Data: 27 de Setembro de 2010 23:51
Assunto: O Soldado Para-quedista Folhas (*)
No dia 22 de Agosto levantei-me por volta das 10 horas da manhã o que não é muito habitual da minha parte. Levanto-me e vou tomar banho, a minha esposa queria que eu fosse fazer um serviço, mas eu não lhe dei ouvidos e disse
- Queres vir comigo, é sem destino ?!
- Não - foi a resposta.
- O.K., não fiques zangada.
Equipei-me, pego no carro e aí vai ele sem destino. Ando uns 200 metros, pára e ligo a um amigo que estava de férias da França e pergunto se quer vir comigo. ´
- É sem destino - digo eu.
A resposta foi afirmativa. Espero um pouco por ele e penso no meu amigo Folhas, é hoje que o vou procurar a Coimbra e lá fui com o meu amigo. Almoçamos pelo caminho e seguimos viagem. Em Coimbra procurei a direcção de S. Martinho do Bispo. Encontro um senhor dos seus sessenta e tantos anos, que me diz conhecer o pessoal dali e não existir nenhuma família Folhas, mas sim numa terra cujo nome me varreu, lá sim, há muitos Folhas.
Lá fui em direcção a Taveiro, entro na povoação encravada na serra, atravesso-a de um lado ao outro e não vejo alma viva. Páro a conversar com o meu amigo e companheiro para delinear uma estratégia e eis que alguém se aproxima e pergunta se precisamos de alguma coisa. Digo ao que vou e o senhor manda-me para um café, lá fui. Mais uma vez conto ao que vou e diz uma dos presentes para o outro:
- Ó pá, de pára-quedistas é contigo.
Estou com a minha gente, pensei, e estava, era um ex-pára-quedista, amigo do Folhas e colega de trabalho durante muitos anos.
O senhor que em S. Martinho do Bispo me enviou para esta terra tinha razão, o pai do Folhas era daqui, onde há muitos Folhas, só que casou em Coimbra, melhor em S. Martinho do Bispo.
O nosso ex-pára-quedista indica-me onde mora o Folhas e lá vou. Encontro o meu amigo entretido a fazer um galinheiro para uma vizinha, vá lá, nada de maus pensamentos, suas más línguas. Mostro uma foto onde estamos os dois e pergunto à senhora se conhecia aquele patife [, vd. foto a seguir: o Folhas e o Hoss com a MG 42].
- Não, reponde a dita senhora.
É lógico. Não nos conhecemos. Ele está magro, como sempre, mas muito acabado. Não quer ouvir falar da tropa. Lá conversámos umas horas, onde me contou que até na prisão o meteram, por não ter feito nada, ainda hoje não sabe bem a razão. Eu perguntei se não seria o resto do 16 de Junho de 1970? (**)... Nada de concreto, talvez sim talvez não.
Está um homem revoltado que nunca mais foi a Tancos embora já tenho sido convidado por diversos colegas, inclusive um ex- Coronel Pára-quedista. Nem mesmo esse o consegue levar. Vejam a revolta que este homem tem para com os seus ex-superiores (**). É preciso relembrar a esses senhores que se hoje têm altas patentes, melhores mordomias, foi à nossa custa, à custa do Folhas e de muitos outros FOLHAS, que estão traumatizados com a guerra e com o comportamento menos digno de certos oficiais e sargentos, que só se importavam com a carreira militar e se esqueceram de que estavam a lidar com homens.
O Folhas não sabia da nossa decisão de enviar o dito oficial para fora do reino dos viventes. Ficou muito admirado. Disse desconhecer isso por completo.
- Se fosse comigo esse homem hoje não estava vivo - respondo eu - , não tenhas a menor dúvida.
Esse trauma que o Folhas tem, felizmente não o afectou na vida civil, tem uma vida boa, graças a Deus. Não precisou da tropa para viver dignamente.
Será que esses senhores não têm vergonha do que fizeram? Será que não são capazes de pedir desculpa pela porcaria que fizeram? Pelo menos uma palavra. Já ouvi um Coronel pára-quedista na reforma, claro, dizer que se encontrasse o Folhas lhe pedia desculpa, pelo menos isso já é de louvar. Mas falta outro dizer o mesmo, esse é que eu queria ouvir aqui neste sítio publicamente. Será capaz? Vamos esperar para ver.
