sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7132: Notas de leitura (158): Na Guiné com o P.A.I.G.C., de Georgette Emília (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2010:

Queridos amigos,
Almocei ontem com o Henriques da Silva e o Duarte Silva, emprestaram-me aí uns 10 quilos de papel, graças a eles tenho leituras infatigáveis para as próximas semanas.

Comecei por esta Georgette Emília que foi até à Guiné em tempos exaltantes, para ela e para os revolucionários. É despiciendo fazer comentários, parece-me. O essencial é juntar todos estes tijolos para deixarmos uma casa onde os historiadores encontrem os múltiplos depósitos da memória.

O Jaime Machado pede-me para eu levar uma encomenda para Bambadinca; o coronel Jales Moreira quer que eu tire fotografias ao cemitério de Bambadinca, parece que a Liga dos Combatentes pretende actuar.
Por favor, não se esqueçam que levo roupa e outras coisas essenciais, livros para oferecer.
Procurarei satisfazer o vosso desejo em levar lembranças para os entes queridos.

Um abraço do
Mário


Naqueles memoráveis primeiros meses da República da Guiné-Bissau

Beja Santos

Uma jornalista, devota da ditadura do proletariado, decide ir assistir aos primeiros meses da vida da República da Guiné-Bissau e escreveu um relato que concluiu em Novembro de 1974. As reportagens valem pelo que valem, o olhar de Georgette Emília é muito útil, à distância destes cerca de 36 anos. Ela vê e procura retratar uma gesta, algo que a reconcilia ou a consola depois das divisões profundas do marxismo. Di-lo abertamente, em jeito de introdução: “Parti para a Guiné para viver de perto a experiência de uma frente de batalha contra o imperialismo, convicta da crise que irá abalar as velhas estruturas de classe na Europa… na Guiné, a luta de libertação nacional é ao mesmo tempo uma revolução social anti-imperialista, o que torna impossível uma via neo-colonialista.

Portanto, para nós portugueses, a via africana para o socialismo revela-se uma experiência carregada de esperança” (“Na Guiné com o PAIGC”, por Georgette Emília, edição do autor, 1974).

Começa a sua viagem por Bissau, vê os últimos soldados portugueses a gastar as derradeiras reservas em dinheiro e a comer marisco. A fotografia de Amílcar Cabral é bem visível nas montras e nas paredes. Conversa com um jovem, ele está pronto a viver a revolução, está cheio de vontade para correr os riscos que correram os combatentes, a luta armada acabou mas a revolução continua. O jovem, de nome António dos Santos, fala cheio de vivacidade e vai dizendo alguns disparates nos entretantos: “O cerco feito pelo PAIGC com os armazéns do povo e, mesmo, a devastação da guerra, obrigaram os portugueses a importar todos os produtos para a alimentação. Vinham de Portugal a fruta, a hortaliça, a carne de porco, os frangos e a pescada congelada, a sardinha. O nosso povo que não habitava nas zonas libertadas, ou que não se encontrava retido nas aldeias estratégicas, fugiu em massa para as cidades”. António dos Santos tem sentimentos de cruzado: as mulheres estão a ser libertadas graças ao pensamento de Amílcar Cabral, nas zonas libertadas tinham os mesmos direitos que os homens; manda saudações aos revolucionários portugueses, também eles se libertarão da opressão e do fascismo.

A autora regista frases de desânimo dos comerciantes, despolitizados e desorientados. Depois assiste a uma sessão de esclarecimento onde se fala da justiça popular, do abastecimento e da vigilância revolucionária. E parte para o Gabu onde conhece Mamadou Dabou, comissário político do PAIGC. Ele diz-lhe logo nas boas vindas: “A nossa vitória deve-se ao sacrifício de milhares de vidas. Desde que nasci só conhecia a fome, o sofrimento, a opressão e a miséria. Decidi-me então pela luta partidária. Nós sabíamos que a salvação estava na vitória”. A autora aproveita para reflectir sobre os abanões que são necessários na sociedade portuguesa para que a revolução triunfe e recita um extenso e belo poema de Blaise Cendrars dedicado à mulher africana. O comissário político explica à visitante a nova organização social, a partir do comité de base em cada tabanca. A autora exulta: “Na ditadura do proletariado o povo é livre; tem sempre possibilidade de expressão através das organizações de massas. A burguesia enquanto tal, isto é, enquanto classe exploradora, é que não é livre. E do Gabu parte para Piche. Aqui Mamadou conta à jornalista que mandava todos os dias uma carta ao capitão a pedir que não saísse do quartel para não semear a morte entre o seu povo. E quando a guerra acabou, o capitão abraçou-o dizendo que aquelas cartas lhe tinham salvo a vida, mostrando-lhe como a guerra era injusta. A jornalista conhece Ansumane Mané, então um jovem comandante da base, que tinha destruído “tanques” na estrada entre Piche e Gabu. Depois refere os antigos funcionários do Estado português, os colaboradores do colonialismo e esclarece: “A táctica do PAIGC em relação à destruição do aparelho colonial consiste na formação de estruturas paralelas, pois havia levado a cabo uma experiência de administração colectiva através da criação de comités, o que desde logo excluía o tipo tradicional de funcionários públicos”.

