quarta-feira, 13 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20969: Historiografia da presença portuguesa em África (209): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Lê-se e não se acredita como um depoimento deste teor aparece omisso na chamada bibliografia fundamental da Guiné. O autor é médico, acompanhou a delimitação de fronteiras depois da Convenção Luso-Francesa de 1886, tem comentários cheios de vitríolo, como aquele de na sua visita a Bolama ter encontrado o edifício mais sumptuoso, "pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aqui há nove anos como Guarda Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho".
Visitou a região sul ao pormenor, empolga-se com a beleza feminina, desvela o estado lastimável em que se encontrava a vila de Bissau e profere alguns dos mais amargos comentários que alguém escreveu sobre o desprezo em que era tida aquela colónia de belezas admiráveis e de recursos inexplorados. Absurdo não incluir este testemunho de João Augusto Martins entre o que de mais significativo se escreveu quando a colónia da Guiné se autonomizou de Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


“Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (2)

Beja Santos

No descritor reservado à Guiné-Bissau, na Biblioteca Nacional (com centenas de obras consultáveis), dá-se nota de uma publicação que nunca se vira referenciada em nenhuma bibliografia. Trata-se de uma edição da Parceira António Maria Pereira, a data é 1891, tem ilustrações primorosas para os três territórios visitados, acicata-se a nossa curiosidade, a Guiné autonomizara-se recentemente de Cabo Verde, que surpresas nos reserva este autor, que se descobrirá, mais adiante, que colaborou no levantamento das fronteiras da Guiné Portuguesa?

Pauta-se por uma escrita cuidada, novecentista e sem travessuras, não esconde João Augusto Martins que está rendido às belezas naturais. Ficou em suspenso, no texto anterior, o que ele nos diz sobre a vila de Bissau, que ele caracteriza por “pequena, acanhada, de construções raquíticas e vulgares, imunda de todo o indiferentismo das municipalidades de África, somada a todas as inalações do lodo, da catinga e do azeite de palma”.
Dá-nos um quadro movimentado da vida comercial:
“Existem aí casas francesas, alemãs, americanas e inglesas, além de muitos pequenos negociantes, na maior parte de Cabo Verde, e concorrem à praça todos os dias, não só os povos que a avizinham, mas muitas das tribos afastadas que a abordam em grandes canoas sui generis pela construção, os quais vindo permutar por tabaco, aguardente, fazendas, etc., os produtos de agricultura e objectos originais da indústria indígena, dão um cambiante nitidamente selvagem a esse limitado quadro da vida africana, curiosíssimo pela variedade de penteados e costumes de seus personagens, interessante pela tatuagem com que se enfeita o preto, pitoresco pela diversidade dos tipos, dos penachos, das gesticulações e das vestimentas, profundamente impressionista no género grutesco, e constituindo no todo um espectáculo original.
Para todo esse importante comércio de permutações que se avalia em centenas de contos de réis, tem apenas como meio de acesso as duas portas de Pidjiquiti e Puana, abertas na face oeste e este da muralha, e uma raquítica ponte de cibes pertencente à casa Buttman, que, sendo pouco extensa, apenas pode ser utilizada na praia-mar, o que obrigou a mim e aos meus companheiros de viagem a sermos desembarcados às costas de um preto”.
E tece ainda o seguinte comentário, falando da fortaleza de S. José da Amura:
“É nesta superfície de algumas centenas de metros quadrados, roubada toda ela sem método e sem plano à vegetação pujante que a povoava outrora, que reside hoje mais ou menos desconfortavelmente instalados, desde o Governador até esse formigueiro de empregados subalternos que a padrinhagem e o critério de anichamento nacional sabe acomodar em todas as nossas províncias ultramarinas, sem escolha de aptidões nem escrúpulo de competências, e que constituem o motivo preponderante do relaxamento no serviço e a principal causa do depauperamento dos cofres públicos”.

Sublinha-se a vermelho a Paliçada da Puana, no lado oposto ao Pidjiquiti.

