1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2020:
Queridos amigos,
Comércio negreiro ou esclavagismo, colonialismo e relações raciais, missionação em sociedades islamizadas ou animistas, são questões fortes e sensíveis no estudo do Império Colonial Português. Não é a primeira vez que aqui se fala do tráfico de escravos e de preconceitos raciais, e como eles evoluíram ao longo dos séculos. Recorde-se agora duas vozes autorizadas, Charles Ralph Boxer e Valentim Alexandre, o primeiro estudou a fundo não só o Império do Oriente como o colonialismo brasileiro e o segundo tem uma investigação caleidoscópica sobre Brasil e África, e no livro aqui escolhido, Velho Brasil, Novas Áfricas, discorre sobre o fim do Império Luso-Brasileiro e o quadro ideológico que foi a questão colonial orientada para África até ao fim do Estado Novo. Espero que a seleção destes documentos vos traga utilidade.
Um abraço do
Mário
Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1)
Mário Beja Santos
Abruptamente, e um tanto a propósito da destruição de estátuas de figuras do esclavagismo, vieram umas tantas almas a terreiro exigir que Portugal pedisse perdão pelos nefandos crimes cometidos ao longo de séculos com o negócio negreiro, parecia que estavam a inventar a roda, não tomavam em consideração que Portugal tomou posições firmes quanto ao abolicionismo da escravatura e criou escola de pensamento hostil ao tráfico, e desta paródia de exasperos e de ignorância misturou-se, a propósito e a despropósito, colonialismo e racismo, comportamentos que podem andar a par mas que são fenómenos distintíssimos. Mesmo antes de Gilberto Freyre ter feito a apologia do luso-tropicalismo já um pensamento nacionalista fazia constar que no Império Português havia uma sociedade racialmente integrada, que não era permitido que se erguessem barreiras ao contacto amistoso entre colonizador e colonizado, e evocava-se o exemplo do Brasil.
Em "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967, aquele que terá sido o mais influente historiador estrangeiro do Império Marítimo Português abordava as relações raciais num conjunto de conferências que proferiu em Virgínia. O professor Boxer estendeu o seu olhar a três áreas distintas: o início do Império em África e como se desenrolou a sua presença na costa ocidental africana: em Moçambique e na Índia; e no Brasil e Maranhão. Obviamente nos vamos cingir a considerações gerais e à natureza das relações raciais na costa ocidental africana.
Começa por dizer:
“O velho Império Colonial Português era essencial uma talassocracia, um império marítimo e comercial, com interesses quer nas especiarias do Oriente, nos escravos de África, quer no açúcar, tabaco e ouro do Brasil. Era, no entanto, um império marítimo moldado em forma militar eclesiástica. Por séculos, a palavra oficial mais comum para as possessões ultramarinas portuguesas era As Conquistas. Quando em 1501 o rei D. Manuel I assumiu o título de Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Índia, Arábia e Pérsia, os Portugueses não tinham ainda conquistado nenhum destes países”.
Era já uma mentalidade que assentava numa associação então obrigatória com o Papado, pensava-se que a Igreja tinha poder para repartir terras e dar títulos. Portugal esteve presente em Marrocos entre 1415 e 1769 e quando abandonou as suas possessões a Fé Cristã ficou praticamente reduzida a zero. Ao contrário, o proselitismo português no Congo e em Angola foi bem-sucedido, a prática religiosa angolana de hoje teve este forte antecedente. O facto de se ter procurado a missionação na Alta Guiné em locais de puro comércio e de uma espúria presença de brancos, associado aos terríveis climas, febres e doenças então sem tratamento, reduziu os resultados desse cristianismo, mesmo se averbarmos práticas religiosas seculares em Cabo Verde e S. Tomé. E vejamos o que o historiador Boxer observa sobre as viagens e o comércio ao longo da costa da Guiné, diz claramente que os escravos, o ouro e o marfim eram as principais fontes de lucro procuradas pelos homens brancos. Entendia-se por Alta Guiné a região situada entre o Rio Senegal e o Cabo das Palmas, aí preponderavam comerciantes ou intermediários do comércio de troca entre africanos europeus, eram relações versáteis e inconstantes, variavam entre uma tribo ou área e outra.
