossadas. Que foi essa a tarefa de que se incumbiram. O Presidente da referida Associação de Combatentes defendeu que a transladação dos restos mortais dos nossos Camaradas era um desígnio nacional e que o Governo Português deveria assumir as suas responsabilidades.

A surpresa surgiu quando foi dada a palavra a Matos Gomes, Coronel dos Cmds. Matos Gomes que combateu nos três palcos da Guerra Colonial, Angola, Moçambique e Guiné, apesar do notável documentário a que tinha assistido, manifestou as maiores reservas em relação ao empreendimento. Que era um assunto privado e que, como tal, se devia manter ao nível das famílias dos Camaradas mortos. Que estávamos a assistir à profanação pública, transmitida por órgãos de comunicação, de uma questão que devia ser da exclusiva responsabilidade das famílias. E que não nos podíamos esquecer que Portugal tem corpos de combatentes espalhados por tudo quanto é mundo, desde o Paraguai à China.

Cachil, Ilha do Como. A Cruz assinala as mortes dos Furriéis Mils. Condeça e Boneca.

Foto: © Hugo Moura Ferreira (2008). Direitos reservados.

Que só na Guiné, ossadas de militares portugueses estão dispersas por mais de cem locais. E que não podemos estar a cavar em todo o lado, onde haja restos de portugueses. Para além de questões de natureza diplomática, perguntou-se se não estaríamos a abrir um questão de consequências imprevisíveis. Lembrou que em Moçambique, um Unimog tinha rebentado uma mina e que dos militares e da viatura, o que se conseguiu identificar, sem margem para dúvidas, tinha sido a caixa de velocidades da viatura. E que no entanto, pelo que depreendi, as famílias receberam em Portugal os restos mortais...

O talhão militar do cemitério de Bissau, em 1966.

Foto: © Virgínio Briote (2008). Direitos reservados.

O Cor Matos Gomes concorda que as ossadas devem ficar reunidas em locais onde seja possível manter a mínima dignidade para quem deu à Pátria o melhor que tinha. Que, insistiu Matos Gomes, estava contra o espectáculo público da devassa do que restava dos que galhardamente se bateram até ao limite no campo da batalha e que este era um local digno, como digno tinha sido o enterro possível que, na altura os Camaradas lhes fizeram.

Uma controvérsia que vai certamente continuar.
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Nota de vb: artigo relacionado em

22 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2785: Ninguém Fica Para Trás: Grande Reportagem SIC/Visão (3): Sabemos ao menos quem foram e onde estão ? (Luís Graça)

terça-feira, 11 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2624: À procura dos Camaradas e da Memória de 1966 (José Jerónimo / Virgínio Briote)

1. Mensagem que o José Jerónimo enviou há tempos:

Emocionado estou com todo o trabalho que têm tido na pesquisa de informações, sobre meus camaradas mais próximos, nos velhos tempos de Guiné.


Não sei como mostrar para vocês todo o meu reconhecimento.
Tu, meu grande camarada, que junto com o Henrique Cabral, com o Henrique Matos, com o Virginio Briote, com o Carlos Vinhal, com o Santos Oliveira (que se tem desdobrado em vários "Santos Oliveira" para me apoiar nesta busca, que já alguns resultados nos trouxe) e outros, tens cedido o teu tempo, o teu espaço, para me dares atenção, me ajudares , apesar do meu contributo de informações ser tão pequeno... mereces um Louvor por MÉRITO que se estende a todos os outros, não pelos vossos feitos na guerra.


Mas agora, em outro tempo bem distante, pelo ALTO NIVEL de Solidariedade, de Camaradagem, de Interesse em ajudar os outros, de Motivação em resgatar os momentos difíceis por todos nós vividos e que serviram para tanto fortalecer o espirito de CAMARADAGEM, nas raias da AMIZADE que fez a nossa linda história.

Daqui destas longínquas terras brasileiras, que agora muito mais perto se tornaram para todos nós, vai o meu MUITO OBRIGADO PARA VOCÊS TODOS.

Com um FORTE ABRAÇO para TODOS, do

José Jerónimo

PS: Esperando que tenhamos mais resultados em nossa busca,
JJ

2. Nova mensagem do José Jerónimo:

Caro Luís Graça,




Esta foi uma parte das operações em que a CCAÇ 1487 participou. Foram aquelas que fizemos ao nível de Batalhão com o de Tite, o BCAÇ 1860.

Além destas tivemos outras como Companhia de Intervenção do Batalhão de Bissau, em Mansoa e Mansabá, além de muitas outras várias que tivemos só ao nível de uma ou duas companhias, que aqui não estão relacionadas. Existe interesse em publicar no Blogue? Como? Posso escrever com alguns detalhes que me lembrar. O que achas?

3. Para lhe avivar a memória, meti-me na conversa, uma vez que somos praticamente do mesmo tempo:

Caro José Jerónimo,

Pela foto que acabas de enviar vejo que está bem, com um aspecto de fazer inveja à velhada que por aqui tem dado a cara.

E pelo resumo de algumas ops em que entraste, também me apercebi que dois grupos nossos (Cmds do CTIG, do então cap Garcia Leandro) andaram contigo, salvo erro a Narceja e a Naja, estou correcto?

Tens alguma informação mais detalhada que queiras enviar sobre as acções em que participaste?

