quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12503: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (13): A Economia da Guiné - A Feira de Amostras de 1971

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro) 
 ex-Cap Mil de Artilharia

13 - A ECONOMIA DA GUINÉ

A Feira de Amostras de 1971

Para um observador pouco informado, como eu era, sobre a economia da Guiné, não foi difícil constatar que, nos princípios dos anos setenta, o território possuía muito poucas indústrias.
Os principais estabelecimentos industriais situavam-se em Bissau e resumiam-se às actividades de descasque de arroz, extracção de óleos vegetais, fabrico de sabão, gelo, refrigerantes e construção naval.

Em Farim, principalmente, também a actividade de serração de madeira tinha algum significado.

Era a agricultura a base económica da Guiné. E a sua prática desenvolvia-se segundo dois tipos:
- Sedentária, de bolanha, no litoral, dedicada principalmente à cultura do arroz.
- A de mato, com queimadas e rotação de culturas, no interior, cultivando-se mancarra (amendoim), milho, mandioca, cana sacarina, feijão....

A Guiné, à excepção dos terrenos de Boé, dispõe, do ponto de vista agrícola, de solos ricos, que oferecem condições para a intensificação das culturas tradicionais e outras, porventura mais rentáveis como, por exemplo, a cultura intensiva de banana, de acordo com Vasco Fortuna (Estruturas económicas da Guiné).

No aspecto da exploração das florestas, trata-se de uma actividade de futuro pois existem na Guiné espécies valiosas em matas relativamente homogéneas.
A exportação de madeiras, como o bissilão, o pau-sangue, o pau-preto, o pau-ferro e outros poderá contribuir no futuro para a melhoria da balança comercial do território.

De acordo com Celes Alves, a criação de gado tinha um papel secundário, embora a criação de gado bovino fosse a de maior importância, seguindo-se-lhe o gado caprino, suíno, ovino e asinino.

No que se refere à actividade piscatória, alguns povos do litoral dedicam-se a essa actividade, como os Manjacos e os Bijagós, mas de um modo artesanal.
Os mares da Guiné encerram, no entanto, um bom potencial no capítulo da pesca.

Quanto ao subsolo, a Guiné também não é rica em minérios. Apenas as bauxites e a ilmenite são susceptíveis de exploração.

No mar alto há perspectivas da existência de petróleo.

Nos primeiros anos de setenta a agricultura era a fonte principal da riqueza da Guiné, embora muito prejudicada devido ao conflito armado existente no território.
O arroz (base da alimentação das populações guineenses) cultivava-se nos terrenos mais baixos e nas margens dos canais de fácil irrigação e a sua produção chegou a ser excedentária, antes da guerra, fazendo parte dos produtos exportados tal como a mancarra (amendoim), o coconote, couros, madeira, óleo de palma, cera e borracha.

No tempo em que vivi na Guiné, Bissau era uma cidade com uma actividade comercial significativa.
O território importava quase tudo, pois as suas indústrias eram praticamente inexistentes. A Guiné importava: tecidos, tabaco, vinhos e cerveja, gasolina, ferro e aço, óleos e combustíveis, cimentos, medicamentos, ferramentas, maquinismos e todos os bens de consumo e apetrechos que as sociedades desenvolvidas fabricam.
Este comércio era feito com o interior, principalmente através dos cursos de água como os rios Cacheu, Mansoa, Geba e Cacine e ao longo da ria de Bissau, embora também se pudesse efectuar por estradas principalmente na época seca, antes da guerra.
Também existiam algumas ligações aéreas entre a capital e o interior.

Bissau, com o exterior, tinha ligações aéreas e marítimas com Cabo Verde e Portugal continental.

No espaço de dois anos que permaneci em Bissau pudemos satisfazer todas as necessidades a que eu e a minha própria família estávamos habituados.
As casas comerciais de Bissau eram abastecidas regularmente praticamente de tudo.

Como a água de consumo público muitas vezes se não apresentava nas melhores condições, sendo aconselhável que, além de filtrada, fosse fervida, em nossa casa tomámos uma atitude radical: nunca a utilizámos. Saciámos a nossa sede com água do Luso, que adquiria aos garrafões sempre que um barco chegava da metrópole e água Vichy que sempre se encontrava com facilidade, possivelmente vinda do Senegal, país francófono, vizinho da Guiné.
Para juntar ao whisky, a água que usávamos era também a francesa Perrier.

O comércio, como disse, era significativo em Bissau.
Na parte baixa da cidade as casas comerciais proliferavam e algumas delas eram propriedade de libaneses, como a de Taufik Saad e a de Azis Harfouche.

Medalha comemorativa da II Feira de Amostras da Guiné - 1971

No mês de Maio de 1971 realizou-se a II Feira de Amostras de Bissau, com trinta stands expositores.
Além da amostragem das actividades económicas, onde era possível rapidamente conhecer os artigos comerciáveis em Bissau e os seus preços, também no decorrer da II Feira foi organizado um programa de recreio e cultura, sendo divulgados o artesanato e o folclore da Guiné.
Durante cerca de vinte dias decorreu o certame que se realizou defronte do Palácio do Governo, na Praça na altura designada por Praça do Império.

Houve uma exposição de arte, diversas sessões de folclore, variedades, conjuntos musicais, uma tarde de juventude e uma noite das Forças Armadas.

Os Serviços públicos também expuseram as suas actividades com a divulgação de:
- Realização de cursos;
- Planeamento de obras futuras;
- Dados estatísticos.

E as Entidades Administrativas tais como Administrações de Bafatá, Bijagós, Bissau, Bolama, Cacheu, Catió, Farim, Fulacunda, Gabú, Mansoa e S. Domingos apresentaram vários aspectos das suas actividades, dos seus usos e costumes e do artesanato das áreas que administravam.

