quinta-feira, 27 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24506: Contos com Mural ao Fundo (Luís Graça) (6): O "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) Parte

 


O "milagre" do bacalhau do Natal com pencas (ou "tronchudas"). Fotograma de vídeo de Luís Graça (2013).

Fonte: Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 30 dxe dezembro de  2013 >  nossas comidinhas (7): O bacalhau com pencas. da ceia de Natal


Segunda e última parte do texto elaborado para a  série literária da autoria do nosso editor Luís Graça, "Contos c0m Mural ao Fundo"  (*)


O  "Felgueiras", de 1º cabo hortelão a comendador (1943-2017) - II (e última) parte

Foi aqui, em pleno "chão manjaco", que o nosso cabo descobriu que tinha jeito para os negócios. E mais: que tinha a estrelinha da sorte a brilhar no seu céu… Um ano depois, voltou a Felgueiras e a Amarante, as suas "duas terras natais".

Vir de férias à metrópole era um luxo só reservado a alguns, aos oficiais e sargentos, milicianos ou do quadro. Raros eram as praças (soldados e cabos) que podiam desembolsar as seis notas de conto que custava a viagem de ida e volta na TAP. Alguns, coitados, faziam das tripas coração, só para poder estar um mês com a família, sendo já casados e com filhos (que mal conheciam ou não conheciam de todo).

Numa região com grande tradição de emigrantes de torna-viagem (Brasil, França…), o "Felgueiras" fez questão de voltar exibindo alguns sinais exteriores de riqueza… Até um carro alugou, no Porto, só para impressionar a família e os amigos que cá deixara. (Poucos, de resto, a maior parte deles espalharam-se pelo mundo fora: uns na Invicta ou em Lisboa, outros na França, outros ainda na guerra do ultramar).

− Sorte ao jogo, azar no amor?!... Vamos lá testar a roleta da sorte…

De há muito que o "Felgueiras" tinha uma paixão, "assolapada", não correspondida, por um antiga colega do colégio de Amarante, a "morgadinha". A rapariga pertencia a uma família com pretensões a ter "origem fidalga"… Fizera o antigo 5.º ano do liceu e o melhor que arranjou, por ali perto, foi um emprego na Câmara Municipal, como escriturária administrativa.

Durante o primeiro ano de comissão, o "Felgueiras" e ela trocaram algumas cartas e aerogramas, mas sempre na condição de "amigos, vizinhos e antigos condiscípulos"… Do colégio ficaram, de resto,  algumas amizades comuns. Não se namoravam, mas ela também teria um fraquinho por ele.  Os pais dela opunham-se, e tinham outros planos para a rapariga, que era filha única: ao que parece, o eleito era um professor primário, que andara a estudar para padre, e que também estava na tropa, em Moçambique, como alferes miliciano. Seguramente, um melhor partido do que "o filho do rendeiro da Lixa"…

Os pais da rapariga não tinham, alegadamente, "dinheiro para mandar cantar um cego" e, muito menos, para mandar restaurar a arruinada fachada da casa, "com brasão", onde viviam, nos arredores de Amarante, herança de um tio-bisavô, cónego da Sé de Braga.

O filho do rendeiro, operário da Tabopan, não era, na verdade, nessa época, um "bom partido", pelo que o "Felgueiras" voltou para a Guiné com um "amargo de boca"…

Convencido de que o dinheiro pode "comprar tudo (ou quase tudo), até o amor", acabada a comissão, o "Felgueiras" voltou com uma malota cheia de notas ("escudos", legítimos, da metrópole, em vez dos "pesos", o patacão, sujo, sebento, da Guiné, trocados lá no Banco Nacional Ultramarino e na "candonga", nos comerciantes de Bissau que cobravam uma taxa de 10%).

Depositou a malota aos pés da rapariga e pediu-a aos pais em casamento, assim, de chofre, à bruta, sem mais cerimónias, "sem o romantismo que se via nas fitas do cinema" (sic)... Os "fidalgotes" nunca tinham visto na vida tanto nota de banco, em maços separados, atados por uma fita… Até desconfiaram que fosse produto de algum assalto…

Estranhamente, a rapariga, a "morgadinha",  levantou-se, lívida, sem pinga de sangue, para logo a seguir correr para o quarto, lavada em lágrimas, num pranto… Os pais esboçaram um pedido de desculpa, mais embaraçados e envergonhados que o pretendente à mão da filha. 

