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sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23775: Fauna e flora (21): "Ó Falcão, o Jagudi não vai ao fanado, mas olha que não é parvo de todo!"... Uma "fabulosa fábula" guineense sobre o último dos últimos, o que ri melhor...


Portal dos animais > Abutres 
(com a devida vénia...)

1.  A propósito dos pobres dos  jagudis, aqui lembrados pelo nosso JBelo (*), sacrificados no altar da estupidez e da cupidez de algns dos piores exemplares desse bicho que se chama "Homo sapiens sapiens", não resistimos à tentação de reproduzir um dos primeiros postes do nosso blogue, o nº 52, de 8 de junho de 2005 (**).

É uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) guineense que merece ser objecto de leitura, de reflexão e de divulgação. É uma joia da sabedoria humana, com uma mensagem universal, que cala fundo. Podia ser o décimo quinto conto dos "Bichos" (1940), do português e transmontano Miguel Torga, se em Trás-os-Montes houvesse jagudis.  Não havia o jagudi mas havia o primo, o abutre-preto (Aegypius monachus), agora em recuperação na Pemínsula Ibérica. O abutre-preto é a maior ave de rapina da Europa, mas também do grupo dos abutres do velho mundo e da família Accipitridae, atingindo os 98–120 cm de comprimento e uma impressionante envergadura de asas de 268–310 cm. Os maiores indivíduos podem atingir os 13,5 kg de peso.

Como todas as estórias de animais, encerra uma lição, neste caso uma grande lição (filosófica, política e ética) em relação ao exercício do poder, aos detentores do poder, aos que são arrogantes e aos que não têm pejo em oprimir, desprezar ou marginalizar os mais fracos, os mais pequenos, os socialmente menos qualificados... A História, passada e recente, está cheia deles, das suas histórias pérfidas, malvadas, cruéis...

O jagudi (abutre-de-capuz, nome científico Necrosyrtes monachus) nã
o é ágil, elegante, superior, altivo, nobre, aristocrático e guerreiro como o falcão, mas nem por isso deixa de ter o seu lugar na criação e de desempenhar o seu papel na natureza. É certo que ele é pouco considerado tanto pelos humanos como pelos outros animais. É feio, é repelente, é necrófago...

Que o diga, aliás, o provérbio crioulo-guineense

(i) Kal dia ku sancu fala jugude manteña si ka pa rispitu di kacur;

 ou, noutra variante:

(ii) Kal dia ku sancu fala sakala manteña si i ka na disgustu di kacur 

Entenda-se: o macaco só conhece ou cumprimenta o jagudi no velório do cão.

Mas também há um outro provérbio que, de certo modo, vem em defesa do jagudi: 

(iii) Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju... Leia-se: o jagudi não foi à circuncisão, não passou pelo ritual do fanado, mas consegue ver as coisas, ou seja, não é parvo de todo, não o tomem como tolo...

Em suma, uma estória que vem a propósito da História (com H grande) dos nossos dois países, Portugal e a sua ex-colónia da Guiné que,  quase meio século depois da independência (política), ainda está longe de ter encontrado os caminhos seguros da paz, da construção da unidade nacional, da liberdade, da democracia, da tolerância, da justiça, da equidade e do desenvolvimento sustentado. Coisas, de resto, que nunca estão asseguradas de uma vez por todas, mesmo no melhor dos mundos (dos EUA à Suécia)...

Que a elite dirigente da Guiné-Bissau (mas também as elites dos outros países como a Rússia ou  Ucrânia, dois "irmãos" eslavos hoje em guerra fratricida....) saiba, com humildade e inteligência, ouvir, aprender e aplicar a grande sabedoria do  povo guineense ... 

O falcão desta história é muito provavelmente o alfaneque (nome científico, Falco biarmicus). Mas também podia ser  o falcão-peregrino ou falcão-real (Falco peregrinus), que existe em todos os continentes, exceto na Antártida. Não nidifica na América do Sul.  De qualquer modo, não consta do Guia das aves comuns da Guiné Bissau (2017). 

O falcão-peregrino é uma ave de médio porte, corpo compacto, pescoço curto e cabeça arredondada com grandes olhos negros. Na Península Ibérica, o seu comprimento varia entre os 40 e os 50 cm, com um peso médio de 600 gramas (para o macho adulto) e de  900 gramas, aproximadamente, para a fêmea. Laragura das asas (ou envergadura): 74 - 120 cm. 

Sobre os falcões, em geral,  diz a Wikipédia:

(...) Falcão é o nome genérico dado a várias aves da família Falconidae, mais estritamente aos animais classificados dentro do género Falco. Os falcões são as menores aves de rapina medindo cerca de 15 a 60 cm de comprimento. São também muito leves pesando entre 35 g a 1,7 kg. 

O que diferencia os falcões das demais aves de rapina é o fato de terem evoluído no sentido de uma especialização no voo em velocidade (em oposição ao voo planado das águias e abutres e ao voo acrobático dos gaviões), facilitado pelas asas pontiagudas e finas, favorecendo a caça em espaços abertos — daí o fato dos falcões não serem aves de ambientes florestais, preferindo montanhas e penhascos, pradarias, estepes e desertos.

Os falcões podem ser identificados pelo fato de não planarem em correntes termais, como outras aves de rapina. O falcão-peregrino, especializado na caça de aves médias e grandes em voo, pode atingir 430 km/h em voo picado e é o animal mais rápido da terra. Diferentemente das águias e gaviões, que matam suas presas com os pés, os falcões utilizam as garras apenas para apreenderem a presa, matando-a depois com o bico por desconjuntamento das vértebras, para o que possuem um rebordo em forma de dente na mandíbula superior.

Na Idade Média, os falcões eram apreciados como animais de caça acessíveis apenas à elite (reis e nobreza). (...)

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 43. Ilustração de PF - Pedro Fernandes) (Com a devida vénia...)

Acrescente-se que este é um notável trabalho, financiada pela União Europeia e pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua através do projecto Gestão Sustentável dos Recursos Florestais no Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu.
 

2. A fábula do Jagudi e do Falcão

por Álvaro Nóbrega


À sombra duma árvore, um alto poilão secular, descansa tranquilo um jagudi (abutre-de-capuz). No mesmo ramo em que ele se empoleira, caiado de branco devido aos dejectos de tantos outros jagudis que por ali passaram, veio pousar um altivo falcão.

Depois de trocarem um breve e seco cumprimento, o falcão, sempre palrador, fanfarrão e irrequieto, começou a insultar o jagudi, chamando-o de desprezível, de cobarde, de preguiçoso, de oportunista e de muitos outros termos insultuosos e pejorativos que lhe vieram à cabeça, à sua cabeça, tonta e leviana. Acusou-o, repetidamente, de ser a mais miserável e feia das criaturas de Deus.

O jagudi ouviu tudo, sem nunca ter tido o mais pequenino gesto de impaciência, protesto ou de indignacão. Nisto, passa entre os dois, a grande velocidade, uma linda ave, de penas multicores.

Logo o falcão se lançou em perseguição da pobre vítima. Mas fê-lo de maneira tão desenfreada que por azar foi bater, em cheio, com o peito, de encontro a um tronco robusto de uma árvore da floresta que se lhe atravessara no caminho. Louco, cheio de dor, lançando pios lancinantes, caiu ao chão, mortalmente ferido, sobre o tapete de folhas secas que cobria o trilho da mata.

Nesse preciso momento, o jagudi levanta voo, com o seu ar pesado e pachorrento, e toma o seu lugar, imperturbável, à cabeceira do moribundo. O falcão, no estertor da agonia, ainda teve tempo de descortinar, horrorizado, a silhueta tenebrosa e agoirenta do jagudi, o seu bico afiado como aço e o seu pescoço descarnado.. E, trémulo, perguntou-lhe:

— Que vens aqui fazer, jagudi?

Ao que este respondeu, impávido e sereno:

— Aguardo o teu fim, meu amigo.

Fonte: Adapt. de Nóbrega, Álvaro (2003) - A luta pelo poder na Guiné-Bissau. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCPS). Universidade Técnica de Lisboa (UTL). 2003.23.


[ Revisão / fixação de textos  / negritos, para efeitos de publicação deste poste: