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Marvão > 20 de Agosto de 2009 > O stresse do ninho...
Foto: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
Meu caro Mário (Fitas):
Estou-te a escrever, não a título pessoal mas como editor, condição em que fui interpelado, desafiado, irónica mas amavelmente, por ti. Vou tentar responder ao teu repto, se for capaz. E começo por citar as tuas palavras, desdobrando-as em três proposições:
(i)
Luís desculpa, mas deixa sair de quando em vez a G3; (ii)
Dá mais força ao Blogue; (iii)
No 25 de Abril, as G3 tinham cravos! (Mário Fitas
dixit)…
Dispensa-me de comentar, para já, à proposição nº 3 (que precisaria de mais tempo e vagar para ser analisada)... E vamos às duas primeiras e ao contexto em que as inseres...
Nós, editores, sabíamos que a
confissão do Amílcar Ventura (AV) ia provocar
sangue... Muitos camaradas não iriam ver e ouvir, impávidos e serenos, o AV a abrir a sua caixinha de Pandora (*)... O próprio mediu, até certo ponto (só até certo ponto), as consequências do seu acto. Não posso nem me compete saber quais são as suas motivações profundas, mas não acredito que nos tenha revelado o que revelou (o seu
segredo...) por mero masoquismo, exibicionismo, bravata, provocação, humor negro,
show-off, etc.... Não dou de barato a ideia que são insondáveis os mistérios da alma humana, como pretende a filosofia de senso comum, contra a qual tendo a estar de pé atrás... Mas, se é isso que ele, o AV, esperava, não tem que esperar pela demora: já tem mais de 50 comentários na caixa do correio, muitos deles a dar-lhe no toutiço…
Ao nosso camarada Amílcar (Ventura, de apelido, e que continua a ser nosso camarada, não se tendo transformado num dia para o outro em
pária, que eu saiba ainda não foi proscrito, não foi expulso do blogue, independentemente das críticas – e algumas bem duras – de que já foi alvo, independentemente da natureza dos seus actos no passado, como nosso camarada, e que alguns já condenaram abertamente, em termos morais), ao AV, dizia, os editores pediram-lhe, esclarecimentos adicionais, nomes, números, datas, lugares... de modo a tornar mais verosímil ou, pelo menos, consistente a sua versão...
Infelizmente, não há testemunhas. Também se as houvesse, a
história dos bidões de gasóleo dados à borla ao PAIGC seria porventura um segredo de Polichinelo...
É bom lembrar que o AV insistiu em publicar a sua
confissão ou revelar o seu
segredo , mesmo sabendo que os seus actos, no passado, podiam configurar um crime mais ou menos grave, à luz do Código de Justiça Militar então em vigor, quiçá até, um crime nefando, segundo alguns, o crime de traição, mesmo que o país não estivesse oficialmente em guerra nos últimos meses de 1973 e primeiros de 1974, período em que o Amílcar Ventura andou armado em Robim dos Bosques da Guiné, roubando – gasóleo - aos ricos, aos colonialistas, aos
tugas, para o dar aos pobrezinhos, aos nacionalistas, aos revolucionários, aos guerrilheiros do PAIGC, com a cândida e alegada intenção de ‘apressar o fim da guerra’ e ‘salvar vidas’, de um lado e do outro…
Não sou jurista, constitucionalista, penalista... Mas talvez alguns camaradas do nosso blogue, juristas, especialistas em leis, homens do direito como o Jorge Cabral, o João Seabra, o Carlos Silva, o Álvaro Branquinho, o J.L. Mendes Gomes, etc. nos possam dar uma ajuda, para saber qual o enquadramento penal (disciplinar e criminal) em que o nosso ex-Furriel Mecânico Auto Amílcar Ventura, que fez questão em ir parar à Guiné (até meteu uma cunha!), poderia eventualmente incorrer, se tivesse o azar de ter sido apanhado com a boca na botija, neste caso, com a mangueira na mão a encher, de gasóleo, os depósitos das viaturas do PAIGC, estacionadas no Senegal, e que serviam para transportar tudo o que uma guerrilha precisa em tempo de guerra: armas, munições, géneros alimentícios, feridos, homens e suas bagagens, comissáris políticos, jornalistas estrangeiros, criancinhas e professores das escolas, etc., num contexto de guerra que não era bem de guerra, para o regime político de então, mas em que se matava e morria, de um lado e do outro, incluindo as populações, inocentes, que não queriam tomar partido por um lado ou pelo outro...
É uma mera curiosidade, própria dos seres humanos que são animais, primatas, curiosos, inteligentes e sociais: que desventura(s) aconteceria(m) ao Amílcar num caso destes ? Que ele apanhava uma porrada, isso não me admiraria… E, a propósito, não sei como funcionava a justiça militar, e nem qual era o seu grau de independência em relação ao poder político-militar naquela época...
Mas, mais do que isso, ao AV nunca lhe perdoariam os seus camaradas de então, caso ele quisesse (e pudesse) justificar-se em público na altura... A pior condenação é sempre a dos nossos pares, a proscrição decretada pelo nosso grupo, o banimento do nosso território, o exílio (físico ou simbólico)...
Mas também sabemos que, bem ou mal contada, a história do seu
segredo tem mais
folhetins que ele, por enquanto, não nos quis dar a conhecer em detalhe... Alega apenas que a sua motivação foi política... Isto é, há antecedentes que ele entendeu omitir e que eventualmente viriam esclarecer a questão: afinal, qual foi o
móbil do crime, o que é que o levou a tornar-se um
colaboracionista do PAIGC... (Ele promete vira a terreiro prestar escarecimentos adicionais sobre esta história...).
