domingo, 22 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12487: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (7): A minha ida para Bissau


1. Em mensagem de 17 de Dezembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o sétimo episódio da sua série Fragmentos de Memórias.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

7 - A minha ida para Bissau

O ter de afastar-me e goss goss, da minha CCAÇ 1422, passados que tinham sido 11 meses após a chegada à Guiné, não foi nada fácil.
Havia criado amizades sinceras, dera a minha também, mas motivos poderosíssimos não permitiam que por ali devesse ficar, salvo se resolvesse abandalhar-me e esquecer toda a minha educação. Daí que me tenha proposto, ir combater para Bissau já que havia pedidos indicando que cada Companhia Operacional deveria "deixar" dois elementos com experiência, oferecerem-se para tal. Estávamos em finais de Junho de 1966, após testes fui admitido, só que houve quem decidisse acabar-me com a mama e vai daí... abdicaram dos meus préstimos.

Mandaram-me aguardar na CCS/QG, que novas ordens receberia.
Desconfio que me não quiseram, porque não convinha que eu ganhasse já a guerra, sabendo-se que na Metrópole, milhares de mancebos ansiavam para vir conhecer este pedacinho d'África.
E óspois... acabei mesmo colocado na cidade só que na chefia duma Secção chata com'ó caraças.

Cumpri mais do que se me era exigido mas com a plena consciência de que teria de fazer-se.
Sofri que nem um cão abandonado e assim me senti com a falta da sã camaradagem do mato... sem o uso da G3 agora substituída pela Walter 9mm... pela falta da adrenalina diária... e até pela saudade dos combates onde não atirava contra, tão somente a meu favor e dos camaradas ao lado.

Nas tarefas quotidianas, mais fáceis, competia-me zelar pelas, beleza e limpeza, do cemitério.
As difíceis... desde o reconhecimento de camaradas falecidos, os contactos com Lisboa, a organização dos processos fúnebres, a entrega dos corpos nos embarques para a Metrópole.
Era pesaroso, complicado demais, mas fez-se à custa de quebrar com os sentimentos tomando uns cálices inebriantes, que me conduziram quase aos alcoólicos anónimos mas doutra forma não poderia exercer a função.


Conheci novas pessoas nas vidas civil e militar, alguns... bêbados com'a mim.
A urbe continuava ausente do conflito e com pouco interesse do que se passava para além da sua fronteira e pior... ausente no respeito devido aos combatentes, ali presentes forçadamente e por demasiado tempo, lutando por causas que não eram suas, mas cumprindo com o derramamento do seu sangue... com muito suor... lágrimas.
Doía-me ver esse desapego civil embora as excepções também existissem.
Só nós militares, mantínhamos uma atitude generosa, não deixando transparecer o que nos ia na alma.

Com instalações soberbas em Sta. Luzia, resolvi em comunhão de despesas com dois elementos do Conjunto das Forças Armadas, alugar um apartamento ali na baixa de Bissau, por cima do Pintosinho e bem perto do cais e da Amura. Vista para o Geba, limpeza a tudo bi-semanal, lavagem da roupa e etc, etc, incluídas no preço, qu'até nem era caro: cem pesos a cada um e por mês.

Quando liberto, acidentalmente, do cargo qu'agora desempenhava, ali estava eu olhando a azáfama portuária.
Apercebi-me então de coisas deveras estranhas e que me deixaram estupefacto, como por exemplo o verificar que os trabalhadores se desunhavam para conseguirem ser dos que podiam transportar as sacas de farinha... é que ficavam brancos !!!

E as ostras, pàzinhos? Quem as não comeu?
Descobertas que foram por mim, degluti-as senão todos os dias... quase.
Abertas ou fechadas, aquilo foi cá uma garganeirice !!! Mas que culpa tinha eu de gostar manning? E depois... ainda não houvera provado nada semelhante que lá no rio Sôr não tínhamos.
Foi um regabofe à moda antiga ou com limão ou sem ele, e regadas convenientemente com tinto gelado... verde e carrascudo.

Até ao jantar na messe, não comia mais nada. Para aí me deslocava em transporte particular (um mini-moke) posto ao meu serviço e as horas para trabalhar eram conforme e consoante.
Ficava depois na minha 1ª REP/QG a corrigir e aperfeiçoar os processos pendentes e, quando não e porque tinha livre acesso via passe em meu nome, nos navios que transportavam de e para a Guiné, as nossas tropas, aproveitava também algumas das benesses oferecidas, bem como a permanência no bar sempre aberto.
Contactei in loco com quem viera prá festa e com quem saíra do Inferno.
Para os primeiros tive de mostrar alguma complacência, calando-me, pois que vinham cheios de força ingénua, igual àquela com que eu mesmo chegara... nada de temores... com elevado moral, salvo num ou outro caso isolados.

Havia ENTÃO, uma juventude Portuguesa para quem as palavras HONRA E DEVER não eram palavras vãs.
Os mariquinhas pé-de-salsa, fugiam para França.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12453: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (6): O Higino Arrozeiro e as lições de francês

3 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Veríssimo.
Este texto é uma "aguarela", pintada com diversas cores, algumas são cores de licores, onde sempre entra a boa disposição, que é uma vertente dos teus escritos, que na altura eu, quando vinha à capital da província, "militar dos velhos, um pouco abandalhado", sempre de cigarro na boca, devorava!.
Gostei.
Tony Borie.

admor disse...

Não há dúvida é Veríssimo no seu melhor.

A vida foi dura, mas boa. Só para aqueles que a perderam é que foi madrasta.

Se pensarmos bem, hoje continua assim é na terra é no mar é no ar tantas vidas se perderam.

Mas a vida é isso mesmo.

Um grande abraço paa todos.

Adriamo Moreira

Hélder Valério disse...

Caro amigo Veríssimo

Sabes que sou um 'seguidor' destas tuas crónicas. Fui atraído pelo título das iniciais, sobre serem os 'melhores 40 meses da tua vida'.

Neste teu relato ressaltam várias coisas:
- o confessado apego aos 'teus homens', dos quais tiveste dificuldade em te separar ao ponto de te sentires como um cão abandonado, com a falta da sã camaradagem do mato;
- a confessada falta de adrenalina diária proporcionada pelos combates, pela ansiedade provocada pelas operações, sendo que, como dizes, "não atiravas contra, tão somente a teu favor e dos camaradas do lado";
- as novas tarefas que te deram em Bissau, as 'mais fáceis' como sejam as nada macabras de cuidar do cemitério e 'as difíceis' tratando-se de reconhecer camaradas falecidos, em todas as circunstâncias e em todos os estados, fazer os contactos com Lisboa e 'despachar' os mortos;
- a revelação dos expedientes que usaste para levar a bom porto essas tarefas, ficando quase sócio dos 'alcoólicos nada anónimos';
- a aparente contradição entre o que se passava de vida 'agitada' no mato e 'indiferença' da vida em Bissau;
- a confissão do teu lado contemplativo com a observação que fazias dos trabalhos no cais, no Geba, na Amura;
- e, como não podia deixar de ser, a referência ao prato de que todos nos lembramos com indisfarçada saudade, as sempre relembradas ostras.

Ora bem, digo-te desde já que a tarefa que te calhou em Bissau não terá sido nada, mas mesmo nada, agradável. Sinto que qualquer um de nós, com um mínimo de sentimentos, teria dificuldade em desempenhá-las sem afectação. Tenho também presente alguns dos relatos que um outro camarada também por aqui já deixou testemunho, embora noutras funções, o nosso "amanuense, porra!", para se sentir a injustiça, pelo menos para alguns, de que em Bissau era só 'ar condicionado'....

Hoje percebe-se melhor como é que conseguiste 'dar a volta por cima' relativamente a tantos problemas e amargos de boca com que tiveste de lidar e que é o humor que empregas nos teus escritos, nos teus ditos e, calculo, no teu dia-a-dia.

Abraços
Hélder Sousa