Falando do administrador com quem almoça chama-lhe um cadáver adiado. A descrição que faz de Bafatá é bem curiosa: é uma pequena cidade província à beira do rio. O Geba corre arrastando uma longa cauda de nenúfares. É um rio largo e lento cujas águas parecem prender-se na rede nervosa das plantas aquáticas. A cidade desce de uma colina suave e o seu contorno é redondo. A proximidade da água profunda e espelhada e o verde dos matagais dão-lhe, apesar do calor, um ar fresco. As casas com varandins acolhedores, semelhantes aos de Trás-os-Montes, têm, contudo, uma bonomia quase francesa. Bafatá é elegante e inesperada como uma dama de fim de século deposta na savana africana.

A viagem prossegue de Bafatá até Mansoa. Param em Mansabá para descansar. Em Mansoa, são recebidos por António Borges, presidente do comité de Estado da região de Oio. Fala da sua luta no Morés ao lado de Osvaldo Vieira e Chico Té. Vão todos até um comício no Jugudul. No caminho, Borges explica à autora que o problema mais sério que tinha no momento era da prostituição infantil. À noite discutem a via guineense para o desenvolvimento socialista. E na manhã seguinte partem para Nhacra, aproveitando a autora para dissertar sobre a situação da mulher na Guiné.

Seguiram depois para Candjambari, temos novas reuniões políticas e comícios. Em Bissorã, há mensagens ameaçadoras. Alguém diz: “A nossa guerra só terminará quando todos os colonialistas saírem da nossa terra, assim como todos os africanos inimigos da nossa libertação e independência. Os antigos combatentes que tinham estado ao lado dos portugueses são vistos com comiseração. Um político do PAIGC comenta: “Muitos deles têm a saúde arruinada. Nós passámos durante a guerra as maiores privações, suportámos os maiores sacrifícios, mas temos hoje saúde e alegria. Eles ganharam muito dinheiro mas têm os pulmões rebentados pelo álcool e andam por aí a cair, sem terem encontrado uma razão para viver. Finalmente, em Candjambari, a autora percorre no antigo acampamento do PAIGC, é confrontada com o modo de organização durante a fase da luta armada. A interiorizar a epopeia que lhe fora dado ver, despede-se com melancolia: “Escrevo-vos de um país longínquo. Um país de homens cor de canela, cor de areia, cor da noite, cor de marfim. Vou de novo partir. Inconscientemente no meu bloco de notas eu escrevo o teu nome – FRATERNIDADE”.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7105: Notas de leitura (157): O P.A.I.G.C. e o futuro: um olhar transversal, de Ricardo Godinho Gomes (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Beja Santos, de facto parece, como dizes, "despiciendo fazer comentários", sobre o entusiasmo desta jornalista.

Mas houve tantos estusiastas, principalmente jovens, com aqueles novos paises socialistas, que não resisto a referir aquela que para mim foi a figura que mais caracteriza esses "tempos exaltantes": SITA VALES.

Como Sita Vales, houve muitos anónimos em Angola e Moçambique que não resistiram ao entusiasmo do momento...e alguns ainda sobreviveram para contar.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Entusiasmos a parte...nao ha historia de paises ou estados... imunes a tais turbulencias e idealismos...

O conturbado capitulo da implantacao da republica portuguesa,cujo centenario por sinal se assinalou recentemente(com um regicidio de permeio)eh prova cabal disso !

Que venha a bonanca depois da tempestade!

Sou pois de uma geracao de guineenses que prefere pensar e idealizar uma Guine... positiva.

Afinal Djito Tem

Nelson Herbert
Washington DC,USA

Ps: Thanks Beja Santos por mais esta referencia bibliografica, que confesso desconhecia!

Anónimo disse...

Entusiasmos a parte...nao ha historia de paises ou estados... imune a tais turbulencias e idealismos...

O conturbado capitulo da implantacao da republica portuguesa,cujo centenario por sinal se assinalou recentemente(com um regicidio de permeio)eh prova cabal disso !

Que venha a bonanca depois da tempestade!

Sou pois de uma geracao de guineenses que prefere pensar e idealizar uma Guine... positiva.

Afinal Djito Tem

Nelson Herbert
Washington DC,USA

Ps: Thanks Beja Santos por mais esta referencia bibliografica, que confesso desconhecia! Uma boa estada por essa nossa Guine !