quinta-feira, 17 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9913: Estórias avulsas (59): Uma ida à lenha que ia estragando o almoço (Manuel Carvalho Passos)

1. Texto e fotos do nosso camarada Manuel Carvalho Passos* (ex-Soldado do Pel Rec / CCS / BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/73), chegado até nós através do nosso camarada Juvenal Amado:


UMA IDA À LENHA QUE NOS IA ESTRAGANDO O ALMOÇO

Camaradas, são já passados alguns meses após a minha apresentação à Tabanca Grande.
Resolvi relatar um acontecimento e assim contribuir com esta memória para o grande colectivo que é o nosso Blogue.

Em Galomaro passei alguns bons momentos de amizade, camaradagem e também alguns dos piores da minha vida. Mas hoje vou falar dos bons.

Ao ver uma foto da malta que ia à lenha, lembrei-me de uma das muitas peripécias por que lá passei. O Furriel Castro mandou chamar alguns elementos do meu pelotão onde pontuavam o Silva dos Carvalhos e o Ferreira, rapaz de Viseu com quase 2 metros de altura.

Ora eu tinha recebido 1000 pesos de uma tia que estava na África do Sul, sim porque aqui na Metrópole não era fácil alguém me mandar assim mil palhaços. O tempo já era de vacas magras!!

Esposa e neta do senhor Regala

Quando me vi com esse dinheiro todo, tratei de convidar os dois para almoçar no Regala. Não me lembro se foi frango ou bife com batata frita, mas verdade é que a D. Maria Regala cozinhava como ninguém. O almoço foi bem regado com um vinho branco muito fresquinho, para aliviar o calor do piri-piri e rematámos com um o dois whisky cada um, pois nunca nos fazíamos rogados e o treino era muito.

Mas a coisa não ficou por aí e quando nos foram chamar para o trabalho, já nós estávamos de barriga encostada ao balcão da cantina, com uma bazuca de litro bem fresquinha. Chega o Sertã e diz-nos que o Furriel Castro andava à nossa procura e que estivéssemos à porta de armas dentro de dez minutos, coisa que não entrava nos nossos planos naquele momento.

O Ferreira escondeu-se na padaria, e eu e o Silva fomos para o posto junto do qual os hélis poisavam. Instruímos o Sertã para dizer que não nos viu.

Como não nos podíamos tornar invisíveis, o Lopes que também estava escalado, foi dizer ao furriel que se nós não fossemos ele também não ia. Andaram à nossa procura, mas não deram connosco e assim tiveram que ir sem nós.

O Lopes não se livrou de ir, com os resultados que se verão.

Vimos a coluna a sair e voltamos para a cantina acabar com a cerveja, quando somos surpreendidos pelo furriel. Passou-nos um raspanete de todo o tamanho. Contamos-lhe o que tinha acontecido e onde nos escondemos, ele muito pronto e com ar de gozo diz-nos: “para a próxima levais uma porrada se não me convidarem para do almoço”.

Só que o Lopes ficou tão bravo, que andou uns dias a perguntar ao furriel se ele tinha participado de nós e claro o furriel disse que sim, mas que o Comandante ia pôr a participação no lixo, porque o Passos tinha uma cunha e estava recomendado. Na verdade a cunha era uma realidade, a ponto de me terem oferecido o lugar na cantina de Galomaro e assim ser retirado do serviço no mato.

Quando chegamos Galomaro o Comandante mandou-me chamar, fez-me a proposta para a cantina e disse-me que não podia fazer melhor. Eu recusei o lugar pois preferia estar no pelotão, com os meus amigos mesmo tendo que ir para o mato.

Nunca me arrependi e só tive que assinar uma carta onde ele escreveria ao Comandante do Tribunal Militar de Bissau a dar conta pois era a pessoa que por mim intercedera.

Esta é assim uma pequena estória na minha passagem por Galomaro. Podia ter passado melhor, poderia não ter visto o vi, mas hoje teria alguma dificuldade em encarar os meus antigos camaradas de armas, se naquela altura tenho escolhido a segurança da cantina.

Coluna para o Saltinho > Capitão Rolin Duarte, Cabo Ferreira, Silvestre e Márcio

A partir da esquerda: Silva, Passos, Ivo e Ferreira

Do lado esquerdo: Passos, Ferreira Silvestre, Sertã e Caramba. Do lado direito: Félix, Furriel Santos, Castro e Sacristão

Fotos (e legendas): Juvenal Amado © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2012). Todos os direitos reservados

Um abraço a todos
Manuel Passos
Pel Rec 3872
Galomaro
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6958: Algumas fotos de camaradas do BCAÇ 3872 (Manuel Carvalho Passos)

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9792: Estórias avulsas (58): Fotos de Bedanda (Luís Gonçalves Vaz/Mário de Azevedo)

4 comentários:

José Botelho Colaço disse...

É nestas pequenas coisas que se vêm a honestidade dos homens de H grande.

Um alfa bravo Colaço.

Luís Graça disse...

Camarada Carvalho Passos:

1. Antes de mais, deixa-me congratular-te por teres pago a tua "joia" de entrada... na Tabanca Grande (TG): além das duas fotos da praxe, a tal história como mandam as NEP do blogue...

Estamos quites, tu e a TG... Mas, como já vi que tens jeito, talento, arte & ciência como contador de histórias, ficamos de olho em ti... Se prometeres que escreves 6 (seis) histórias do teu tempo de Galomaro, abrimos-te já uma série, com o teu nome... Olha, que infelizmente não é para todos...

2. Agora vamos à tua primeira história, e sobtretudo ao final que me tocou mais... Este blogue foi feito para isso mesmo: para partilharmos histórias, memórias, sentimentos, afetos, emoções... desse tempo em que tínhamos 21, 22, 23, 24 anos... E que já lá vão e não voltam mais, a não ser sob a forma da recreação (escrita)... Recordar e escrever é viver duas vezes... Faz-nos bem recordar escrever sobre o passado.

Este blogue foi feito também para "segredar-nos" os nossos pequenos segredos, incluindo as pequenas sacanices, os pequenos pecados veniais, os desenfianços, as chico-espertices...sem que daí venha algum mal ao mundo, à segurança do mundo, ao curso da história e sobretudo à nossa auto-imagem...

Não estava à espera que nenhum camarada, 30, 40, 50 anos depois, viesse confessar a autoria do "grande crime", da "grande pulhice", da "grande sacanice", em suma, o "grande pecado capital": matei, violei, esfolei, roubei, atraiçoei...

Gostei das tuas (in)confidências... Desde a tia rica do Brasil (que nem todos tinham) à cunha do senhor juiz do Tribunal Militar de Bissau... Que este país sempre foi, é e será uma grande "rede clientelar", a gente já sabia... Que havia cunhas para não se ir para o ultramar, ou - tendo que ir - ficar-se em Bissau (ou Luanda), penso que toda a gente sabe ou já sabia... Havia cunhas pra tudo, até se se desertar (e estas também não eram para todos).

Que tu tinhas uma cunha, não levo nem tenho que levar a mal os teus pais que muito te queriam... como quais quer pais. Aliás, quem te quiser julgar, a ti ou aos teus pais, que te atire a primeira pedra... (Fora da TG, claro está, que aqui é proibido usar pedras ou outras armas de arremesso).

Que tu tenhas recusado trocar um lugarzinho no bar (!), no deserto de Galomaro (!), em nome de valores como a camaragem, a cumplicidade e a solidariedade entre combatentes, isso sim, é objeto do meu apreço e admiração. Não te posso criticar nem elogiar, segundo as NEP do blogue, mas posso pôr-me em sentido e bater-te a pala, camarada! Como tu bem mereces!...

Luís Graça

Anónimo disse...

Tal como ainda hoje as cunhas eram recorrentes. Mais toleráveis na guerra do que na paz. Os pais, na sua grossa maioria, fazem tudo pelos filhos, mesmo o que não devem, sobretudo quando parece estar em causa a sua sobrevivência. A coragem ou a honestidade ou esta mais aquela fizeram o Passos prescindir de uma comodidade e segurança a que teve acesso.
No mínimo, fez aquilo que não sei se faria, em idênticas circunstâncias. Merece palmas.
Carvalho de Mampatá.

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Manuel Passos

O 'regulamento' do nosso Blogue determina (e bem) que não devemos 'julgar' e isso serve para 'julgar condenando' como também para 'julgar elogiando'.
Por não se respeitar essa postura é que muitos se sentiram intimidados a revelar alguns dos seus 'pequenos ou grandes segredos'.
Relativamente ao que nos contas pois só posso dizer que o que fizeste te honra e que é também minha opinião que poder 'dormir descansado' não tem preço.

Abraço
Hélder S.