Quadragésimo oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 18 de Novembro de 2015.
Vamos para Norte
Com atenção ao trânsito, ouvindo música, conversando
com a nossa companheira e esposa, viajámos mais de
setecentas milhas na óptimas estradas do
sul. Parecem pistas, onde se viaja sem custos até entrarmos nos tais estados no norte, encostados ao
Oceano Atlântico, bastante comerciais e industriais. Aí começamos a pagar por usar as estradas rápidas, tal
como na Europa, as tais “Portagens” e, a estrada não
apresenta um bom estado de conservação, não se
comparam com as do sul, a única razão compreensível, é
que necessitam de reparação frequente, pois o inverno no
norte é rigoroso.
Já passámos Washington, é o mesmo que passar de sul
para norte, não sabemos se ainda existe a tal influência
da federalização das dívidas contraídas ao longo da
guerra de independência, pelos estados, onde, os estados
do sul já haviam pago a maior parte das suas dívidas, de
que já falámos no texto anterior, o que é certo é que ainda
hoje, no ano de 2015, no sul, viajamos pela estrada rápida
número 95, em óptimo estado, sem pagar qualquer
“portagem”, a partir de Washington, existem curvas
acentuadas, descidas, subidas, túneis, onde se paga
“portagem”; pontes, onde se paga “portagem”; troços de
estrada em melhores condições, mas também, onde se
paga “portagem”; então se passarmos o estado de Nova
Iorque, continuando para norte, com várias pontes e
túneis, continua-se a pagar “portagem”, chegando a
pensar algumas vezes que era preferível viajar de avião,
pois compensava.
Mas os emigrantes que regressam de visita aos estados
do norte, onde tiveram residência e ainda estão os seus
familiares e amigos, querem viajar de veículo automóvel,
pois no regresso querem parar em Nova Jersey, na
histórica cidade de Newark, na portuguesa “Ferry Street”,
e comprar, além de bacalhau e azeite, talvez, latas de
conserva de atum dos Açores, marmelada, rebuçados
“São Braz” ou sabão “Clarim”, para levarem para sul,
onde agora vivem, e quem sabe, talvez lembrar a Inês,
aquela portuguesa espanholada, que além de fumar
“Malrboro” e, tudo o que já dissemos a seu respeito,
também usava, pelo menos ao fim de semana um
perfume exótico, parecido com aquele que usavam as
filhas do Libanês, lá na vila de Mansoa, na então Guiné
Portuguesa, que lhe trouxe a Eulália, que trabalhava na
“fábrica dos perfumes”, que vivia maritalmente com o Zé
Paulo, um rapaz muito educado, que servia ao balcão no
“Bar do Minhoto”, no seu tempo livre, pois trabalhava a
tempo inteiro na construção, fazendo parte do “gang” do
Manuel Murtosa, marido da Gracinda, mulher honrada e
respeitadora, que não falava na vida de ninguém, mas
não perdia qualquer oportunidade para fazer gestos eróticos com os dedos da mão, piscar o olho ou apalpar o
rabo ao Zé Paulo, que era um jovem que ao chegar do
trabalho na construção, tomava banho, arranjava as
unhas, vestia com elegância, com uma camisa branca e
um laço preto, com que atendia ao balcão do “Bar do
Minhoto”, onde sem o querer, dada a sua posição,
facilitava encontros para, entre outras coisas, trabalho,
pois sabia quem precisava de força laboral e quem
procurava trabalho, sabia dos problemas, alegrias e
desgostos de quase toda a comunidade, indo muitas
vezes levar a casa alguns emigrantes que por lá ficavam
a beber até mais tarde, como por exemplo o “Carlos das
Pombas”, pois viviam no mesmo edifício.
Este bom homem, o “Carlos das Pombas”, cujo apelido
lhe foi dado porque trabalhando na “fábrica da
reciclagem”, que se localizava próximo de algumas
pontes, lá para os lados do Porto de Newark, vivia
amargurado, dizendo que tinha perdido a sua honra porque
um dia, vendo centenas de pombas, que viviam debaixo
das já referidas pontes, pensando “numa valente
arrozada”, pediu a alguém uma espingarda e, aquilo era,
cada tiro meia dúzia das bonitas aves que vinham parar
ao chão, alguém passou por lá, talvez sentindo-se
molestado, nunca ninguém soube, ouviu tiros, avisou a
polícia, uns minutos depois passa por lá um carro policial,
em silêncio, com dois polícias armados, que vendo um
homem de caçadeira na mão, naquele local, onde a
ramagem quase cobria um homem e o terreno era
alagadiço, logo pensaram tratar-se de algum “ajuste de
contas da máfia”, o melhor era irem embora com o
mesmo silêncio com que vieram, contudo, com alguma
coragem, de pistola em punho, foram-se aproximando e,
ainda a uma certa distância, ficaram algo surpreendidos,
ao verem o Carlos a descalçar as botas, tirar as calças e
ir em cuecas, apanhar uma pomba à água, que tinha
caído ao lado do rio e ainda esvoaçava.
Quando o Carlos se volta, ainda dentro da água, em
cuecas, ao ouvir os polícias ordenarem-lhe prisão e para
que fique quieto, mudou a cor do seu rosto, ia-lhe dando
uma tontura que quase mergulhava na água, largou a
pomba, começou a tremer, tendo um dos polícias
entrando na água para o socorrer, claro, os polícias
esperaram que se vestisse de novo, foi algemado e
levaram-no preso.
Toda a Ferry Street soube da desgraça do Carlos, a sua
esposa, a Lucinda, que trabalhava na “fábrica dos
perfumes”, juntamente com a Eulália, foram à esquadra
em seu socorro, primeiro com o senhor padre, da Igreja
Nossa Senhora de Fátima, que falava muito bem inglês,
que era um português do Bunheiro, uma localidade
próxima da vila da Murtosa, em Portugal, depois logo
apareceu o sargento da polícia, filho de portugueses
nascidos no Minho, que o libertaram com a
responsabilidade de se apresentar ao juiz no dia seguinte,
que derivado ao bom comportamento anterior, lhe
confiscou a arma, sentenciando-o, entre outras restrições
para o futuro, com uma multa por não ter licença de usar
arma de fogo e uma pena de serviços comunitários por o
período de algum tempo, mas a partir desse momento foi
sempre um homem amargurado, não se cansando de
dizer que tinha sido preso em cuecas e que era agora a vergonha da família.
Ferry Street, Ferry Street!
Tony Borie, Dezembro de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15483: Libertando-me (Tony Borié) (47): É Dezembro, vamos ao Norte
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
...procedimentos e culturas que se chocam fizeram do homem das pombas e de muitos outros homens a vergonha da família. Histórias como esta dariam um livro de horrores comunitários.
Um abraço cheio de Natal para o meu vizinho do sul.
José Câmara
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