E aconteceu a miscigenação, como ele comenta: “As relações sexuais livres entre negros e brancos fizeram surgir uma população mulata inteiramente portuguesa, nas ilhas de Cabo Verde e nas de S. Tomé e Príncipe, no Golfo da Guiné. As colónias insulares eram desabitadas na época do seu descobrimento e foram colonizadas principalmente por uma mistura de brancos vindos de Portugal, Espanha, Itália e escravos importados de uma larga variedade de tribos do continente. No princípio, a ilha de Santiago, e depois S. Tomé, transformaram-se em depósitos de escravos vindos da Baixa e Alta Guiné que ali eram reunidos e despachados para as plantações e minas da América Espanhola e Brasil. Com o correr dos séculos, o amálgama racial completou-se, predominando o elemento negro na constituição física e o português no aspeto cultural”. O historiador disserta sobre este amálgama racial, revela os graves problemas religiosos dos padres em simonia, a moralidade do clero sempre se mostrou em maré baixa.
No caso do Congo e de Angola, escreve o historiador, a procura de escravos intensificou e perpetuou as guerras intertribais e chegou o momento de situarmos o problema das relações raciais. Cita um autor obrigatório, António de Oliveira Cadornega, autor da "Historia Geral das Guerras Angolanas, século XVII". Os negros e os mulatos, era a sua opinião, deviam estar no fim da escala social, mas eram fundamentais, até porque muitos dos descendentes das relações mistas tornavam-se homens importantes. Um frade capuchinho italiano, Frei Girolano Merolla, escreveu em 1691 a respeito desta raça misturada: “Odeiam os negros mortalmente, até mesmo suas mães que os tiveram, e fazem tudo o que podem para igualar-se aos brancos”. O testemunho vale pelo que vale, Cadornega lembra o angolano Luís Lopes de Sequeira, cuja mãe era uma mulher de cor e que comandou as forças portuguesas que derrotaram e mataram o rei D. António I do Congo na Batalha de Ambuila. E tinham estatuto social os oficiais da milícia mulata “tinham permissão para frequentar as receções oficiais do governador-geral, em pé de igualdade com os brancos”. Havia pois uma atitude bivalente dos portugueses brancos em relação aos seus parentes mulatos.
Falando de Cabo Verde e S. Tomé, observa que o clero negro, mulato e mestiço, era sujeito a contínuas torrentes de críticas. “Os missionários capuchinhos italianos que trabalhavam no Congo e Angola durante os séculos XVII e XVIII eram especialmente severos em suas denúncias do clero secular nativo, ordenados por sucessivos bispos de Luanda, tachando-os de concupiscentes, simoníacos e muito comprometidos com o tráfico de escravos”. Era um comércio vital, como lembrou o Conselho Ultramarino lembrando ao rei D. Pedro II que a preservação do Brasil dependia do contínuo suprimento de escravos de Angola.
E mais adiante, escreve Boxer:
“É evidente que havia outras razões para o fracasso português em desenvolver no Congo e Angola um tipo de sociedade multirracial dominada pelos brancos, como aconteceu no Brasil. As sociedades tribais africanas eram muito mais fortes, mais numerosas e melhor preparadas para resistir à penetração europeia (…). O resultado da concentração de todos os esforços no tráfico de escravos em Angola por mais de dois séculos, foi a formação de uma poderosa classe de brancos comerciantes e donos de escravos, o crescimento de uma classe de negros destribalizada que cooperavam nesse comércio com os brancos, e o surgimento da classe dos mulatos e mestiços, alguns dos quais conseguiram importantes cargos na milícia, no comércio de escravos e na Igreja. Estas três classes estavam limitadas às cidades costeiras, das quais Luanda era a de tamanho mais considerável e vizinha de algumas fortalezas (presídios) no interior, nenhuma das quais estava a mais de 200 milhas da costa. No resto do país, a organização tribal não foi alterada nem foi influenciada pelos portugueses, com exceção dos Dembos e dos Ambaquistas ou comerciantes ambulantes de Ambaca”.
E termina este role de considerações recordando que esta presteza de acasalamento com mulheres de cor não ocasionou a ausência de preconceito racial no homem português. A regra-geral que prevalecia (e prevalece) na sociedade é a de uma consciente superioridade branca.
