segunda-feira, 29 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6063: Recortes de imprensa (23): O desastre do Cheche, no Rio Corubal: excertos de artigo de Teresa Firmino, Público, 6/12/2009

 Guiné > Zona leste > Rio Corubal >  Cheche  > Ancoradouro > "Esta imagem veio publicada num número de 1971 do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. O que há de macabro é tínhamos abandonado esta região em 1969, foi exactamente aqui que se deu o horrível sinistro que levou à morte 47 dos nossos militares durante a travessia de uma jangada preparada para a operação da evacuação de Madina de Boé. Dizem que é um ponto de indizível beleza, com mata luxuriante".

Imagem digitaliazada e legenda: Beja Santos (2008).


1. A tragédia de Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 , foi  evocada, de novo,  na imprensa portuguesa, através de um trabalho de reportagem da jornalista Teresa Firmino, do jornal Público (*), que já em tempos nos tinha contactado, a nós, editores do blogue, por causa de uma foto da jangada da autoria do nosso camarada Paulo Raposo (**). Ela acompanhou, na Guiné-Bissau, os trabalhos da 4ª  missão da Liga dos Combatentes, que teve por objectivo a localização e a exumação dos restos mortais de militares portugueses, espalhados por cemitérios de ocasião no sul.  Desta vez, a equipa,  chefiada pelo major-general Fernando Aguda,  esteve em sítios como Bolama, Bedanda, Cacine, Catió, Fulacunda, Quebo e ilha das Galinhas.  Em Cheche, na região de Gabu, nas margens do Rio Corubal, a equipa liderada pela antropóloga forense da Universidade de Coimbra, Eugénia Cunha, e com a colaboração do geofísico da Universidade de Aveiro, Hélder Hermosilha, terá  localizado uma vala comum onde se supõe estarem os ossos de oito das 47 vítímas mortais do desastre do fatídico dia 6 de Fevereiro de 1969. Será o o próximo local de intervenção da missão (a 5ª) da Liga dos Combatentes... Nas missões anteriores, a Guidage, Farim e Gabú, foram levantados 55 corpos. (Vd. notícia constante da revista Combatente, nº350, Dezembro de 2009.

 Neste artigo do Público, Teresa Firmino cita o nosso blogue, dizendo:

"O desastre de Cheche é hoje motivo de inúmeros relatos na Internet, nomeadamente no blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Os antigos combatentes encontraram essa forma de fazer o luto colectivo da tragédia que viveram. Outros emocionam-se tanto que recusam falar disso".

2. Público 'on line' > 26.03.2010 > À procura dos militares afogados no rio Corubal

Por Teresa Firmino

[Texto originalmente publicado na edição do Público, de 6 de Dezembro de 2009. Reproduzimos aqui alguns excertos com a devida vénia...]


Durante horas a fio, as duas jangadas no rio Corubal fizeram vezes sem conta a travessia para a margem norte. A companhia de caçadores 1790 estava a abandonar o quartel de Madina do Boé, onde tinha sido constantemente flagelada pelo inimigo ao longo de 13 meses, e era apoiada por homens de outras companhias. (...)

Até ali, tudo tinha decorrido sem incidentes. Para trás, tinham ficado os 30 quilómetros entre Madina de Boé e Cheche, e o rio começou a ser transposto na margem sul ao fim da tarde de 5 de Fevereiro de 1969. Passaram toda a noite naquilo. Só podia seguir uma viatura pesada de cada vez. Eram 28, mais 100 toneladas de munições e equipamentos, três auto-metralhadoras Daimler e à volta de 500 militares, conta-nos o então capitão José Aparício, comandante da companhia 1790 em Madina do Boé.

Ao início da manhã de 6 de Fevereiro, só restava na margem sul um grupo de homens: dois pelotões da companhia 2405, outros dois daquela que estava em retirada. "Eram entre 100 a 120 pessoas", diz José Aparício.

Toda a gente entrou na última jangada, que assim levava o dobro da sua lotação de segurança. Era feita por um estrado de madeira, assente em canoas e bidões de gasóleo vazios, puxada por um barco com motor fora de borda. José Aparício ia naquele grupo de homens. O alferes miliciano Rui Felício (que comandava um pelotão da companhia 2405) também.

De repente, a jangada adornou para um lado, atirando vários homens à água. Depois, balançou para o outro e cuspiu outros tanto. Ficou meio submersa, mas não foi ao fundo. José Aparício conseguiu manter-se na embarcação. Rui Felício caiu no rio.

"Estava a ir ao fundo. Percebi - se calhar muitos não perceberam - que tinha muito peso. Atirei a espingarda fora, que pesava cinco ou seis quilos, e a cartucheira à cintura, com outros cinco ou seis quilos. Descalcei as botas e nadei para a jangada." Ouviam-se gritos? "Não, não ouvi ninguém a pedir socorro, a gritar. Nada."

(...) Paulo Lage Raposo, alferes miliciano da companhia 2405, atravessou o rio na viagem anterior. "Vimos que caíram uns para um lado e outros para o outro. Não houve gritos, nem esbracejares, nem coisa nenhuma. Carregados com as armas, as granadas, as botas, iam para o fundo como um prego." Muitos não sabiam nadar, o que agravou tudo. Mas naquele momento a dimensão do acidente passou despercebida.

"Só soube que tinha morrido gente - estou a arrepiar-me a contar isto - quando cheguei à margem e pedi a um furriel para formar o pelotão. Ao fim de dez minutos, fui ralhar com ele porque achava tempo demasiado para ainda faltar gente. Só percebi que se passava alguma coisa porque vi vários a chorar. Aí é que me apercebi que morreu gente. Do meu pelotão, foram 13", recorda Rui Felício.

"É uma coisa que marca para toda a vida. Tive coisas infelizes que já esqueci, mas esta não se esquece nunca. Lembro-me da data. Foi entre as nove as dez da manhã. Há pormenores que nunca mais saem da cabeça. Sei que estava um dia de sol."

(...) [47 é o número de mortos] referido, por exemplo, por José Aparício, tendo em conta os elementos que recolheu: "Morreram no desastre 25 militares da minha companhia e 22 da companhia de caçadores 2405, o que perfaz um total de 47 europeus. Morreram ainda na travessia mais cinco guineenses de um pelotão de milícias que fazia parte da guarnição de Madina do Boé. Felizmente, não morreu nenhum dos cerca de 100 elementos da população que ali viviam connosco e que foram evacuados para a então Nova Lamego, hoje Gabú. Fizeram a travessia em viagens anteriores."

(...) Duas semanas depois do naufrágio, foi organizada uma operação de recolha dos corpos por fuzileiros e mergulhadores. Muitos desapareceram para sempre. Na série de documentários A Guerra, de Joaquim Furtado, podem ver-se imagens aéreas de alguns corpos a boiar, recolhidas pelo piloto da Força Aérea José Nico. "Os [corpos] recuperados foram sepultados nas margens do rio, com as honras militares próprias", relata Joaquim Furtado. (...)

(...) Que a jangada naufragada no rio Corubal tinha excesso de peso,  não suscita grandes dúvidas. Mas o que desencadeou a queda à água de soldados é alvo de versões desencontradas. Os alferes milicianos Rui Felício e Paulo Lage Raposo (o primeiro ia na jangada, o segundo fez a travessia na viagem anterior) dizem que foi o peso a mais, tendo ficado desequilibrada. Com capacidade para dois pelotões (uns 60 homens), fazia a travessia com os últimos quatro pelotões, de duas companhias. "Às vezes facilitamos demais", diz Paulo Raposo. "Para mim, a jangada virou-se porque tinha excesso de peso, embora haja relatos diferentes", diz Rui Felício.

Um desses relatos é o do capitão José Aparício (comandante da companhia 1790, em retirada do quartel de Madina do Boé), também na jangada. Diz que se ouviram tiros de morteiros e, em reacção, o barco a motor que puxava a jangada acelerou demais e fez cair homens.

Não houve tiros de morteiro, dizem Raposo e Felício. "Havia uma paz absoluta naquele rio", lembra Felício. "Estávamos habituados a ouvir tiros. Não era com uns tiros que nos assustávamos", junta Raposo. No documentário A Guerra, de Joaquim Furtado, dá-se voz às diversas versões e suas nuances. "Os morteiros existiram. Não tenho dúvidas", diz José Aparício a Furtado. "Há pessoas que disparam armas e sabe-se quem foi. Esta gente foi ouvida." Estava previsto dispararem-se morteiros para a margem sul do rio, quando todos tivessem deixado essa margem, no fim da operação.

É mostrado um filme feito pelo piloto José Nico, que filmava a penúltima travessia mas recebeu indicações para ir filmar os morteiros. Vêem-se os disparos das armas: "É durante esta filmagem que recebe a notícia do naufrágio da última jangada", ouve-se Furtado a dizer. "Imediatamente a seguir, José Nico filma estas imagens que mostram a jangada acidentada no meio do rio, enquanto alguns militares tentam as primeiras operações de socorro." Este acidente deixou a operação Mabecos Bravios (cães selvagens) tristemente célebre. (...)
_______________

Notas de L.G.:

(*) Além do artigo, parcialmente transcrito aqui, vd.  também:  A última jangada no rioCorubal. Público, 25.03.2010.
Por Teresa Firmino, em Cheche

(...) Quatro décadas depois, continua a existir uma jangada em frente a Cheche. É agora moderna, tem motor próprio e serve para a travessia de carros apenas. O resto, pessoas, bicicletas, motas, vai de piroga, e há várias. Imperturbável, o Corubal é tranquilo nesta época do ano, a mesma do acidente, e a água, um tanto esverdeada, é ladeada por margens íngremes cobertas por árvores e vegetação densa. Ao sítio da travessia, com Cheche do lado de lá, chega-se por uma estrada larga, depois de uma sucessão de tabancas na berma de um caminho de terra, ponto de encontro de quem está à pesca, de quem lava a roupa e a estende no chão, de quem toma banho ou de quem simplesmente passa por ali.


 (**) Vd. postes recentes publicados no nosso blogue:
2 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5920: Ainda o desastre de Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (6): Missão da Liga dos Combatentes resgata corpos (Beja Santos)

22 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luis Graça)

21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5861: Ainda o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (4): Cem anos que viva nunca esquecerei as imagens da catástrofe e o diálogo entre o Alf Diniz e o Cap Aparício (Rui Felício)

21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5859: Ainda o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (3): O oficial mais graduado que ia na jangada era o Cap Aparício, comandante da CCAÇ 1790 (Paulo Raposo)

21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5858: Ainda o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (2): Acima do Alf Diniz, só havia 2 homens, os Cap Aparício (CCAÇ 1790) e Jerónimo (CCAÇ 2405) (Armandino Alves)

20 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5851: Ainda o desastre de Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (1): Silvina Claudino, de 26 anos, uma sobrinha que o 1º Cabo José Antunes Claudino, da CCAÇ 2405, natural de Alcanhões, Santarém, nunca conheceu

6 comentários:

Anónimo disse...

Muito vive 'esta gente' de falar de longe! Atura-se melhor os 'críticos de jornal'; pelo menos tratam do que sabem, embora também à boleia de quem faz alguma coisa. Em geral... porque há ocasionais excepções; como aqui.


SNogueira

Anónimo disse...

Alguns dos militares envolvidos elucidaram e deram o seu testemunho consonante.
Para que são estas divagações de uma senhora, quarenta anos mais tarde?

Bem, a ela pagam-lhe para fazer encher páginas e o tema tem estado a render -veja-se a patacoada oportunista publicada por alguma imprensa- mas aqui?... Conversata, para quê? Estas perguntas, para reflexão, não carecem de resposta.

SNogueira

Hélder Valério disse...

Eu vejo as coisas assim:

Houve em tempos, um determinado acontecimento passado algures, o qual resultou num acidente lamentável em que perderam a vida algumas dezenas de jovens militares portugueses e alguns autóctones.

Parece saber-se o que aconteceu. O 'como' aconteceu já não tem uma única opinião. O ´porque', esse então, também tem versões...

Um dos resultados sabidos é que vários corpos de vítimas da tragédia foram enterradas em vala comum nas 'margens' do rio Corubal, sendo esta expressão 'margens' bastante imprecisa.

Acontece então que foi organizada uma equipa para procurar a localização dessa propalada 'vala comum' e, caso obtivesse êxito nos trabalhos e ainda fosse possível, deixar caminho aberto para a recuperação desses corpos com vista à sua colocação em cemitério mais condigno ou até na sua trasladação para Portugal.

A acompanhar estas diligências houve um órgão de comunicação social que enviou um(a) repórter que acompanhou os trabalhos e escreveu sobre a missão, fazendo o enquadramento daquelas diligências.

O que é que isto tem de mal?
Com os trabalhos de exumação dos corpos dos paraquedistas (e não só)à volta de Guidaje não se fez algo semelhante? Não chegaram a ver até uma reportagem na televisão?

Porquê a atitude de que se não falam das coisas estamos a ser esquecidos, ostracizados, votados ao desprezo e ao abandono mas se se fala então já é demais, são divagações, patacoadas oportunistas e as pessoas apelidades de "esta gente"?

Por mim, não vi mal nenhum nem no conteúdo da reportagem em si nem no facto da sua própria existência.

Um abraço
Hélder S.

Manuel Reis disse...

Em 1969 eu não fazia a mínima ideia que um dia, mais tarde, iria bater com os ossos na Guiné.

Soube da tragédia por um amigo devido ao falecimento de um amigo comum, Furriel Nunes.

Várias foram as versões que ouvi na altura, até de um rio (Corubal) infestado de crocodilos, que haviam devorado uma quantidade enorme de camaradas.
Na altura, este drama agudizou a minha revolta contra a existência de uma guerra sem sentido para nós, jovens, mas justificável para os políticos da altura.

Permaneceu e permanece na minha mente, como registo deste acontecimento, a morte de um grande amigo e conterrâneo, Furriel Nunes.

Mais tarde, Maio de 1972, sou colocado nos Açores,como Aspirante, para dar instrução aos soldados que iriam posteriormente constituir Batalhão e seguir para Moçambique.

O meu Comandante de Companhia era o Capitão Aparício que, só há poucos anos, através de depoimentos no Blogue, consigo relacionar como um dos envolvidos nessa tragédia.

Pessoa revoltada e de reações muito emocionais,Capitão Aparício, nem sempre resolvia os problemas da melhor maneira.
A justificação para tal, está encontrada.

Na minha opinião toda a investigação e depoimentos de testemunhas, presenciais, sobre este caso é útil, para melhor esclarecimento do que se passou. Isto, mantendo sempre o respeito por aqueles que viveram tão traumático acontecimento.

Um abraço.
Manuel Reis

Anónimo disse...

Eu acho que a pergunta que se deve pôr aqui é a seguinte: Porque é que se carrega a barcaça da última transposição do rio com o dobro ou mais do seu limite?

Em relação ao acontecido o que fizeram as autoridades militares aos que comandaram a operação?

È evidente que naquela altura as pobres famílias das vítimas quase nada podiam fazer?

E agora o que se pode fazer se é que se pode fazer alguma coisa?

Continua a ser um conjunto de interrogações.

Adriano Moreira - Cart. 2412

JD disse...

Camaradas,
Achei muito oprtuna a intervenção do Helder a propósito do acidente.
Tão oportuna, quanto a última intervenção do nosso SNogueira já contraria as suas anteriores, e justifica todas as diligências com vista ao melhor conhecimento do que aconteceu e, até, quanto a medidas futuras no que respeita à busca e identificação de corpos de camaradas para eventual exumação.
Abraços
JDinis