quarta-feira, 26 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Não fosse o documento que o cônsul português em Dacar nos deixa sobre a comunidade cabo-verdiana e esta obra passava-nos literalmente ao lado já que é aqui que é a Guiné a razão nuclear destas leituras. Mas há observações curiosas que nos ajudam a compreender a importância estratégica do Senegal no império colonial francês da África Ocidental. Aliás, quando frequentei o Arquivo Histórico do BNU, rapidamente me apercebi que o Senegal era para a França uma pequena joia da Coroa, foram muitos os senegaleses que combateram nas trincheiras, o estatuto de cidadania francesa pesava no orgulho senegalês e não foi por acaso que a partir de Teixeira da Mota se instituiu na Guiné Portuguesa uma cooperação científica de grande valor com o IFAN, Instituto Francês da África Negra. António de Cértima escreveu em O Comércio da Guiné, homem convicto do regime de Salazar agiu para sufocar a Revolução Triunfante, a tentativa republicana de manter a Guiné fora da ditadura, o regime condecorou-o, prometeu escrever um livro sobre a Guiné, o que nunca aconteceu.

Um abraço do
Mário



António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920

Mário Beja Santos

António de Cértima foi diplomata, teve postos de cônsul no Cairo, Dacar e Sevilha, foi escritor e jornalista, já cinquentão pediu a reforma e passou a trabalhar na SACOR, teve longa vida (1894-1983), deixou obra prolífica, regista-se aqui o seu livro "Sortilégio Senegalês", publicado pela Livraria Tavares Martins – Porto, em 1947. Prometeu escrever sobre a Guiné, mas nunca o fez, conquanto tenha colaborado no jornal "O Comércio da Guiné", ter-se-á mesmo empenhado em fazer fracassar a Revolução Triunfante, uma tentativa de republicanos garantirem a Guiné fora do Estado Novo, foi então condecorado como igualmente virá a ser condecorado pelo Estado Francês. Aliás, este Sortilégio Senegalês é dedicado aos seus amigos franceses.

Trata-se de memórias avulsas onde não falta o “Expresso” do Sudão, inúmeras viagens dentro do território, reuniões sociais, há referências muito cultas e descrições abundantes sobre a atmosfera africana, é o seu olhar europeu que propende:

“Em Dacar, como em todas as cidades jovens e africanas, sente-se que uma vida tumultuosa circula, a agitar-lhe os flancos, a irromper das artérias, numa sede de futuro. Depois, a mão do homem parece ter posto aqui um desígnio ardente. Arrancada pelo génio empreendedor de Faidherbe aos penhascos alcantilados da chamada geograficamente quase ilha de Cabo Verde, onde há 70 anos apenas se destacava o ocre daquelas palhotas de pescadores lebús, Dacar encontra-se hoje em pleno desenvolvimento”.

Fala das etnias, dos antigos impérios que aqui se atravessaram, maravilha-se com o mar esmeralda, rende-se à adaptação dos franceses, à naturalidade com que transportam para aqui as normas da sua vida social, tem curiosidades de antropólogo e etnólogo, situa com rigor a importância de Dacar no contexto das oito colónias francesas na região (Mauritânia, Senegal, Sudão Francês, Níger, Guiné, Costa do Marfim, Alto-Volta e Daomé): 

"À parte os enclaves das possessões da Gâmbia, Guiné Portuguesa, Serra Leoa e Costa do Ouro, aqui temos, bordejando o Atlântico desde o Cabo Branco a Porto Novo, o imenso bloco da África Ocidental, oito vezes maior do que a França da Europa, parecendo desafiar o poderio dos antigos impérios do Gana e do Mali”.

Vai deambulando entre lugares e conversas, é moralista nas leituras, não lhe escapam as considerações éticas, procura a todo o transe distinguir a colónia do Senegal como um corpo à parte dentro do grupo de colónias francesas, apresenta-a como a mais evoluída, muito apegada à cidadania francesa. 

É exatamente aqui, penso eu, que o leitor questiona o porquê de trazer à baila uma obra memorial de um diplomata português no Senegal se ele se escusa terminantemente a falar da Guiné. Aí é que está a surpresa, o cônsul foi visitar a colónia portuguesa, que se acantona na parte alta da cidade de Dacar, por detrás do mercado indígena, e dá-nos informações extremamente úteis para se perceber o que irá acontecer no início da década de 1960 com esta colónia que revelará uma larguíssima indecisão face à ideologia do PAIGC.