Não deixa de comentar a farsa da vida administrativa, o quadro de dissolução e rebaixamento moral em que ninguém confia nos direitos que são conferidos pela lei. Lembra figuras patrióticas como Honório Pereira Barreto, lamenta o ostracismo a que está votada a Guiné, o desprezo com que Lisboa trata os médicos, os farmacêuticos e o pessoal dos hospitais que procuram defender a saúde em climas tão inóspitos como o da Guiné. Descobrimos que João Augusto Martins é médico, foi a Bolama para socorrer as vítimas da epidemia de varíola que tantos danos acarretou à Guiné, mostra-se tocado pelo acolhimento que obteve e formula nova crítica:  

“Esta província tida e mantida na nossa elaboração nacional como um depósito para onde despreocupadamente se esvazia desde muito o lodo e as imundícies colhidas nas dragagens da nossa rotina legislativa, sob a forma militar de incorrigíveis e de devassos deportados civis, a Guiné, constituindo-se em província independente, plagiou desde logo a toilette pretensiosa da sua vizinha, enfeitando-se de todas as complicações burocráticas possíveis e fazendo construir na sua capital desde a igreja onde exibe o seu Deus ao som dos clarins e das músicas marciais até ao hospital onde agasalha os seus doentes à luz de uma parca economia, tíbia de conforto e de consolações. Edificou a ferro e tijolo um edifício pesado, desprotegido de sombras, sem quarto de banhos, sem casa de autópsias, sem casa mortuária, sem meios de esgotos, nem canalização de águas, e continuou a sustentar ao mesmo título esse pardieiro a derrocar-se, onde se agasalham em Bissau os desgraçados doentes que preferem morrer à sombra, mesmo em risco de desabamentos prováveis. É ali, nesse pavilhão e nesse estábulo da patologia, que se acotovelam indistintamente à temperatura média de trinta graus…”.

Não esconde o seu pesar pelo facto de a Convenção Luso-Francesa de 1886 nos ter subtraído a parte da Senegâmbia chamada Casamansa, considera que a delimitação da Guiné foi um ato de leviandade política, confessa que chorou amargamente quando arreou a bandeira portuguesa em Zinguinchor e fala da outra fronteira:
“Ao sul e a leste ficámos cercados pelo território de Ia-Ia e Almami e pelos franceses na zona do litoral onde têm um posto em Kaki, ponto onde começa a linha de delimitação sul. Isto segundo o Tratado de Paris, sem sabermos, nem podermos asseverar, por não estar isto deliberado, se os franceses conseguiram ou não ficar senhores do rio Secujak, afluente sul da Casamansa. Tendo, pois, os franceses, o rio Casamansa ao norte, o rio Nunes ao sul, e as facilidades que lhe conferem as influências sabiamente exercidas sobre Almami, rei do grande território dos Futa-Djalon, é claríssimo que devia suceder, como efectivamente está sucedendo, que as nossas pautas, os nossos impostos, deixassem de ter uma aplicação prática pela larga franquia que dão ao comércio as extensas fronteiras indefesas e que derivar-se toda a concorrência dos indígenas, dos nossos mercados para outros pontos onde as mercadorias de principal consumo (tabaco e álcool) não estão sujeitas aos exorbitantes impostos diferenciais e onde a catequese de uma sábia diplomacia os sabe angariar.

Daqui o facto reconhecido e provado da decadência última a que chegou a Guiné; daí o terem desaparecido subitamente um grande número de casas estrangeiras estabelecidas em Bolama; daí o ter-se anulado quase o seu comércio; daí finalmente a morte irremediável de uma província com tantos elementos de riqueza e que trazendo à metrópole um encargo anual de 128.500$000 réis, continua com um estadão de secretarias e funcionalismo ocioso, mas que não tem uma orientação nem vida própria e que ninguém trata de fazer viver.
Ora quando um país sem condições de garantia nem de interesse, pouco a pouco se desmembra em benefício de outras nações, dá lugar a que todos tenham o direito de supor que desmoralizado e enfraquecido não pode mais utilizar com seus esforços de colonização a parte territorial de que se sequestra. Dá lugar, indiscutivelmente, a que todo o português de hombridade e de carácter tenha o direito de pedir a venda das colónias improdutivas, como todo o médico tem o dever de pedir a amputação de um membro esfacelado quando todo o organismo enfraquecido já o não pode galvanizar de vida”.

E não deixa de comentar o cinismo daqueles que gritavam contra o Ultimato Inglês e protestam contra as espoliações a que Portugal fora submetido.
A despeito de se tratar de um comentário pessoal, é de uma enorme riqueza de observação e fica-se com o quadro claríssimo do estado crítico da Guiné no arranque da sua autonomização de Cabo Verde.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20948: Historiografia da presença portuguesa em África (208): “Madeira, Cabo-Verde e Guiné”, por João Augusto Martins, 1891 (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

António J. P. Costa disse...

Bom dia Camaradas

Ora topem esta introdução que vem no texto:

“É nesta superfície de algumas centenas de metros quadrados, roubada toda ela sem método e sem plano à vegetação pujante que a povoava outrora, que reside hoje mais ou menos desconfortavelmente instalados, desde o Governador até esse formigueiro de empregados subalternos que a padrinhagem e o critério de anichamento nacional sabe acomodar em todas as nossas províncias ultramarinas, sem escolha de aptidões nem escrúpulo de competências, e que constituem o motivo preponderante do relaxamento no serviço e a principal causa do depauperamento dos cofres públicos”.

Comentários para quê?

A Colonização Portuguesa no seu melhor. Há uma contradição entre "as nossas províncias ultramarinas" e tudo o resto que se diz relativamente ao "nosso comportamento" que ali está descrito. Aquela da padrinhagem e anichamento é bem observada...
Este texto, com 129 anos, fala por si e sem censura (positiva ou negativa). Por isso merece a nossa confiança relativamente ao estado do TO daquela PU no início da guerrilha e no modo como ela evoluiu, onde se inclui a atitude dos guineenses em relação aos portugueses.
E mais: Por favor comecem a recusar aquela atitude "benigna" do Amílcar que não era contra os portugueses, mas sim contra o colonialismo...

Um bom dia, um Ab. e bom confinamento
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Este médico testemunha estas peripécias ultramarinas em 1891, que coincide com o ano em que estalou a revolta republicana de 31 de janeiro de 1891,no Porto.
Quem é que queria saber de Bolama ou Bissau, em pleno terreiro do Paço, naqueles tempos?

Nesse tempo já tinham ido os mapas cor de rosa verdes e amarelos e às riscas e não sabemos a cor do mapa de Casamance

Aliás, desde que o Napoleão aqui veio, e os ingleses mandaram o Dom João VI para o Brasil, que quem mandava e decidia eram os súbditos da Rainha Victória.

Como ainda houve dinheiro para enviar em comissão ao ultramar este médico é que é de admirar.

Claro que pior e com mais desordem no país foi o que se passou a seguir com os republicanos, aí é que podemos imaginar o que foram os cuidados com a exploração/colonização do ultramar.

Como os vizinhos nos deixaram aquelas "sobras", a que nós lhe chamavamos colónias portuguesas, e mais tarde provincias ultramarinas, é que é de admirar.

Penso, tenho direito a pensar, que a partir de Dom Carlos houve dois nomes os principais responsáveis pela manutenção dessas colónias como portuguesas, consequentemente, mais tarde, PALOP's.

Foram esses dois nomes: Norton de Matos, primeiro e depois o seu adversário o Antoninho da calçada.

Sem eles, a nossa geração, hoje só tinhamos os virus do que falar.



Valdemar Silva disse...

Faltam as referências, mas não faltarão oportunidades, de Beja Santos nos dar a conhecer outra faceta do povoamento, neste caso, da Guiné, por presos condenados ao degredo nas colónias.
'Condenado ao degredo nas colónias' era uma pena aplicada a autores determinados crimes públicos, ex. Zé do Telhado (em Angola) no tempo da Monarquia, e políticos, ex. Sarmento de Beires (em Timor) já na República.

Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Rosinha
A 'manutenção' do Antonino, também conhecido por António da calçada, era bem conhecida, e mal disfarçada, como se pode observar:
'As terras coloniais, ricas, extensas e de fraquíssima densidade populacional, são o natural complemento da agricultura metropolitana, nos géneros pobres sobretudo, e das matérias primas para a indústria, além de fixadores de uma população em excesso daquilo que a metrópole ainda comporte e o Brasil não deseje receber'
"Discursos e Notas Políticas" (1943-1957) Coimbra Editora.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz