Queridos amigos,
Annette Cantinaux continua a revelar-se de uma curiosidade insaciável, deu agora em querer saber onde o seu amoroso viveu a infância, e esse amoroso falou-lhe do Bairro de Alvalade e do Campo Grande. Ela abriu muito os olhos quando ele lhe disse que a rua onde habitava tinha de um lado prédios, atravessava-se o alcatrão e podia-se passear na Quinta do Visconde de Alvalade, a petizada ali fazia baloiços e correrias. Um dia de 1953 chegaram as máquinas que fizeram a terraplanagem da Avenida dos Estados Unidos da América , período febril e uma estranha convivência entre o século XIX e o século XX, ainda havia carroças e equídeos a ferrar, mercearias à moda antiga, os pregões das peixeiras, o gado a correr pelo Campo Grande, muitos dos meninos da escola, de pé descalço e roupa remendada, vinham das alfurjas de Telheiras, adoravam comer na cantina, o banco alimentar da época, uma sopa bem adubada, torresmos com um quarto de pão escuro e uma peça de fruta, e quando findavam as aulas havia mais pão com marmelada e um quartilho de leite, corriam pelo Campo Grande fora em festa, se o jantar fosse muito pobre, não morreriam à fome. E enquanto se conta esta história, hoje inverosímil para os nossos netos, há mais episódios de guerra, assoma o grotesco de um encontro com um comandante-chefe que repontava com aquela mistura existente em Missirá entre moranças, abrigos e casernas, era assim que vinha desde o princípio da guerra e até o improvável aconteceu, puniram e louvaram o alferes de Missirá e Finete quase no mesmo dia, a bizarria ficou como exemplo do dito alferes sobre o estranho conceito de justiça com que os homens do mando se enganam ou encadeiam.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (23): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureuse,
Sinto-me frustrado com o cancelamento da reunião de Bruxelas, postergada para meados de janeiro, pode até dar-se o caso de regressarmos os dois juntos de Lisboa para aí. Entretanto, sem qualquer aviso prévio, a Confederação Europeia de Sindicatos organiza um colóquio europeu daqui a dois fins-de-semana em Veneza, pedem-me uma comunicação sobre o futuro da cidadania do consumo, já sonho com a possibilidade de tu apareceres por ali como intérprete… Não te rias, a roda do fortuna anda e desanda, prega-nos surpresas. Fiquei admiradíssimo com o teu pedido de te dar informações sobre a região em que vivi na minha infância, o Campo Grande.
Tens aqui para te deliciares o livro que Manuela Rêgo escreveu sobre o afamado jardim onde figuras da realeza passeavam a cavalo, perto do Jockey Club, um hipódromo que ainda funciona, o jardim foi muito belo e muito bem tratado, eu vivia numa rua do Bairro de Alvalade, popularmente conhecido por o Bairro das Caixas (de Previdência, vigorava uma política corporativa do Estado Novo), atravessava o Campo Grande em direção ao colégio na Rua de Malpique, iremos depois passear os dois, mostrar-te-ei o que era esta região de Lisboa em 1950, quando cheguei ao Bairro de Alvalade, ainda havia palacetes e casas apalaçadas, mais tarde construiu-se a cidade universitária, havia um velho retiro, género de casa de pasto onde se podia cantar o fado, o Campo Grande começava junto da estátua dos Heróis da Guerra Peninsular, tinha muito mais de um quilómetro, atravessava a Avenida Alferes Malheiro e chegava até a um campo de futebol de terra batida onde jogava o Sporting Clube de Portugal, um dos mais importantes do país. A habitação à volta sofreu grandes alterações. Desapareceu completamente o mercado geral de gados junto de Entrecampos, que faz ligação ao Campo Grande, transferiu-se para ali uma feira, na minha adolescência apareceu um teatro com o nome de um artista muito popular, Vasco Santana, e havia fábricas de massas alimentícias e de cosméticos, pátios, restaurantes, um museu dedicado a um génio da caricatura, iremos lá, Rafael Bordalo Pinheiro. Ainda sou do tempo de ver manadas de bois a caminho do mercado geral de gados, no fim do Campo Grande funcionava o Asilo de D. Pedro V, se estiver bom tempo, quando tu vieres passar as férias de Natal comigo, vamos andar de barco no lago, tomaremos uma bebida quente numa cafetaria onde vais ver uma peça de cerâmica lindíssima, feita por um dos maiores artistas plásticos portugueses, Júlio Pomar. Vivi no Campo Grande e Alvalade entre 1952 e 1967, ano em que fui para a tropa, só voltei em 1970, a minha mãe por ali ficou, aí irá falecer em 1982, adquiri a casa, houvera entretanto grandes mudanças, o jardim do Campo Grande mingou, mudou a configuração da habitação, há grande desleixo no ajardinamento, é pena. E estou seguro que vais adorar o texto da Manuela Rêgo e as imagens que ela escolheu do século XIX até 1995 são bem esclarecedoras da evolução deste jardim histórico que agora coabita com a área universitária que, curiosamente, no caso da Faculdade de Ciências, está bem juntinha do lago dos barcos, há ali perto um centro comercial e um restaurante panorâmico, eu vou mostrar-te.
Lago do Campo Grande, antigamente
Imagem do Bairro de Alvalade
A Lisboa dos anos 1950 expandiu-se pelo bairro de Alvalade, arquitetura arrojada de Jorge Segurado
Vamos então continuar com aqueles dois primeiros meses de 1969. Recordas patrulhamento na zona de Gambiel, houve para ali trocas de morteiradas e bazucadas, a semana seguinte, com a maior discrição, reuni-me na minha morança com Quebá Soncó, o meu guia, olhámos para a carta e perguntei-lhe se o terreno entre Sancorlã e Quebá Jilã era firme, muito arborizado, se tinha savana, se podíamos progredir dentro da mata. Para minha surpresa, Quebá não parecia temeroso, era a favor de andar dentro de uma mata que ele conhecia bem, não podíamos atravessar o rio Passa, devíamos aproximar-nos de Salá, ladear o rio de Quebá Jilã e visitar o local onde houvera uma tabanca. E assim foi, saímos de madrugada, sempre dentro da floresta cerrada, é um espetáculo de beleza inexcedível, a natureza entregue a si própria, árvores mortas cheias de musgo, o sol a filtrar-se por aquela ramagem densa, os javalis, os macacos, as aves em movimento e depois um silêncio espetral como se deambulássemos no princípio do universo, dentro daquela verdura genesíaca. Quebá Soncó mostrou-me o rio Passa e como ele era profundo, se acaso pudéssemos atravessar sem perigo umas horas depois estaríamos perto de um santuário do PAIGC conhecido por Sara-Sarauol. Então infletimos para Quebá Jilã, sempre muito protegidos pelo denso arvoredo, mas havia savana e subitamente vejo correr Mamadu Camará em direção a uma palmeira, dela saltou um jovem, aí de uns 17/18 anos, com o terror estampado no rosto, procurámos serená-lo, conformou-se, na falta de algemas foi preso a uma corda que se enrolou igualmente no tronco do soldado Dauda Seidi, decidi rapidamente regressarmos a Missirá e depois uma coluna levou o jovem prisioneiro a Bambadinca. Nessa noite, ouvimos fogo de reconhecimento na região de Belel, terão percebido que o jovem fora capturado e pensavam que estávamos por aí emboscados.