Pude aperceber-me na II Feira de Amostras de Bissau, da actividade artesanal do povo daquele território.
Constatei que os Manjacos e os Balantas sobressaíam na olaria; os Brames, os Fulas, os Mandingas e os Nalus na cestaria; os Manjacos e os Papeis na tecelagem; os Fulas e os Mandingas em ourivesaria e trabalhos de pele e couro.

Os Fulas eram famosos também na feitura de chinelos, almofadas, bolsas, sacolas, bainhas de alforges e de punhais, guarnição e vasilhas, selins e outras peças de couro.

Eu próprio adquiri alguns punhais Fulas, uma espada Mandinga, cestinhos Bijagós, uma colecção de cachimbos Bijagós, pulseiras e anéis de Bafatá, uma bilha de Catequese, pinguelins, rodas de ráfia, um tambor e um corá, além de algumas peças esculturais em pau-preto.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12469: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (12): Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós

5 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, "mano velho" Magro, por esta preciosa informação sobre a realidade económica da Guiné que conhecemos... Na verdade, havia potencialidades que, infelizmente, não se soube aproveitar e desenvolver antes e depois da independência...

Hélder Valério disse...

Caro camarada Fernando Valente

Interessante relato.
De facto também cheguei a ter conversas com outros camaradas sobre as potencialidades da Guiné caso obtivesse a sua independência, o que teria em termos de agricultura, pecuária, floresta, pesca, possibilidades de indústria, etc e as conversas andavam à volta do que relatas.

Dizes que no tempo que viveste em Bissau, que foi o meu tempo, pois vivi lá de Maio de 71 a Novembro de 72, a cidade tinha uma actividade comercial intensa, É verdade, sim senhor, pese embora o facto de estar lá por motivos de guerra, a verdade é que a vida era mais intensa que em muitas pequenas cidades e vilas do Portugal continental de então. Daí não me admirar dizeres que "No espaço de dois anos que permaneci em Bissau pudemos satisfazer todas as necessidades a que eu e a minha própria família estávamos habituados.", coisa que eu sei também por conversas com um amigo que teve a família por lá, com a esposa a trabalhar no Pintosinho.

Referes a II Feira de Amostras de Bissau, em Maio de 1971. Tive pena de não poder apreciar. Estava em Piche e só no final de Maio vim para Bissau.

No teu relato sobre as madeiras que podem constituir uma fonte de riqueza, contribuindo para a melhoria da balança comercial, pois parece que 'outros' também já deram por isso e com a cumplicidade e/ou a incapacidade dos 'governantes' lá vão prosseguindo uma ruinosa política de saque e de rapina desses bens, segundo notícias que nos vão chegando sobre a actuação das 'ajudas desinteressadas' chinesas...

Abraço
Hélder S.


Anónimo disse...

Caros amigos e camaradas de armas,

Sem tirar uma vírgula ao que ao Luís Graça e o Hélder disseram, julgo que deveríamos dividir a Guiné em polos bem diferenciados.

Um, o que conhecemos, no qual muito dificilmente se poderia desenvolver mais aquela antiga Província, a dos palcos da guerra.

Depois daquela e da independência da Guiné, pelas notícias que hoje nos chegam daquela terra mártir, muito do bom que deixámos foi destruído.

Por último, se me permitem, deixo algumas perguntas que julgo serem pertinentes.

Qual o grau de desenvolvimento económico da Guiné antes da guerra?

Como se comparava aquele desenvolvimento com muitas das zonas do interior de Portugal ou dos Açores e da Madeira?

Tirando o acesso ao ensino e saúde, ainda muito precário nas zonas referidas, até que ponto os costumes e as tradições seculares dos povos tinham a ver com o diferencial existente, se é que algum?

Bissau e o resto,a Guiné do nosso tempo, eram dois mundos bem diferenciados.

A cidade, cujo desenvolvimento era notável, fosse ele económico ou cultural, devia a sua pujança primária ao fluxo de militares, aliás muito bem aproveitado pelas autoridades citadinas.

Quanto ao outro mundo guineense, o que ficava para além das fronteiras de Bissau, só mesmo para quem souber responder às perguntas que coloquei.

Um grande abraço,
José

Anónimo disse...

Desculpem. O comentário anterior foi escrito por mim, José Câmara.

Antº Rosinha disse...

Na África subsariana apenas a Rodésia e África do Sul foram verdadeiramente exploradas riquezas de uma maneira intensiva.

Se nós portugas tivessemos aquela capacidade e vocação para "explorar" como aqueles brancos carcamanos boeres, aí não eramos nós é porque eram outros.

Muita gente não saberá, mas antes da guerra, todas os produtos como amendoins, oleo de palma e troncos de árvores seculares com bitolas mínimas, não como agora que já não passam de grossuras de eucaliptos, mandioca, café, sisal,cera e outros, eram embarcados nos portos desde a Beira em Moçambique, até Hamburgo, passando também por Leixões e Bissau evidentemente.

Mas era à nossa maneira, (modesta) que, segundo a geração de Amílcar Cabral, quando fossem independentes desmultiplicavam-se as riquezas, porque o povo ia trabalhar com gosto.

As coisas são tão complicadas que até aqui no rectângulo metemos os pés pelas mãos.

Quanto mais na Madeira.

Claro que eu como retornado, reacionário, e colonialista, não é que fossemos mais espertos, mas sabiamos que ia ser tudo muito mau, mas não podiamos falar.

Mas a propósito de riquezas, talvez os guineenses sejam mais felizes que os "Reis Midas" da África do Sul, porque o ouro é tanto, que ninguém jamais saberá o que está para lá.