Vejamos o que ele escreve:

“A colónia é numerosa: quase três mil. São todos cabo-verdianos, guardando ainda nos gestos vivos, desembaraçados, e na energia dos atos, qualquer coisa do clima viril da denominação em que se agrupam as suas ilhas natais. O cunho racial apresenta-se neles como um medalhão bem vincado. Homens e mulheres entregam-se às suas tarefas guiados por um fervor económico que só deve redundar em proveito da terra, da família, do lar. Temos vontade de perguntar: de que religião doméstica ou de que princípio de associação humana procedem estas regras morais de que os povoadores indígenas destas ilhas atlânticas obedecem com tanta porfia? O marinheiro ou moço do bordo que embarca nos portos da Praia ou S. Vicente com destino a todos os continentes do mundo, se por imprevisto da circunstância se encontra abandonado em qualquer escala das ilhas marítimas, o seu primeiro impulso é o de regressar imediatamente à sua ilha, ainda que escondido nos porões de qualquer cargueiro pirata. Belo exemplo de fidelidade à instituição familiar!

 Mulheres de bronze – assim chamam às raparigas de Cabo Verde os viajantes dos grandes transatlânticos que ali fazem escala, e não tanto pela cor, que na maior parte dos casos é de um moreno solar, mas sim pelo bem esculpido das formas. Os homens têm um nobre aspeto físico, e gestos onde se depara a dignidade e certo aprumo fidalgo dos primeiros donatários do arquipélago que mandou descobrir o Infante D. Henrique. São zelosos, cumpridores e de grande curiosidade e inteligência. Aos dois meses da sua chegada a Dacar falam já correntemente o francês. De Portugal conhecem tudo – até mesmo as estações de águas termais. Com os palhabotes ou faluas se dedicam ao pequeno comércio com o porto de Dacar, entre os carregamentos de laranjas e aguardente de cana chegam sempre alguns exemplares do Século e de outros jornais portugueses”.

E prossegue conversa com alguns destes homens culminando esta viagem ao mundo cabo-verdiano dizendo que Portugal lhes deve muito. Indiretamente o diplomata vai referindo as instituições sediadas em Dacar e começamos a perceber porque é que a capital do Senegal foi escolhida para sede de uma entidade científica que ainda hoje marca a vida do país independente o IFAN, então Instituto Francês da África Negra e a partir de 1966 designado por Instituto Fundamental da África Negra, foi possível a partir do governador Sarmento Rodrigues (1945-1949), manter uma cooperação científica ao mais alto nível, não só nas investigações referentes a descobrimentos e viagens nestas paragens da Senegâmbia, como estudos sobre a doença, a fauna e a flora e até a agricultura.

Pouco mais há a dizer da narrativa de António de Cértima das suas memórias senegalesas, relacionou-se com inúmeras pessoas, deslumbrou-se com a música negra. António de Cértima, joeirado pelo tempo, é reconhecidamente um autor secundário, muito formalista, certamente que atraído pelos padrões modernistas, culto, bom viajante, como irá revelar na sua viajem a Tombuctu, muito interessado pela Antropologia, nunca se cansando de exaltar a beleza negra, não sabemos se fala o esteta ou está marcado pela sensualidade, quando nos descreve assim:

“Nas minhas viagens do Atlântico ao Índico, das proximidades do lago Vitória ao Mediterrâneo, tenho surpreendido corpos de tanta finura e harmonia plástica, de tão acertadas proporções e incorrupta euritmia animal, que causariam inveja aos mais puros modelos gregos. Meus olhos não esquecerão jamais a graça e a candura, como nas formas nascentes, de tantos belos corpos escondidos nas luxúrias vegetais da selva, bailando sobre a lua das aldeias indígenas, circulando eretos e melodiosos como ânforas rituais”.

Do que igualmente retive desta saborosa leitura do seu olhar saltitante foi a descrição que fez sobre o naufrágio que ocorreu em 1816 da Fragata Méduse, encalhada nos bancos de Arguim e que está na base de um famoso quadro de Géricault, Radeau de la Méduse.

Resta dizer que a obra mais conhecida de António de Cértima tem o título "Epopeia Maldita", prende-se com as guerras travadas no norte de Moçambique na I Guerra Mundial, onde ele participou.


Jangada da Medusa, por Géricault, Museu do Louvre
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Todos os pretextos para falar de Cabo Verde e dos nossos amigos cabo-verdianos são bons. Não é o projeto político falhado do PAIGC ou os saudosistas do império que nos vão impedir.

Os pais de alguns de nós defenderam Cabo-Verde na II Guerra Mundial. Não pedimos licença a ninguém para falar desses factos históricos.

Por isso, obrigado ao nosso crítico literário. Já tinha ouvido falar vagamente desse tal Cértima... Abraço para o Mário. LG

Valdemar Silva disse...

Repito, a RTP2 no programa "Visita Guia", passados dias 17 e 24 de Abril, apresentou um importante documento sobre Cabo Verde e Cidade Velha, considerado o primeiro lugar de fixação de europeus nos trópicos.
A conservação das muralhas da grande fortaleza, as ruínas da igreja e pedras tumulares quinhentistas são testemunhas da fixação dos portugueses e a miscigenação com escravas vindas da Guiné dando ao mundo os mulatos.
O historiador caboverdiano António Correia e Silva dá uma lição de História sobre Cabo Verde, os portugueses, os escravos e os mestiços.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar consegui ver o segundo programa o primeiro já não apanhei dia 14, tinha passado mais de uma semana, por isso.

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha, gostava de saber a tua opinião sobre o programa.
O 1º do dia 14 foi todo filmada na Cidade Velha e nas muralhas da grande fortaleza.
Aquela Largo da Cidade da Praia, ainda com o Pelourinho manuelino e todo o ambiente aportuguesado dos trópicos e a mestiçagem é um bom momento de televisão.

Valdemar Queiroz.

paulo santiago disse...

Valdemar

Em 2018,por motivos familiares,passei um mês na ilha de Santiago.Em 1970,na ida para a Guiné,o navio amarou umas horas ao largo da ilha a qual;à data não tinha porto.
Nesse mês de 2018,percorri Santiago de ponta a ponta.Tive um excelente cicerone,um meu colega de curso da Escola Agrícola de Coimbra,após a independência de CV,entrou na carreira diplomática.
Não vi o programa da RTP 2.Estive,por duas vezes,na Cidade Velha,a primeira cidade da costa africana,segundo o meu colega e outros habitantes da cidade.Notável o Pelourinho,destruído em várias localidades de Portugal,mas lá em excelente estado de conservação. A Catedral,a primeira de África,dizem,está protegida.Há anos,pediram um parecer ao Siza Vieira,queriam colocar-lhe uma cobertura,e outros arranjos,mas o arquiteto disse para a manterem com está.
Ouvi ao meu colega,e a outras pessoas naturais da ilha,uma frase atribuída ao Padre António Vieira,dita num sermão feito na Catedral..."encontrei aqui gentios a falarem melhor que os fidalgos da Corte".
O Forte de S.Filipe,uma notável obra de engenharia militar.
Para terminar,comi muito bem em Santiago,mas o prato que mais me agradou,foi um "caldo de peixe" comido,em casa de um amigo,na Cidade Velha,acompanhado por um vinho branco da Ilha do Fogo,que fica em frente,

Abraços

Santiago

Antº Rosinha disse...

Valdemar o dia 14 não consegui ver, mas no segundo, o autor falou uma coisa que nunca tinha ouvido aos caboverdeanos e menos ainda a nós, metropolitanos, que é o seguinte: Na independência do Brasil em 1822, podia ter ficado alguma ligação de Caboverde ao Brasil, e perdeu-se aí uma grande oportunidade para a vida das ilhas.

Uma Irmandade, penso que é isso que ele quer dizer, e aí eu concordo.

E cá para nós, de todos os caboverdeanos que conhheci, no fundo era um sonho deles todos uma irmandandade entre as ex-colónias portuguesas.

E aí, talvez também seja um sonho perdido para eles.

Na realidade estiveram ligados à historia de todo o mundo português.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

António de Cértima tem aqui uma entrada na Wikipedia:

António de Cértima foi um escritor português, nascido no lugar de Gesta, freguesia de Oiã, concelho de Oliveira do Bairro, em 27 de Julho de 1894 e falecido no Caramulo, Tondela, a 21 de Janeiro de 1983. Foi baptizado no entanto com o nome de António Augusto Gomes Cruzeiro.

Seguiu a carreira diplomática, tendo sido cônsul em Dacar e Sevilha. Dedicou-se depois à vida comercial.


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_C%C3%A9rtima

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Além do "Sortilégio Senegalês" (1949), chamou-me a atenção, na sua bibliografia, os seguintes títulos:

Epopeia Maldita, (O drama da Guerra de África), 1924;

Legenda Dolorosa do Soldado Desconhecido de África, 1925;

Aditamento ao 5º Milhar de Epopeia Maldita - (contem criticas à obra), sem/data;

Soldado Volta - poética, 1970;

Soldado Desconhecido (pequeno panfleto que distribuiu), sem/data...


E de entre os prémios e condecotrações:

1918 - Medalha de Bons Serviços Militares - Atribuída por Portugal;

1931 - Louvado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, em nome do Governo pelos " Seus Patrióticos Serviços durante a revolta da Guiné" - Atribuída por Portugal---

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_C%C3%A9rtima

paulo santiago disse...

Luís

Cértima,é nome do rio,muito poluído actualmente,que passa junto a Giesta,lugar onde nasceu o escritor e diplomata.
O Cértima desagua na Pateira de Fermentelos.

Abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Já estou a ver onde o nosso homem foi buscar o pseudónimo literário...

Gostei de tua "defesa" de Cabo Verde, às vezes aqui "mal...tratadp". Ab, Luis