Será que esses senhores não têm vergonha do que fizeram? Será que não são capazes de pedir desculpa pela porcaria que fizeram? Pelo menos uma palavra. Já ouvi um Coronel pára-quedista na reforma, claro, dizer que se encontrasse o Folhas lhe pedia desculpa, pelo menos isso já é de louvar. Mas falta outro dizer o mesmo, esse é que eu queria ouvir aqui neste sítio publicamente. Será capaz? Vamos esperar para ver.
Hoss
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Notas de L.G.:
(*) Último poste desta série > 2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego
(**) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6681: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (3): Conclusão
(...) Conforme mencionei na 1.ª parte, houve um oficial que na emboscada [, perto do Pelundo, em 16 de Junho de 1970,] saltou da viatura sem a G3 e pediu ao Folhas que lhe desse a dele, ao que este rejeitou. O oficial fez a vida negra ao Folhas o resto da comissão.
Passados uns meses e já em plena época das chuvas, fomos para um aldeamento na fronteira com o Senegal onde só havia um pelotão de obus. (...)
Um dia saímos de manhã fazer uma operação de reconhecimento, chegámos todos molhados. À noite fomos em auxílio dum quartel do exército que estava a ser atacado, chegámos todo molhados. Na manhã seguinte o dito oficial manda formar a companhia de camuflado. Camuflado significa botas. Nós só tínhamos dois pares de botas e dois camuflados que estavam todos molhados. Então resolvemos formar em fato de treino uns, e outros de calções, a única coisa que tínhamos enxuto para vestir. Ao ver tal situação o dito oficial manda o Folhas sair da formatura, entra em discussão com ele e deu-lhe cobardemente duas bofetadas.
O Folhas passa-se da cabeça, e não era para menos, vai buscar a G3 com um carregador enfiado, pronta a disparar, corre atrás do oficial que se refugia na escola. Então eu e outros colegas fomos acalmar o Folhas, o que não foi nada fácil e conseguimos que nos desse a G3.
Passados poucos minutos reuniram-se alguns velhinhos da companhia e de cabeça quente ditamos a sentença ao nosso oficial. Decidimos que, se o dito oficial participasse do Folhas, deixaria de contar a 100% no efectivo das tropas Pára-quedistas, ou seja hoje não estaria no reino dos viventes. Por sorte não houve participação.
Mas, digo com toda a honestidade, se fosse comigo não lhe perdoava. Ainda hoje pergunto o que é que me segurou em não concretizar a sentença, algumas vezes o tive na mira. O meu pai nunca me bateu.
Seria mais um morto em combate. Esse grupo era composto por 3 MG, 2 Hk, 1 Degtariev e várias G3. (...)
Notas de L.G.:
(*) Último poste desta série > 2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego
(**) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6681: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (3): Conclusão
(...) Conforme mencionei na 1.ª parte, houve um oficial que na emboscada [, perto do Pelundo, em 16 de Junho de 1970,] saltou da viatura sem a G3 e pediu ao Folhas que lhe desse a dele, ao que este rejeitou. O oficial fez a vida negra ao Folhas o resto da comissão.
Passados uns meses e já em plena época das chuvas, fomos para um aldeamento na fronteira com o Senegal onde só havia um pelotão de obus. (...)
Um dia saímos de manhã fazer uma operação de reconhecimento, chegámos todos molhados. À noite fomos em auxílio dum quartel do exército que estava a ser atacado, chegámos todo molhados. Na manhã seguinte o dito oficial manda formar a companhia de camuflado. Camuflado significa botas. Nós só tínhamos dois pares de botas e dois camuflados que estavam todos molhados. Então resolvemos formar em fato de treino uns, e outros de calções, a única coisa que tínhamos enxuto para vestir. Ao ver tal situação o dito oficial manda o Folhas sair da formatura, entra em discussão com ele e deu-lhe cobardemente duas bofetadas.
O Folhas passa-se da cabeça, e não era para menos, vai buscar a G3 com um carregador enfiado, pronta a disparar, corre atrás do oficial que se refugia na escola. Então eu e outros colegas fomos acalmar o Folhas, o que não foi nada fácil e conseguimos que nos desse a G3.
Passados poucos minutos reuniram-se alguns velhinhos da companhia e de cabeça quente ditamos a sentença ao nosso oficial. Decidimos que, se o dito oficial participasse do Folhas, deixaria de contar a 100% no efectivo das tropas Pára-quedistas, ou seja hoje não estaria no reino dos viventes. Por sorte não houve participação.
Mas, digo com toda a honestidade, se fosse comigo não lhe perdoava. Ainda hoje pergunto o que é que me segurou em não concretizar a sentença, algumas vezes o tive na mira. O meu pai nunca me bateu.
Seria mais um morto em combate. Esse grupo era composto por 3 MG, 2 Hk, 1 Degtariev e várias G3. (...)
3 comentários:
Meu caro Sílvio, camarada Hoss:
Sei que hoje és (e se calhar sempre foste) um bom cristão, um bom homem... Sei que foste um bom pára-quedista... Entendo a tua revolta e mais ainda a do Folhas. Casos como esses que descreves (com bom senso, sem entrares em pormenores desnecessários que quebrem o sigilo e levem à identificação dos oficiais em causa, possivelmente ainda vivos hoje), eram relativamente frequentes (ou não seriam tão raros como isso) em todas as nossas unidades e subunidades, no Exército, na Força Aérea e no Exército. Pelo menos no Exército, que é o que eu conheço (ou, melhor, conheci).
Quantos camaradas nossos não se sentem, ainda hoje, injustiçados e revoltados como o Folhas, por terem sido vítimas de arbitrariedades, sbuso de poder, autoritarismo, desnorte, fraqueza moral ou simples incompetência, por parte dos seus comandantes ou superiores hierárquicos ?
Não sei se fazia parte da "cultura" da família pára-quedista a técnica (terapêutica) de descarregar nos elos mais fracos da cadeia de comando-controlo as frustrações, os medos, as fobias, o stresse, as perturbações emocionais, etc. a que todos estávamos sujeitos, operacionais e não-operacionais... Não é pêra doce a guerra, não é fácil fazê-la e muito menos conduzir os homens que a fazem...
Também assisti a cenas de violência, para mim chocantes e gratuitas, por parte de oficiais, do quadro e milicianos, em que a vítima era sempre o Zé Soldado (o condutor, o transmissões, o apontador da bazuca, o quarteleiro, o básico)... Em geral, no fim das operações, no regresso aos quartéis, quando se fazia a descompressão das tensões acumuladas...
Esbofetear um homem em público, na parada, em formatura, perante todo um pelotão ou companhia, era a suprema humilhação... Pior ainda se havia, por parte da vítima e dos que lhe estavam mais próximos, a percepção da injustiça...Na nossa cultura, aceita-se que um pai bata num filho, mesmo já grande... Os líderes, para o poderem fazer, têm que ser gente de eleição, têm que ser os melhores de todos nós, assumidos, reconhecidos e aceites pelos seguidores ou subordinados... O que não era o caso de alguns dos nossos comandantes operacionais, do quadro ou milicianos (distinção que para o caso em apreço não interessa), que só se sabida impor "puxando dos galões" e "ameaçando com o RDM"...
Alguém me disse há tempos (mas já não recordo quem...) que terá havido em toda a guerra, no TO da Guiné, 14 casos de "ajustes de contas", de vinganças, de homens que mataram (ou feriram gravemente) os seus superiores hierárquicos, a quente (de cabeça quente, face a face) ou a frio (cobardemente, de costas)...
Uma tragédia dessas poderia ter acontecido com o Folhas. Achas que ele seria a mesma pessoa hoje ? Duvido... Hoss, deves sentir-te orgulhoso por, na altura, teres "travado" o impulso de morte que levou o Folhas a pegar na G3 e tentar matar o oficial em questão... (E podia tê-lo morto ou não)...
(Continua) (Comentário com mais de 4096 caracteres)
(Continuação)
Mais estranha, camarada Hoss, é a tua atitude, a seguir, ao querer fazer justiça pelas tuas próprias mãos no caso de ter havido uma participação contra o Folhas, que, felizmente, não houve...
Não condeno nem louvo a tua atitude, nem o posso fazer: estou só a tentar compreender as razões por que tu, mais três ou quatro camaradas, chegaram a ponderar a hipótese do assassínio, a sangue frio, na frente de combate, de um outro homem, que vestia a mesma farda e que falava a mesma língua, e que era vosso superior hierárquico... Não acredito que o fizessem, mesmo com tantas MG 42 juntas, manuseadas por mãos de mestres...
De qualquer modo, agradeço-te teres trazido, a público, este episódio que, julgo, não pode ser tomado como "regra geral"... E nem deve ser pensado ou abordado como "tema fracturante"... Se no nosso blogue somos todos gente crescida e não há tabus, tanto devemos poder discutir aqui, sem constrangimentos, os problemas disciplinares que havia tanto na tropa de elite como nas fileiras do PAIGC ou nas subunidades de recrutamento local (como a minha CCAÇ 12 ou o Pel Caç Nat 52, do Beja Santos).
Agora a questão que se põe é: como é que podemos ajudar o Folhas a ultrapassar (ou melhor: a resolver) esse conflito e a fazer as pazes com a família pára-quedista ?!...
Este camarada precisa de ser ajudado... Este camarada tem que ser recebido de novo, de abraços abertos, sem ressentimentos de parte a parte, pela família pára-quedista, em Tancos, no próximo convívio anual...
Os ex-páras que fazem parte da nossa Tabanca Grande (e já são alguns...), podem dar-lhe uma palavra de conforto, mesmo à distância, em público... Como acaba de fazer o Hoss, que foi expressamente a Taveiro, no concelho de Coimbra, visitar o Folhas e que escreveu este poste em sua homenagem.
Se o nosso blogue tem alguma valia, é também para ajudar a tirar estas pedras, pequenas pedras afinal, que ficaram nas nossas botas e que ainda nos magoam...(Algumas ainda magoam muito).
Um Alfa Bravo.
Luís Graça
O militarismo exacerbado e a incom_
petência,andaram muitas vezes de
mãos dadas e a ajudar a estas "mal formações"tinhamos o RDM.Desde:pri_
meiro cumprir,depois queixar-se(o
inferior,não pode participar do su_
perior e só com a sua autorização)
ou "Incutir no soldado o espírito da disciplina e do dever"mesmo de
forma coerciva.Neto e filho de
paramilitares,não fui para a tropa
totalmente bizonho,nem arvorado em
chico-esperto e com alguma leitura
em dia"Batalha de Dien Phu"Jean
Lartéguy;Hans Hellmut Kirst,etc.
Mesmo assim não resultou,fui corri_
do para o Contingente Geral.Castra_
ção psicológica e vexames,para nos
tornarmos aguerridos,não são comigo
Ensinar;adestrar a ser competente e
opreacional é outra coisa.Fui para
Moçambique com quase 23 anos.Lá
nunca fui voluntário,para coisa ne_
nhuma,mas fui escalado para muitas,
ao nivel do meu ex-CSM.É aqui que
entra o motivo deste meu comentá_
rio.O vexame ou o "tabefe" para
calar Esterismos e acessos de Pâni_
co.Por duas vezes tive que o fazer
a dois soldados como eu.Numa flage_
lação ao Destacamento,ás 11 horas
da noite, o nosso operador de rádio
entrou em pânico ao pedir apoio,não
dizia nada de concreto,tive que lhe dar dois"abanões"para se acal_
mar e falar com calma.Outra vez,nu_
ma patrulha ao nível de Companhia,
o Maia,bom rapaz e rigo trasmontano
a dada altura recusou levar a gra_
nada de Bazooka,que lhe competia por turno,visto ser mais que um Cu_
nhete a transportar.Dividiram-se as
granadas pela Companhia,até pelo
Capitão e rodava um pouco por todos
O pobre Maia cansado;com sede,achou
que não devia levar mais vez nenhu_
ma a granada,começou aos gritos no
meio do mato,os quais faziam eco a
quilómetros, com risco para todos
nós.Dei-lhe dois tabefes para o
chamar á realidade.Chorou abraçado a mim,estava farto e com saudades
dos seus,pobre Maia,quem não esta_
va? quem não tinha?.
Carlos Nabeiro-C.Caç.2357-ZOT-1968
-1970.Moçambique.
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