Um abraço,
vb



4. Na volta, o José Jerónimo:

Caro VB

Concerteza que sim. Estive lá em todas essas operações, menos na última, a Navalhada, pois tinha acabado de ser evacuado para o Hospital Militar de Bissau. Nela, lembro, morreram o guia Idrissa e tivemos vários feridos no Grupo do Alf Freitas Soares.

Apesar de, pelo muito tempo afastado dessas nossas lides, tenha esquecido a maior parte dos detalhes que gostaria de recordar agora, lembro-me que na Narceja foi derrubado um helicóptero, quando foi evacuar os feridos. Na queda um furriel que com a sua secção fazia a segurança do helio, teve um braço quase decepado.

No helicóptero estava a ser evacuado, com outros, um cabo (não lembro o nome) da CCAÇ 1487, com um tiro no rosto.

Depois quando faziamos a segurança do helicóptero derrubado, alguns de nós, entre eles eu, estávamos perto de um grande poilão, onde estava o técnico do Alouette que ia desmontar o helicóptero, para o mesmo poder sair dali em um outro. Aí estavam também de pé o então capitão Fabião , apoiado na sua varinha, o também então capitão Osório e um dos alferes dos Cmds do CTIG (era um gordinho muito falador e divertido, estive com ele mais vezes).

Este último tentava assar umas febras de um leitão que tínhamos apanhado. Foi nessa altura que tivemos um contra-ataque com uma saraivada de balas , morteiradas e bazucadas. Todos os que ali estavam indevidamente foram para os seus lugares. Eu estava ao lado Alferes Lobato da CCAÇ 1487 e quando no primeiro momento nos jogamos para o chão, uma rajada passou entre nós os dois. Ele concerteza se lembrará também.

E lá se foram as febrinhas de porco, que pareciam vir a ser tão apetitosas. Os Páras desceram já muito mais tarde.

Tu estavas lá? Foi assim ? Ou estou a fazer confusão com outra operação? Acho que no fim fomos por Jabadá, onde o Alferes do Pel Mort 1039 (a quem eu chamo de Basílio) nos recebeu com umas boas cervejas, no destacamento, apesar de estarmos debaixo de muitos tiros.
Da Naja não lembro tão bem.

Outra que lembro alguma coisa, mas que vocês (Cmds do CTIG ) não estiveram, foi a Nalú. Foi nela que, pela primeira vez, foi integrado nas forças terrestres o Comandante do Batalhão 1860 (ele foi no meu Grupo de Combate e nesta operação , morreu o Alferes Carlos Santos Dias da CCAV 1549 (?), que actuava com um objectivo diferente.

Quanto ao ex-capitão Leandro, lembro que nos comandou durante os dois períodos de férias do Osório. Num deles tivemos um forte ataque ao aquartelamento de Fulacunda. E ele estava lá. Lembro-me que quando saí com a arma, para ir para fora do quartel (cabia ao meu Grupo a segurança da pista e da parte externa do quartel, onde ficava a população civil) me cruzei com ele, que ainda perplexo se tentava posicionar quanto à situação e me perguntou alguma coisa que agora não recordo.

Olha, Briote, se forem puxando por mim, ainda vou lembrar de um monte de coisas. Gostei deste momento de recordações e só tenho pena de só ir lembrando aos poucos.

Quanto à foto que te enviei, obrigado pelo elogio. De facto apesar das muitas peripécias da minha vida, ainda me sinto muito bem e tenho uma vida muitissimo ativa. Dou Graças a Deus por isso. Estou aí para mais lembranças e encontros...

Se tu, meu camarada amigo, estiveste em algumas destas operações, tenta avivar a minha memória, que começou a clarear desde que conheci o Grande Santos Oliveira e tenho estado em contacto com todos vocês.

Um abração amigo
JJ

__________

Nota de vb:


I. A op Narceja em que o José Jerónimo refere o abate do Allouette, consta também da minha memória. Não foi o meu grupo mas sim os Vampiros, comandados pelo alferes V. Caldeira. Foi a primeira ou se não foi, foi seguramente uma das primeiras vezes que o Caldeira, até então adjunto do cap Leandro para as questões administrativas, chefiou o grupo. O alferes Vilaça, até então o cmdt do grupo tinha regressado a Guileje e à sua CCaç 726.
II. O técnico da fábrica francesa que estava na BA 12, Bissalanca, já com alguma idade, deslocou-se num outro heli para ver os estragos e eventualmente reparar no local o que pudesse ser reparado.
O alf Vítor Caldeira contou-me a peripécia, mas o que mais retive foi a cena da largada dos páras.
Transportados para o local pelo próprio cmdt da Base, o cor Kruz Abecassis, se a memória não me atraiçoa, quando a zona foi sobrevoada pelo Dakota, havia tiroteio cá em baixo. Mesmo assim, fez-se a largada.



Foto de finais de 1965, princípios de 1966, em Brá, numa visita que o Governador A. Shultz fez à CCCmds. De costas e com as mãos atrás das costas, vê-se o então cap Nuno Rubim. O alf V. Caldeira é o que está assinalado à direita da imagem (mancha branca junto às botas) com o Marcelino da Mata ao fundo. É este o alferes gordinho de que falas?
JJ, puxa pelas memórias. Para as avivar, vai enviando fotos, docs, o que tiveres.
Foto de © vb (2008). Direitos reservados.