E vamos concluir esta digressão ouvindo Valentim Alexandre, outro historiador que muito se tem debruçado sobre o Império Português, damos-lhe a palavra para ele comentar o que foi África no imaginário político português e as questões da colonização étnica.
(continua)
Historiador Valentim Alexandre
____________Nota do editor
Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24239: Notas de leitura (1574): "Seis Irmãos em África", segunda edição; Porto, 2017; edição de autor, mas os autores são seis: Fernando, Rogério, Dálio, Carlos, Álvaro, Abílio, quem compilou os textos foi o Abílio, trata-se dos manos Magro que percorreram diferentes paragens africanas (2) (Mário Beja Santos)
6 comentários:
Portugal continua e continuará eternamente a ser analisado e ainda hoje continua a ser analisado pelo mundo que Portugal influenciou.
Ainda ontem um brasileiro, presidente do Brasil, Lula da Silva, dirigindo-se ao primeiro ministro português, observou e analisou dirigindo-se ao primeiro ministro português:
"Você está mudando a cara dos portugueses"
Afirmação espontânea de um brasileiro genuíno de uma profundidade tal que só um analista brasileiro nos poderia traduzir, para qualquer português genuíno pudéssemos entender o seu significado.
Pois que brasileiros menos genuínos como por exemplo Bolsonaro também tem imagem própria, bem diversa provavelmente, sobre os portugueses.
BS e LG, enriquecem este blog com este post bem oportuno no tempo dos cravos.
Antº. Rosinha, se não viste na RTP2 'Visita Guiada' sobre Cabo Verde, julgo gostarás de ver uma extraordinária explicação sobre o papel dos caboverdianos na criação dos 'Estudantes do Império'.
Na RTPplay poderás rever estes dois programas sobre a Cidade Velha e Cabo Verde em geral, que foram exibidos em 17 e 24 de Abril no programa "Visita Guiada" da RTP2.
O historiador caboverdiano António Correia e Silva faz uma explicação inédita sobre a Cidade Velha e a fixação dos europeus nos trópicos no sec. XVI. Vais gostar de ver.
Valdemar Queiroz
Lula da Silva, por quem não tenho simpatia, tal como não tenho por Bolsonaro, a bolsar ditirambos e elogios a António Costa "Você está mudando a cara dos portugueses."
Pobre Brasil, 2023, que tem um presidente da república que acredita que um primeiro-ministro de Portugal é capaz de estar mudando a cara de todo um povo com 900 anos de História! O disparate absoluto e o Rosinha a acreditar...
Abraço,
António Graça de Abreu
Antonio Graça de Abreu, tenho de acreditar, pois estive durante 5 anos a trabalhar no Rio, São Paulo, e Baia entre operários no Rio em São Paulo e Baia, e vi "a cabeça feita" bem moldada de muita gente.
Não só de operários, mas também de alguns doutores.
Ainda hoje, passados 30 e tal anos continuo "boquiaberto", de tantas que tinha ouvido, ainda ouvi esta do Lula sobre Costa, e espero ainda ouvir muitas mais.
Sempre acreditando...
cumprimentos
"Você está mudando a cara dos portugueses"
“Lembro-me que quando ganhou a primeira eleição, no Brasil se vendia é que quem tinha ganhado a eleição em Portugal tinha sido a `geringonça´, mas `geringonça´ no Brasil não é uma coisa muito boa, é um amontoado de coisa, mas a verdade é que você está a mudar a cara de Portugal, inclusive na relação política com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa”, disse o chefe de Estado brasileiro no Fórum Empresarial Portugal – Brasil que decorreu em Matosinhos, no distrito do Porto.
"...mudando a cara dos portugueses"
"...mudar a cara de Portugal"
E semântica à parte, lá se fizeram uns negócios entre Portugal e o Brasil.
Valdemar Queiroz
O que eu admiro em camaradas e/ou amigos nossos como o Rosinha ou o Cherno Baldé ou ainda o Valdemar é a capacidade nos surpreender com comentários baseados em observações muitas vezes intuitivas, baseadas na experiência vivida, e não tanto nos nossos clichés "ideológicos"... Não temos que concordar; às vezes prefiro deixar-me surpreender... Há muito que as ideologias são "prisões"...
Enviar um comentário