quinta-feira, 22 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

Capa do livro, de Ábio de Lápara, "Uma illha no nome:
 pequena crónica dos dias líquidos (Lisboa, edição de autor,
 2007, 77 pp.).

Ílhavo > Costa Nova > Agosto de 2006 > José António Boia Paradela, arquitecto, filho e neto de gente do mar, andou embarcado, até aos 18 anos, na pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra... Uma experiência, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro, aos 70 anos, - "para os amigos" - Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, que eu tive a honra e o prazer de prefaciar. É membro da nossa Tabanca Grande, tem 25 referências no nosso blogue. 

O concelho de Ílhavo (com cerca de 25 mil habitantes, em 1960, tem hoje perto de 40 mil) teve 10 mortos na guerra do ultramar/ guerra colonial, três dos quais na Guiné, outros três em Angola e os restantes em Moçambique (segundo o portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar).

Foto (e legenda): © Luís Graça (2006). Todos os direitos reservados. [Edição Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José António Boia Paradela): Biblioteca de Ílhavo, 26/11/ 2017. O autor a autografar o seu último livro, "Santinhas de Apegar: Textos Poéticos" (2017, ed. de autor, 125 pp. + II inumeradas). 

Foto de Etelvina Almeida, cortesia da página do Facebook do autor.


 1. Prefácio de Luís Graça ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). 

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ílhavo, onde nasceu em 1937. Arquitecto, era o fundador e  sócio-gerente da conceituda empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda. Morreu recentemente, de cancro, aos 85 anos.


É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo: 

  •  A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
  • We are born to loose everything, everytime and nothing at all;
  • Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente;
  • Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…


O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

  • O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; 
  • o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; 
  • a Avó materna, a mãe Rosa… 

Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: 

  • O Mestre Zé, marinheiro; 
  • o Manuel da América; 
  • o Sacerdote Manuel, cego; 
  • o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; 
  • o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias;
  •  o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; 
  • a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; 
  • a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhados pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, no entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:

- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!

Luís Graça

[Fonte: Luís Graça > Blogpoesia > 23 de novembro de 2007 >  (Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos]
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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de junho de  2023 > Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)

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