É sabido que muitos guineenses, nossos aliados - incluindo alguns soldados que foram meus amigos e camaradas - pagaram caro, com a vida ou a liberdade, sua colaboração com os tugas, tendo escolhido o
lado errado da barricada... Tem acontecido sempre assim em todas as guerras, com os vencedores a fazerem ajustes de contas com
aqueles dos seus que pactuaram com o inimigo... Neste caso, guineenses, de etnia fula e manjaca, por exemplo...
Quanto ao uso e abuso da G3 no blogue, que é a questão que me traz aqui (refiro-me à provocação, saudável, do nosso
Furriel Mamadu, aliás, Mário Fitas): não sou cabo quarteleiro, não tenho as G3 à minha guarda, não posso nem quero gerir as tensões e as pulsões que elas despertam (as G3, as Kalash, as armas de guerra, em geral)…
Essa tarefa, se necessária e exequível, compete-nos a todos, e não apenas a mim e aos restantes editores…
Percebo o que queres dizer, Mário: precisamos de mais stresse no blogue, de mais pica, dá-nos mais força... E até um cheirinho a pólvora , a chegar-nos ao nariz, de vez em quando não nos faria mal... Concordo contigo e sempre defendi esse ponto de vista: precisamos, sim, é de pluralidade, diversidade, heterogeneidade, frontalidade, e até de conflitualidade (teórico-ideológica) nas abordagens, leituras , análises e interpretações dos factos, dos relatos, das histórias, ou seja, da matéria-prima que publicamos todos os dias no blogue...
Sou dos que pensam que, em quase tudo na vida, as nossas divergências não são necessariamente antagonismos... E aí estamos de acordo: no blogue não temos que pensar todos pela mesma cabeçorra (aliás, felizmente não há nenhuma, há muitas, e boas cabecinhas); temos é que pensar cada um pela sua...cabecinha. Ora isto não é sinónimo de sacar da G3, muito menos por dá cá esta palha...
Como se diz em inglês,
stress is the spice of life, not the kiss of death… O stresse é o que dá pica à vida, mas não deve ser o beijo da morte… O stresse, de sinal negativo (
distress, em inglês), mata, é um assassino silencioso; a G3 também mata, se a gente não a souber usar… Aliás, ela só serve para duas coisas: matar ou intimidar...
As polémicas - metaforicamente, em linguagem figurada, a G3 (em tiro a tiro ou em rajada) - se se sobrepuserem às nossas histórias, podem levar a situações de conflito irracional, disfuncional, patológico, negativo, gratuito, exacerbando as nossas diferenças, aumentando as nossas clivagens, levando em última análise ao disfuncionamento da nossa Tabanca Grande e do nosso blogue, à desorganização máxima, à entropia, e no limite à morte...
A morrer, o nosso blogue (e um dia vai morrer connosco, com esta geração que, como bem me lembra o Virgínio Briote, tem mais dez anos de vida social útil), que não seja de morte matada, em guerras fatricidas...
Tu mesmo sabes, meu caro Mário, por experiência própria, quais são algumas das consequências negativas dos conflitos em que já estiveste envolvido, nomeadamente quando estás num grupo, competindo com outro grupo e querendo a todo o custo impor a tua verdade, a tua versão, a tua idelologia, os teus valores, os teus princípios, a tua grelha de leitura do real, os teus óculos:
(i) Desencadeiam sentimentos, menos nobres, de frustração, hostilidade, negatividade, são um factor de
distress, de ansiedade, de angústia, de medo, de sofrimento psíquico;
(ii) Fazem aumentar a pressão para a conformidade no grupo, reduzem a margem de liberdade individual, fomentam a intolerância;
(iii) Levam a um desvio de energia e de objectivos;
(iv) Fazem acentuar a recusa em cooperar, levando a acções de bloqueio;
(v) A comunicação tende a distorcer-se, fortalecendo a recusa em
pactuar com o inimigo, aqueles gajos, aqueles filhos da mãe, aqueles isto e aquilo...
(vi) Levam-nos a perder o sentido da realidade (com a amplificação do conflito, há um efeito imparável de
bola de neve, às tantas já ninguém sabe quem começou, quando se começou, por que é que se começou, qyem disse o quê a quem, etc.).
Aspectos positivos dos conflitos, incluindo as manifestações (abertas) das nossas divergências de pontos de vista ? Quando há clivagem entre dois grupos,
(i) Há um aumento do stresse de sinal positivo (
eustresse), interesse, energia, criatividade, nos membros do grupo;
(ii) Reforç-se a identidade e a coesão do grupo;
(iii) Passa a haver maior motivação para o eficaz desempenho do grupo;
(iv) Alerta-nos para problemas críticos, ajuda a identificar novos problemas;
(v) Previnem-se conflitos mais graves;
(vi) É testado e reajustado o sistema de poder na organização, nos grupos...
G3 na Tabanca Grande ?
Como no faroeste da nossa infância, nas guerras dos índios e dos
cow-boys, prefiro que sejam de pau ou que, no mínimo, fiquem à guarda do xerife enquanto a gente vai ao
saloon beber um copo... A ter que esgrimir argumentos para defender os nossos pontos de vista, que o façamos com a cabeça e o coração, com a inteligência e a emoção, mas sempre com elevação e elegância... O que não tem nada a ver com conformismo, pensamento único, linguagem de pau, alinhamento ideológico,
status quo, ortodoxia... Nem tem nada a ver com o politicamente correcto, o socialmente correcto, o eticamente correcto, etc. Como eu gosto de citar, há um provérbio popular que diz: "o dente morde na língua mas mesmo assim vivem juntos"...
Com um chicoração
Luís Graça
______________
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 11 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...