1. Mais uma história do nosso camarada António Paiva, (ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70), enviada ao Blogue no dia 22 de Março de 2010.
QUANDO A MISSÃO NÃO DEIXA VER
Onde eu nasci e fui criado, se poderia considerar zona pobre de Lisboa.
Mas rica em juventude, traquina e travessa, que de manhã à noite fazia eco pela calçada, travessa e largo onde existia a escola onde eu andei até à 4.ª classe.
Por baixo era a esquadra da PSP, tudo nos servia para dar largas à nossa meninice. Pular, correr, saltar, jogar ao bilas, à carica, ao peão, dar pontapés na bola feita de papel de jornal metida dentro de uma meia de vidro que as mulheres, depois de rotas, deitavam fora.
Ainda tínhamos a possibilidade de ir à fábrica do sabão buscar caixas de madeira para fazermos uns carros com rodas de esferas, para descer pela calçada a baixo, fazendo um barulho do caraças.
Ainda tínhamos no mesmo largo a Casa das bicicletas, onde se alugavam, para fazermos mais algumas asneiras e quedas à Campeão, a minha era sempre a n.º 7, não sei bem porquê, mas era dela que eu gostava.
Só tínhamos um problema nesse tempo, era quando andávamos de arco com gancheta os policias vinham-nos chatear por causa do barulho, o mesmo servia para lhe pôr uma rede em volta e ir para cima dos pontões que aqui existiam para pescar caranguejos.
Tudo isto para dizer que, onde eu nasci, também nasceu o Domingos, o Matos, o António Fernando, o Fernando e muitos outros, mas estes foram os que estiveram no mesmo tempo que eu na Guiné.
A partir dos bancos da escola, nos fomos separando lentamente uns dos outros, cada um com o seu destino, o meu foi começar a trabalhar aos 12 anos, mas nada impedia que não nos fôssemos encontrando, mais que não fosse para umas tacadinhas de bilhar, no café cá do sítio
Veio a vida militar e eu como destino, tive o HM241, lá parti.
HM 241 em Bissau
Já lá estava há 15 meses quando, na tarde de uma quinta-feira do mês de Setembro de 1969, um camarada vem ter comigo e me diz:
- Oh pá, vai ao pavilhão A, está lá um gajo que te quer falar, disse-me que te conhece.
Lá fui.
Tal é o meu espanto, quando lá chego, vejo o Fernando deitado na cama com um joelho todo lixado.
Como não podia deixar de ser, comecei por fazer a pergunta mais simples:
- Então rapaz, que te aconteceu, quando é que vieste?
A resposta que obtive foi simples e directa, fiquei de boca aberta e penso que os ditos quase me caíram ao chão.
- Tu é que me fostes buscar, nem me falaste, nem para mim olhaste.
- Eu?
- Sim tu, no Domingo, tiraram-me da avioneta, enfiaste-me dentro da ambulância, quando vi quem eras, tinhas fechado a porta, nem tempo tive para abrir a boca, quando chegamos aqui ao Hospital, outros me tiraram e foste-te embora.
Porra, tinha sido numa missão, extraordinária, de Domingo.
Em missão de socorro, perante as responsabilidades, ficávamos mesmo cegos. O auxílio era prestado com eficácia, independentemente de se tratar de um amigo ou desconhecido.
Um Abraço
António Paiva
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4629: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (9): Dois pequenos amigos de quatro patas
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Caro António Paiva
Não nos relatas como é que o teu amigo, ferido, reagiu depois das tuas explicações nem ficamos a saber se a recuperação foi ou não rápida. Mas isso seria outra história.
O que nos transmitiste foi que no desempenho do teu serviço o que tinha prioridade era a rapidez e a maior eficiência possíveis, ficando a amizade particular para depois, quando houvesse mais vagar (o que parece que não acontecia com frequência).
Em todo o caso é admissível que tenhas agido bem.
Um abraço
Hélder S.
Caro Hélder Valério
Tens razão, mas simplificando, vamos á história.
Na zona de Lisboa em que eu nasci,Beato, por eu lhe chamar zona pobre,não queria dizer que todos o fossem.
Haviam alguns,por os pais terem maiores possibilidades, faziam grupinho á parte, para não se misturarem com os mais pobres.Talvez cheirassem mal.
Havia um trio muito especial de meninos de bem que era composto por, Vitor, Carlos e Fernando (este que foi para a guiné) sendo este do grupo de três, o de melhor convivio,com quem eu me dava bem,mas não andaram na mesma escola em que eu andei.
Quando fui mobilizado para o Ultramar, destes três, só dois tinham entrado para a vida militar,
o Carlos e o Victor (sr.Aspirante), faço referencia ao posto pelo seguinte:
Certo dia,eu,já de camufulado vestido devidamente fardado, me dirigi para o café do sitio. Á porta estava o Victor,fardado, que de forma mais natural cumprimentei:
- Olá Victor, estás bom ?
Palavras prontas de Sua Excelencia:
- Aqui não está nenhum Victor, está um superior seu que deve ser cumprimentado militarmente.
Caiu-me mal, surpreendeu-me, mas sem pensar saio-me uma palavra:
- Vai-te foder.
E entrei para dentro do café, onde bebi minha bica, á saida ele me esperava, tivemos uma conversinha e tudo se resolveu.
Ele voltou para casa com o corpo que tinha, eu não fui para a prisão,alguns dias depois levantei vôo para a GUINÉ.
Isto é só para te dizer que,por vezes, os ricos esquecem o nome dos pobres.
Quanto á reação do Fernando, foi óptima,levou o raspanete por só me ter mandado chamar ao fim de 4 dias,mas eu penso que ele quando chegou ao Hospital se preocupou mais com os cuidaddos que iam ter com ele, do que pensar em mim.
Ele na segunda-feira, já tinha tentado encontrar-me, mas como não se lembrava do meu nome, perguntava por um Condutor que morava no Beato.
Demorou, mas cheguei,ficamos felizes os dois.Ele por me ver,eu por saber que não era assim tão grave o estado de saúde dele.
Ainda bebemos umas bujecas juntos, el 15 dias depois já estava nos Adidos, para seguir com destino a mais uma aventura.
Um abraço
António Paiva
Caro António P.
Obrigado pelos teus esclarecimentos.
Vivendo eu em Vila Franca e tendo depois vindo estudar para Lisboa, não foram poucas as vezes em que tomei e deixei o combóio em Braço de Prata. A zona do Beato não me foi estranha.
Achei também curiosa e assim relembrei, a caracterização social que fizeste do teu meio.
Por outro lado achei uma ternura a tua expressão "Isto é só para te dizer que, por vezes, os ricos esquecem o nome dos pobres". Por vezes?!!! Bem, sempre optimista, não é?
Um abraço
Hélder S.
Caro Helder
Se na minha expressão encontras-te a ternura,ainda bem. Pois posso-te dizer que, como foi o Fernando, se tivesse sido o Victor, por mim teria sido recebido da mesma maneira. Ele só não me lixou a vida por morarmos no mesmo sitio e sermos da mesma geração. Tristezas já haviam muitas, motivadas pela Guerra do Ultramar.
Quanto ao optimismo, acertas-te em cheio.
O último ordenado que recebi foi o do mês de Setembro,na segunda quinzena de Novembro peço suspensão de contrato de trabalho, em Janeiro podia cessar o mesmo, o que fiz, com direito á indemenização. Até hoje não recebi um centimo.
Apresentei queixas em vários sitios,mas os ricos é que tem o dinheiro, o poder e grandes conhecimentos, fazem parar o que querem.
O pobre, não tem dinheiro nem grandes conhecimentos, está lixado, nesta idade, espera pela morte calmamente.
Uns dias a trás um amigo me fáz esta pergunta:
" è da chuva que estás tão negativo?"
Agora posso responder:
Ñão, meu amigo, é da seca...aqui não pinga nada.
Um abraço
António Paiva
Enviar um comentário