sábado, 16 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20980: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (10): Feliz em África - I (em jeito de biografia)

1. Em mensagem do dia 27 de Abril de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, dedicada ainda ao confinamento.


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 9

Feliz em África (em jeito de biografia)

À medida que se aproximava o fim da comissão de serviço militar na Guiné, aumentava o sonho de me isolar numa ilha deserta. Era aquele sonho supremo de vir a ter uma cana de pesca, um amor e uma cabana. O cansaço, a saturação e os traumas da guerra, iam-se acumulando e provocando, cada vez mais, a necessidade dessa fase de grande repouso.


Todavia, quando regressados dessa ingrata missão, sentimos que os sonhos foram logo ultrapassados pelas aceitáveis realidades, pelo amor presente, pelas velhas amizades e por um envolvente nacional comodismo. No meu caso, não foi difícil assumir um emprego.
No entanto, mesmo a trabalhar e mantendo algum espírito de revolta e contestação (mesmo não sendo universitário), em Abril de 1969 juntei-me a amigos em Coimbra a apoiar a justa luta estudantil, tal como já o havia feito no ano anterior durante o período de férias durante a guerra na Guiné.

Em poucos meses somos acordados com as tristes realidades que continuam a prevalecer no nosso País. A leve esperança em Marcelo Caetano que, apesar do seu aparente fulgor, não nos convencia estar orientado para a mudança desejada. Portugal isolava-se cada vez mais, a guerra colonial continuava, os seus mortos e estropiados aumentavam e os trabalhadores fugidos também. Continuam a reinar os servidores do regime, seus bufos e seus lacaios. A Igreja Católica colabora, os ricos engordam e os pobres resignam-se. E continuam a imperar os medos, tabus e preconceitos.

As coisas não estão bem, mas também não há força nem grande disposição para lutar. Insatisfeito com a situação profissional surgida e seu impacto no ansiado desfecho amoroso, aproveito a visita do empresário Sr. Celestino, irmão da amiga Professora Patrocínio, que estudara com a minha Gilda, que nos incentivou e ajudou a irmos para Cabinda.

Pelo que ouvia falar sobre Angola e os angolanos, há muito que via ali a tal “ilha tropical”, de mar calmo, areias finas e coqueiros junto da água.

O sonho de ir para uma “ilha deserta” veio a concretizar-se

Vendi o carro à pressa, por baixo preço e parti de barco para Luanda. Embora “desacompanhado”, beneficiei de uma óptima viagem, em 1.ª classe, que muito me agradou. Lembro-me que numa das festas diárias a bordo, foquei a miúda mais linda que ia no barco. Ela também se afastou um pouco a meio da festa e veio encostar-se ao gradeamento, perto de mim, beneficiando também da agradável brisa do mar. Não resisti à tentação de lhe dirigir a palavra:
- Desculpe, a menina sente-se mal?
Ela voltou-se toda receptiva, posicionou-se mostrando todo o seu charme e a sua deslumbrante beleza, e respondeu:
- Sein, aum pocochaeinho.

Ainda trocámos algumas palavras, mas aquele sotaque madeirense saído de uma tal beleza, caiu-me que nem o tal “balde de água fria”.

Chegado a Luanda, aceitei a oferta de uma miúda que me levou para uma pensão familiar. Fui comer à Restinga e fui ao cinema. Quando cheguei ao quarto, revi tanta coisa boa que me atraía, que me parecia prender a ficar por ali. De repente, reajo e assumo: esquece, é hora de mudar de vida, vais para Cabinda e é lá que esperas receber muito brevemente a tua Mulher.

Com a Câmara Municipal ao fundo

O amigo Celestino que me levou para lá, era sócio do melhor Hotel de Cabinda e foi lá que ele me mandou aguardar. Por curiosidade, refiro que conheci ali o famoso Joselito, meu ídolo de infância, que passara por Cabinda em digressão artística.

Desde logo conheci, nos primeiros dias, os seus amigos, que eram das pessoas mais importantes de Cabinda.
Pensava ingressar na empresa Cabinda Gulf Oil Company. Porém, nessa mesma semana, a empresa despedira mais de 700 pessoas, em virtude de ter terminado a fase necessária à sua estruturação.

À esquerda, a fachada lateral direita do edifício da Câmara Municipal de Cabinda

Fui para a Câmara Municipal. No meu concurso, para Aspirante, entre outros documentos, tive que juntar a Caderneta Militar. Quando o secretário ma devolveu, após a minha admissão, teve o cuidado de realçar:
- O melhor documento que o Executivo valorizou foi a sua Caderneta Militar, com um louvor.

Quem havia de dizer que aquilo que eu mais tinha desvalorizado na guerra, me viesse a ajudar? Todos os militares devem lembrar-se que na sua maioria os louvores eram injustos (na sua justificação e na sua distribuição). E então voltei a lembrar-me daquele discurso público do meu Capitão, incentivando os militares:
- “Ainda vamos ver o nosso Furriel Silva de Cruz de Guerra ao peito”.
Ao que eu, sem a educação devida, respondi:
- “Não meu Capitão, eu não quero ser Cantoneiro. Nunca serei Funcionário Público”.

Primeira patuscada em Cabinda, ao norte, junto a um lago. Funcionários da Câmara Municipal com Administrador local.


Em Cabinda passei dos melhores anos da minha vida. A progressão profissional na Câmara Municipal foi notória. Minha mulher chegou e foi ensinar para a Escola Secundária. Nasceu o primeiro filho e com ele uma estabilidade emocional inigualável.

O meu filho identificou-se cedo com “barman”

Petiscando com o meu sogro, em dia de caça, no norte de Cabinda

Fomos à caça para o norte de Cabinda. Elefantes? Só lhes vimos as marcas. Mas deu para ver que o meu sogro era bom atirador. Aqui, abateu uma abetarda.

Com os sogros junto à praia das Missões (Dez 1971)

Passaram-se os primeiros dois anos sem ler, ouvir e pensar em guerra ou em política. A cabeça rejeitava tudo. Apenas mantinha alguma ligação ao desporto.
Afinal a desejada “ilha” existia mesmo! E os coqueiros também! Passava o tempo livre junto do mar e sempre com a cana de pesca.
Criámos o clube da Câmara, promovemos o desporto e desenvolvemos boas amizades.


Pratiquei futebol de salão e fui Campeão na Pesca. Fomos disputar o título de Angola, num concurso na praia da Caotinha, entre Lobito e Benguela. Fui “pescado” para a delegação da Direcção Geral dos Desportos, onde também colaborei nas suas organizações.

Como amante da Sétima Arte, ia quase diariamente ao cinema. E, quando frequentei uma acção de formação de Cinema Amador, fui convidado a integrar a equipa de Cinema do Rádio Clube de Cabinda. Como seu representante, participei no Congresso/Festival do Cinema, realizado em Moçâmedes (1972).

Os anfitriões de Moçâmedes levaram-nos ao Deserto do Kalahri

Quanto mais tempo passava, mais feliz me sentia em Cabinda. E nós íamos vivendo melhor e mais folgadamente.

Meu cunhado Eugénio (militante de esquerda) foi preso para Caxias. Meus sogros, que já nos haviam visitado, viviam isolados e tristes. Foi nessa altura que pensámos na alegria que eles sentiriam se voltassem a ver o neto Zé Tó, com 9 meses (nosso filho).
E a verdade é que essa alegria resultou. E como a criança ainda não fora baptizada, toca de organizar esse evento com o padre de Espinho, nosso amigo.

Porém, à medida que íamos passando o tempo sem ele, fomos sentindo uma angústia crescente, que culminou com a sua vinda, mais de 3 meses depois. Os reflexos emocionais sentidos, ainda hoje se manifestam, sempre que pensamos na “inconsciência daquela aventura”.

Quando o Zé Tó chegou não aceitou o colo dos pais.

Continuaram aqueles anos espectaculares. Basta referir que eu não sentia necessidades de gozar férias. Cheguei ao ponto de confessar, tal como dizia o amigo empreiteiro, Sr. Claudino:
- Ah, não! Não preciso de ir lá, ao puto (Portugal), porque não me esqueci de nada.

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 2 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20932: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (9): “Operação Confinamento II"

8 comentários:

Zé Manel Cancela... disse...

Este meu (nosso)amigo é como vinho
do porto,quanto mais velho,melhor.
Linda historia mais uma,e esta é mais valiosa
por retratar um retalho da tua vida
em Angola...Parabens,e não pares de escrever..
Um abração,e INTÉ..

Ze de Lamego. disse...

Caro Ze! Li e claro que gostei.Não sou pessoa de grandes elogios,mas quero que continues a ser feliz por muitos anos.
Aceita um forte abraço de Ze de lamego

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Que vida boa era a de... Cabinda! E, depois, adoro a tua descrição do teu concurso a aspirante da Câmara Municipal de Cabinda... Naquele tempo, na função pública, começava-se uma carreira técnica cmo aspirante... Era assim em toda parte e em todos os setores da administraçã pública, local, regional e central...

Conta-nos, depois, como foram os tempos dramáticos do retorno... LG

Valdemar Silva disse...

A carreira técnica de 'Empregado de Escritório', começava aos catorze anos (eu comecei precocemente aos 12) como Paquete de Escritório, continuando os estudos à noite aos dezasseis passava a Praticante, aos dezoito a Aspirante e era normal interromper para ir para a tropa e quando regressava passava a 3º. Escriturário, depois ia evoluindo por mérito ou concurso dado que as promoções obrigatórias só apareceram (julgo) depois do 25 de Abril.
No sector público não sei como era, mas julgo que à partida seriam decretadas vagas que eram preenchidas por concurso.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

"Quanto mais tempo passava, mais feliz me sentia em Cabinda".

É fácil fazer estas afirmações, difícil é dar explicações a um país que vivia em "agonia", explicações que este país entendesse.

E ser retornado, foi outra situação que uns tantos priveligeados usufruiram, uns "gulosos"!

Ricardo Figueiredo disse...

Bom dia, Zé, espero que este texto,seja o começo de uma autobiografia.
O percurso da tua vida, calculo,estar recheado de episódios como este que sumariamente narraste na tua passagem por Cabinda, período marcante da tua vida,em que a felicidade,o amor e o fruto deste,o nascimento de teu filho, são pontos altos,que jamais se esquecerão.
Se a isto juntares a tua infância, adolescência, juventude,apimentadas pela tua passagem como timoneiro da canoagem portuguesa e outros factos marcantes,teremos,estou certo,a primeira autobiografia de um Bandalho.
Força,o que custou,foi o arranque.
Li o comentário anterior do António Rosinha e não percebi o que ele pretende dizer com as afirmações feitas ao teu post. Desconhece o António Rosinha que foste um militar garboso,que cumpriste o SMO na Guiné e que só depois rumaste a Angola , como civil,onde ajudaste à reconstrução daquela parcela territorial,como funcionário administrativo numa edilidade à qual concorreste por concurso público ? E não devias ser feliz em Cabinda porquê ? Se estavas ao lado do teu amor , se foi lá que nasceu o teu filho, se foi lá que decidiste morar. Só não eras feliz se não soubesses aproveitar a vida .
E que culpa tinhas tu de o País estar em agonia ? Eras ou foste co-responsável por isso ? E já agora, o António Rosinha fala nos retornados , a que propósito ? Por acaso já lhe disseste que não foste retornado. Já lhe explicaste que muitos dos habitantes das antigas Províncias Ultramarinas ,na sua maioria, eram Portugueses de gema , nados e criados, no tal país que vivia em agonia e que quando regressaram foram despojados de todos os seus bens e que foram contemplados com autenticas esmolas dadas pelo IARN ? É verdade que uma percentagem pequena abusou , mas não se pode confundir uma árvore com a floresta
Aborreceu-me o comentário absolutamente deslocado do teu texto !
Aquele abraço.

José Ferreira disse...

Caros Camaradas
Normalmente, não acrescento comentários aos meus textos. Confesso que deveria ser mais delicado com os comentadores, especialmente com aqueles que abonam o meu esforço.
Agradeço ao Zé Manel Cancela e ao Zé de Lamego, pelos elogios e incentivos.
Ao Luís Graça, acrescento que a vida era boa MAS, conquistada a pulso, com muito trabalho e muita dedicação. No funcionalismo de então, só havia concurso para vagas. O que levava muita gente bem habilitada profissionalmente, a atingir a reforma como 3º Oficial. As vagas em Cabinda (e Angola) deviam-se ao crescimento galopante das cidades.
Ao Valdemar Silva, comento que a vantagem nos concursos é que havia uma cláusula favorável para quem já desempenhava as funções com satisfação há mais de 6 meses. As promoções automáticas vieram depois do 25A. A criação das Empresas Públicas/Municipais tem muito a ver com a necessidade de se colocarem Políticos/Técnicos(?) logo no topo, sem qualquer carreira.

(Continua)

José Ferreira disse...

(Continuação)

Antº. Rosinha

Eu era cada vez mais feliz, por mérito próprio e sem necessidade de ultrapassar/usurpar/prejudicar os direitos de ninguém. Antes pelo contrário, dava o meu melhor com entusiasmo e proveito, da minha entidade patronal e da sociedade em que estava inserido.

Como português vulgar, trabalhador e patriota, já tinha dado muito de mim. Também já tinha demonstrado a aversão e a antipatia ao regime vigente. Não me sentia capaz de ir mais além. Vivia com alguma expectativa e a prova evidente é que troquei o período mais feliz da minha vida pelo regresso às origens, provocado pelo 25A.

Quanto aos retornados, portugueses que trabalhavam em território nacional, que se esforçavam no desenvolvimento ímpar das províncias onde viviam, e que não faziam vida de emigrantes (até porque estavam impedidos de enviar os proventos do seu trabalho), penso que foram muito injustiçados. Foram acarinhados no seu regresso/expulsão. Porém, não se calaram no seu descontentamento e em pouco tempo mostraram as suas capacidades de trabalho exemplares. Daí e do seu antagonismo à política vigente (justificáveis), até às manifestações/perseguições de inveja e de ideologia, foi rápido. Nota: Isto é apenas a minha opinião básica. Nem vamos falar das excepções e dos oportunismos.

Eu não me considero retornado. Vim em Julho de 1974, entusiasmado com o 25A. E quando fui a Lisboa em fins de Dezembro de 1974, obriguei a rectificarem o meu último vencimento, uma vez que pedi a demissão a partir do dia 20, precisamente na dia que terminavam as férias de graciosa.

Ricardo Figueiredo

Obrigado pelos teus habituais elogios e incentivos à minha "produção literária".
Não acrescento nada ao teu texto, mas prometo que vou escrever mais qualquer coisa que se enquadre nestes assuntos

Grande abraço para todos do
JFS