A partir deste dia, o "Felgueiras" esqueceu, para sempre, a sua eleita do coração…  

No dia seguinte, rescindiu o contrato de trabalho que ainda o ligava à Tabopan, e decidiu comprar um bilhete da TAP para visitar Luanda, onde tinha um irmão estabelecido desde que terminara a tropa em 1963.

– Um homem das Arábias, o nosso "Felgueiras" – conclui eu.

− Das Arábias, não, um homem, sim, das Áfricas! – emendou o Arlindo.  
 Mas partiu para Angola com o coração destroçado.

− Males de amores não são fáceis de curar! – comentei eu.

Ex-furriel, camarada do "Felgueiras", maquinista da CP reformado, pai do Jorge, meu vizinho do Marco de Canaveses, voltei a encontrá-lo, ao Arlindo, depois do casamento do filho, mais duas ou três vezes. E foi através dele que fui sabendo mais histórias do "Felgueiras" que, segundo os meus cálculos, terá regressado da Guiné em princípios de janeiro de 1969…

Sabemos que foi ter com um dos irmãos, o mais velho, o Tó, que se radicara em Angola: fora dos primeiros militares a ir para lá, em meados de 1961, tendo sido um dos bravos da Operação Pedra Verde. Em finais de 1963, terá rumado para a Lunda, e andado metido com "garimpeiros". Depois acabaria  por abrir um pequeno restaurante em Luanda, lá na Mutamba, na parte baixa da cidade. 

As coisas melhoraram quando o irmão mais novo, o "Felgueiras",  se tornou sócio. Trouxe dinheiro fresco e sobretudo o tal "jeito para o negócio", talento que tinha descoberto na região do Cacheu, na Guiné. 

O início da década de 1970, antes da crise petrolífera de 1973, foi ouro sobre azul para quem tinha "porta aberta" em Luanda. O "dinheiro sujo" da guerra era ali "branqueado". O "ventre de Luanda" regurgitava, os "comes & bebes", a "diversão noturna" e a "indústria do sexo" deram muito "cumbú" (dinheiro, em calão de hoje) a ganhar a muita gente. Havia até um restaurante muito  conhecido, o "Floresta", que servia sardinhas assadas de Peniche acabadas de chegar do avião da TAP... Enfim, pequenos luxos que o "boom" económico de Angola permitia a alguns, civis e militares...

Inesperadamente, em princípios de 1973, seis meses antes da crise, o "Felgueiras" vendeu a sua quota ao "cota" do irmão Tó, just in time, na hora certa. Parece que adivinhava que o mundo ía ficar louco e que nada voltaria a ser como dantes... Alegava que "queria correr mundo e encontrar a futura mãe dos seus filhos"...

Em troca terá recebido do mano velho um saquinho de "vidrinhos", guardados no fundo de um bau, desde o tempo da Lunda, como uma espécie de pé de meia. O "cota" insistiu que estava ali uma pequena fortuna, mas ele nunca tentara sequer trocar as "pedrinhas" por dinheiro vivo. A Diamang, dizia-se, tinha um braço comprido e o contrabando de diamantes (a "camanga", em bom angolês...) era severamente reprimido. Era um Estado dentro de outro Estado, justificava-se o "cota", seguramente menos atiradiço (e "com mais escrúpulos"...) que o "caçula" da família.

Por razões óbvias, por se tratar de um assunto "delicado, íntimo", eu nunca puxei a conversa para esse lado, das poucas vezes em que ainda estive (ou melhor, falei ao telefone) com o "Felgueiras", nestes últimos anos, depois do casamento do Jorge e da Clara. Nunca saberei, pois, como é que ele conseguiu eventualmente aumentar a sua conta bancária (e o seu património), com o valor de um saquinho de "vidrinhos" da Lunda. Mesmo para o Arlindo, era uma "assunto-tabu".

− Por favor, camarada, quando voltares a estar (ou falar) com ele, nunca toques na história dos "vidrinhos"... Ele ficaria muito aborrecido, se não mesmo melindrado ou até enfurecido... Se há coisas de que ele não gosta de falar, é disso e da rede bombista de 1975...

Quando conheci o "Felgueiras", ele tinha um passado de "empresário de sucesso", acionista do BPN ("pequeno accionista", emendou ele), e chegara a ser inclusive uma "figura grada" da política local e regional. Recordo de me ter confidenciado:

− Nunca fui do reviralho, se é isso que queres saber. Antes do 25 de Abril não me interessava por política. Tocava a minha vidinha… No dia 26 de Abril, apanhei o comboio da democracia, como muito boa gente. E até viajei em 1.ª classe. Fui dos primeiros a ter 'cartão partidário'...

− O "abre-te, Sésamo" do novo regime − ironizei eu... mas julgo que ele não percebeu a piada.

Numa região com grande tradição de caciquismo, é fácil, para quem tem o poder (económico e/ou político), tornar-se cacique. O "Felgueiras" não gostava da palavra... Como também não gostava nada de falar desses tempos nem da sua "pública e notória" participação nos acontecimentos do "verão quente de 75". (Dizia-se, à boca pequena, que também teria chegado a financiar algumas atividades contra os "comunas", o mesmo era dizer, que teria feito parte da "rede bombista" do MDLP, o que nunca foi comprovado...)

Considerava-se, antes de mais, "um português, patriota" (...), "com o coração talvez mais à esquerda e a razão seguramente mais à direita" (...), "mas hoje afastado das lides político-partidárias" (...) "onde quem manda é a canalha, que nunca foi à tropa e muito menos à guerra".  Ou citou-me nomes de alguns conhecidos ou alegados desertores...

− Limito-me a ter as quotas em dia… Mas já ninguém me escreve, ou telefona, pede conselho, convida ou visita. Parece que tenho lepra...

Começou, "modestissimamente" (sic), como autarca, presidente de uma junta de freguesia onde tinha um grande estaleiro e já dava trabalho a um "pelotão de gente". Ajudou o partido a ganhar as eleições municipais num dos concelhos vizinhos. Foi eleito vereador municipal, e chegou inclusive a substituir, por uns tempos, o seu grande amigo e correligionário que iria depois ficar à frente dos destinos do município. 

"Os maiorais da distrital do Porto" chegaram a sondá-lo para aceitar um lugar, elegível, nas listas do partido, como candidato à Assembleia da República, mas ele recusou, com orgulho e desprezo:

− Lisboa ?!... Nem pensar!

O que não o impediu de chegar a a comendador, distinção que ele aceitaria de bom grado, anos mais tarde, das mãos do Presidente da República que ele "ajudou a eleger" (sic)...

Mas, abreviando a sua história como empresário (e depois comendador da Ordem de Mérito): "tocou os seus negócios, alargou o seu estaleiro de construção e obras públicas", ganhou uma fortuna com os contratos de empreitada por adjudicação direta, "fez estradões, pontes, escolas, creches, lares de idosos, campos de futebol, redes de água e saneamento, rotundas, repuxos, viadutos, túneis, e até um cemitério e um quartel de bombeiros"…

− Levei o progresso a quase todo o lado, aqui no Vale do Tâmega e n0 Vale do Sousa, em vários concelhos... Ganhei e dei a ganhar muito graveto. Aliás, este sempre foi o meu lema de vida, ganhar e dar a ganhar, e depois ser grato e estimar sempre quem te quer bem… Perdi dinheiro, isso, sim, e muito, com o túnel do Marão. Veio a crise, vieram os tubarões do fisco e da segurança social, fechei a empresa, mandei mais de 100 homens para o desemprego, dezenas de máquinas e camiões foram parar à sucata… Mas estou vivo, graças a Deus!

− Lamento imenso, afinal foi uma vida de trabalho... E o futebol?

− Ainda fui tentado, no início dos anos 90, nos meus anos de ouro, a meter-me no futebol. Por vaidade, ou por influência de falsos amigos, bajuladores, que gostam de te oferecer presentes envenenados.

− Mas era a tua "coroa de glória", não!?...

− Nem pensar, percebi logo que aquilo era um sorvedouro de dinheiro e um ninho de víboras… O futebol, camarada, é uma amante cara!... E às tantas, deixas de ter sossego, vida privada e corres o risco de teres de recorrer ao teu mealheiro para pagar os ordenados ou os prémios e as avenças dos técnicos e dos jogadores. Hoje é tudo uma canalha, essa rapaziada que gira à volta da bola… E já há não amor à camisola!... Como não há amor à Pátria!... Enfim, felizmente o futebol foi sol de pouca dura...

− E muita ingratidão também, não ?!

− Um gajo passa facilmente de bestial a besta. O povo hoje é ingrato. Tanto te põem-te no pedestal, erguem-te uma estátua, como no ano seguinte já estão a apear-te… Vê o que se passa com o homem da tua terra,  a quem o Marco tanto deve, perdeu as eleições, e já querem tirar-lhe o nome do estádio e da avenida principal… Ingratidão, é um dos nossos piores defeitos, podes escrever aí.

− Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o mesmo que limpou o sebo ao Zé Pequeno, na Lixa, tanto quanto sei pelos antigos − apressou-se a complementar o "Felgueiras".

 ... Sim, sim, e  lhe cortou a língua, com uma tesoura, por traição, aqui mesmo, a  Lixa!...− acrescentei eu.

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da minha terra.

− Na nossa terra, ele andou por aqui, entre montes e vales, Penafiel, Lousada, Marco, Baião, Felgueiras... há mais de 150 anos!... Aliás, o seu fantasma ainda anda por lá, pelo Carrapatelo, por Montedeiras, pelas faldas do Marão...

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco, de quem o Zé do Telhado foi vizinho, amigo e guarda-costas, na Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860/61... E, claro, fez dele um herói romântico...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam) o "padrinho"… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Muitos não os conheço, quando me vêm (ou vinham) cumprimentar, à moda antiga: "Sua benção, padrinho!"...  

Padrinho...?!

− Sim, padrinho, tenho muitos afilhados, de batismo, crisma, casamento. E, no bom tempo, quando eu ainda mandava qualquer coisinha, meti muita cunha para muito boa gente, a começar pelos que tinham mais mérito e necessidades, para empregos nas autarquias, nas empresas, na banca, nas escolas, nos centros de dia, nos lares de idosos, eu sei lá. Até na tropa, quando ainda havia serviço militar obrigatório… Até ao bispo cheguei a ir...

− Sem olhar a quem?!

− Sim, podes crer, sem olhar a quem!... As pessoas também fazem o favor de serem minhas amigas. E eu não me faço rogado quando me convidam para ser padrinho de casamento. Ainda para mais quando o pedido vem de um antigo camarada da Guiné… Neste caso, não foi um pedido, foi uma ordem do amigo e camarada Arlindo!

− Sei que ainda voltaste à Guiné…

− Sim, há uns largos anos atrás, para "matar saudades". Fui com malta de uma ONGD, com trabalho realizado no setor de Canchungo, e para a qual eu fazia as minhas doações, em géneros e em dinheiro. Levaram um contentor com vestuário, material escolar, livros, mobiliário… Havia (não sei se ainda há) uma missão católica que fazia a distribuição. Mas, confesso, fiquei triste com o que vi...

O "Felgueiras" voltou, de facto, aos sítios por onde andara entre 1966 e 1968… Mas aí teve uma "experiência desagradável"… Uma mulher, na casa dos seus quarenta, abeirou-se do jipe dele e gritou-lhe: 

Tuga, tu és o meu pai!

Na realidade, era filha de uma mulher manjaca, cristã, com quem o "Felgueiras" tivera um relacionamento, de apenas "dois ou três meses" (sic), no segundo ano da comissão. Ele ajudava a família com comida e dinheiro, mas nunca deu conta de que ela estivesse grávida, muito menos dele. Ambos tomavam "algumas precauções" (sic)... Feitas as contas, a mulher que dizia ser sua filha, tinha nascido em finais de 1972 ou princípios de 1973. Nunca poderia ser sua filha, já que ele estava a viver em Angola desde o 1.º trimestre de 1969…

− E se fosse minha filha, eu estaria disposto a reconhecê-la e a ajudá-la, inclusive a obter a nacionalidade portuguesa… O meu capitão, esse, ao que parece, é que lá deixou um filho, toda a gente sabia dessa história que, em boa verdade, me entristece.

O "Felgueiras" nunca me quis falar desse caso que manifestamente o incomodava. Foi o Arlindo quem, mais tarde, falou, com mais detalhe e à vontade, da história do capitão da companhia. Dizia-se que tinha feito um filho à lavadeira, mas nunca chegou a conhecer e a reconhecer a criança, que terá nascido ainda antes da comissão terminar, por volta do Natal de 1968. Um dos furriéis da CCS do batalhão, que editava o "jornal de caserna", até fez uma quadra popular, brejeira e satírica, alusiva ao “Santo António”… Toda a malta achou logo que assentava que nem uma luva na figura do comandante da companhia do "Felgueiras" e do Arlindo.

− Tornou-se popular no Batalhão, e alguns sacanas da companhia, que tinham tido problemas com o capitão,  vieram a cantá-la no "Uíge", de regresso a casa, com música de fado e tudo...  
− lembrava-se o Arlindo,

A letra rezava assim:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

O "Felgueiras" achava a brincadeira de mau gosto, e mesmo ofensiva do bom nome do seu comandante, por quem tinha grande admiração e estima. O capitão era, de resto,  popular entre a generalidade da  rapaziada da companhia, mas motivo de chacota  para os do batalhão.

− O meu coração ficou na Guiné – disse-me um dia o Felgueiras", com alguma emoção no tom de voz... 

− E Angola?...

− Em Angola até vivi mais anos, mas era outra gente. Enfim, Angola foi boa para os negócios.

Não lhe perguntei como nem porquê. Também nunca mais o vi. Também soube que casara, que tinha tido 2 filhos e 4 netos, e que entretanto enviuvara para, logo a seguir, em 2017, morrer de cancro no pâncreas. Uma morte quase fulminante, em menos de três ou quatro meses. Um choque para todos, família, amigos e afilhados. E até para os seus inimigos, políticos, que ele também os tinha e não eram poucos. 

− Os anos não perdoam. E os de África contam sempre a dobrar – lamentou-se o Arlindo, que perdeu "um bom amigo e um melhor camarada", padrinho de casamento do seu filho.

O seu compadre  (ou parceiro, como aqui se diz) não tinha completado ainda os 75 anos de idade.

E eu, por mim, só soube da notícia tardiamente, uns meses mais tarde, quando estivera no Norte, por altura das vindimas. A minha homenagem, tardia, chega agora, sob a forma desta história de vida do "Felgueiras" (1943-2017). Lamento a sua morte precoce e tenho pena que ele não tenha chegado a reencontrar o "Paranhos", seu braço direito na "horta do chão manjaco", nem a conhecer os régulos e demais camaradas da Tabanca de Matosinhos.

Talvez algum leitor conheça o "Paranhos" e ainda lhe possa dar, mesmo atrasada, a triste notícia da morte do seu amigo e camarada "Felgueiras". É de todo improvável que o "Paranhos" conheça este blogue... como, de resto,  a maior parte dos camaradas da Guiné, agora no ocaso da vida.

[PS - Costuma-se prevenir o leitor de contos como este, de que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Por razões éticas e legais de proteção de dados, os nomes aqui referidos são fictícios, exceto os dos países, os dos lugares públicos e os das figuras públicas. Todos os factos aqui narrados podem ou não inspirar-se em factos reais. Se no final o leitor se sentir desconfortável, peço-lhe que volte para a cama e continue a dormir, 
descansado, como eu faço: afinal "a guerra colonial nunca existiu", foi apenas um pesadelo, para alguns, como nós. Ou "pesadelo climatizado", para outros.  E poucos se puderam dar  ao luxo de comer bacalhau com batatas e pencas pelo Natal nos trópicos. Estas "estórias" são, afinal,  apenas "contos com mural ao fudo", onde o leitor pode sempre deixar um comentário ou grafitar umas garatujas... Boa noite.]

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(...) − Deixa-me ser franco contigo: não concordo que, em vida, se dê o nome a ruas, praças, avenidas, estádios, escolas, aeroportos, etc., a gente que ainda está viva. Hoje podes ser um herói, e amanhã um proscrito social. Vê o que aconteceu ao nosso Zé do Telhado, Torre e Espada, desterrado para Angola…

− O Zé do Telhado, o mesmo que limpou o sebo ao Zé Pequeno, tanto quanto sei − apressou-se a complementar o "Felgueiras".

− ... E lhe cortou a língua, com uma tesoura, por traição, aqui mesmo, na Lixa!...− acrescentei eu.

− Sim, isso mesmo. Vejo que estás por dentro da história da minha terra.

− Na nossa terra, ele andou por aqui, entre montes e vales, Penafiel, Lousada, Marco, Baião, Felgueiras... há mais de 150 anos!... Aliás, o seu fantasma ainda anda por lá, pelo Carrapatelo, por Montedeiras...

− Já o meu avô me contava essas peripécias... Eu também tenho um pouco esse jeito do Zé do Telhado, que roubava aos ricos para dar aos pobres...

− Exageros do Camilo Castelo Branco de quem foi vizinho e amigo na Cadeia da Relação, no Porto, por volta de 1860... E, claro, fez dele um herói romântico...

− Eu, por mim, gosto é de fazer o bem, e muitas vezes sem olhar a quem. Não é por acaso que me chamam (ou chamavam) o "padrinho"… Tenho montes de afilhados na região, o Jorge é mesmo o último. Muitos não os conheço, quando me vêm (ou vinham) cumprimentar, à moda antiga: "Sua benção, padrinho!"... (...)


Esta evocação do Zé do telhado não deixa de ser interessante... 150 anos depois ainda persiste por aqui, nas terras dos Vales do Sousa e do Tâmega, a sua "lenda", a de "Robim dos Bosques português", o que na realidade nunca foi... Mas é uma história que fascinou muita gente, a começar pelo Camilio Castelo Branco, a do "herrói nacional" que acaba como "bandido", desterrado para Angola...