Dias depois, também inopinadamente, recebemos a visita do Governador e Comandante-Chefe, confesso-te que fiquei plenamente desapontado do princípio ao fim pelo tom que ele usou comigo, os ralhetes e admoestações, a insinuação de punições, só via abrigos velhos, seguramente inseguros, era inconcebível ver aquela mistura entre tropa e população, como é que eu consentia que os soldados andassem vestidos à civil ou em tronco nu, parece que ele não via as palmeiras cortadas que tínhamos trazido da região de Cancumba, puxadas com corrente, vieram rebocadas por Unimog, cheirava mesmo a palmeiras cortadas, tinham sido serradas uma hora antes, havia dois abrigos a céu aberto. Implicou com as cascas de batata bem expostas à porta da cozinha, expliquei-lhe que o cozinheiro andara a trabalhar no corte das palmeiras e que estava à lufa-lufa a preparar um atum com batatas, eu sairia mais ou menos dentro de uma hora para Mato de Cão, era essa a razão para que o senhor brigadeiro me encontrasse em Missirá a acompanhar obras. E se dúvidas subsistissem, bastaria que o senhor brigadeiro contatasse o comandante de Bambadinca a quem eu escrevia regularmente pedindo mais materiais de construção, ele próprio já visitara o quartel e conhecia perfeitamente as deficiências existentes, Missirá existia assim desde 1964. O comandante de Bafatá também estava a praguejar, dizia-me ao ouvido que tinha trazido dali o Comandante-Chefe que pensava que eu era um militar brioso, um bom operacional, eu podia ser um bom operacional mas vivia no meio de uma estrumeira, uma pouca vergonha de coabitação, nunca se vira aqueles abrigos e casernas rodeados de moranças, havia que distinguir claramente espaços ocupados, se eu não agisse rapidamente seria punido. Eu ia ouvindo com bastante desinteresse aquelas perlengadas, tinha estado no Enxalé, como tu te recordas, e senti-me revoltado pela chamada zona militar estar rodeada como de um escudo se tratasse de moranças da população civil, como se a tropa tivesse um cordão humano protetor nas flagelações. Ademais, eu encontrara Missirá com esta disposição, que meios teria eu para separar a população civil da militar, ninguém me fizera qualquer reparo e agora aqueles senhores oficiais pareciam agonizados com aquela atmosfera de espelunca, o Comandante-Chefe até soltara um riso escarninho junto do morteiro 81, perguntou-me porque é que a alça do morteiro não estava regulada, respondi-lhe sem hesitar que era eu que manipulava o morteiro a olho, procurava a proveniência do fogo inimigo, ninguém me ensinara a regular o morteiro e os meus soldados, que eram experimentados e de grande bravura, reconheciam que eu sabia dar conta do recado.
Bem amargado fiquei pelo que ouvi, achei uma grande injustiça ninguém ter perguntado o que eu encontrara em Missirá seis meses antes, o que andara a fazer para além do tal lado operacional que eles reconheciam estar bem encaminhado, o tal comandante de Bafatá disse mesmo que havia muito bom oficial que vivia acachapado dentro do quartel, mandando os sargentos patrulhar ou fazer abastecimentos, ele sabia de ciência certa que não era esse o meu caso, mas gaita!, ou eu mudava aquela espelunca ou tínhamos punição para breve.
E, Annette, o incrível aconteceu, fui punido com dois dias de prisão por não dar o máximo da minha competência na segurança do aquartelamento de Missirá, em concomitância o mesmo comandante de Bafatá que me punia louvava-me por eu ter um comportamento exemplar e instalado uma mentalidade ofensiva na minha tropa, e o comandante de Bissau, também se mostrara enxofrado com a tal insegurança de civis misturados com militares, considerava como dado por si o louvor do comandante de Bafatá. Momentos há, mon amoureuse, quando me sinto confrontado com qualquer despautério ou comportamento absurdo que abro a pasta onde guardo a punição e os louvores para meditar ou talvez zombar nos caprichos da justiça.
Há muito mais a dizer mas fica para depois. Estou a limpar a casa para receber a minha castelã, para que tu te sintas aqui com a mesma intimidade com que vives na Rua do Eclipse, farei como tu, cozinharei só para ti, irás conhecer os meus filhos, tens aí em teu poder propostas de passeios, participarás na ceia de Natal em família, serão momentos de grande felicidade, e satisfarei a tua curiosidade mostrando-te Alvalade e Campo Grande, certamente com o mesmo regozijo com que tu me mostras o património de Bruxelas, os jardins, os monumentos, os museus, as ruas cheias de vida. Estou ansioso pela tua companhia. E só espero que tu encontres aqui, e nos meus braços, a felicidade que dizes sentir na Rua do Eclipse.
(continua)
Berliet destruída por mina, Manuel Botelho, 2009
Um povo admirado pela sua dedicação ao trabalho, a etnia Balanta
O Cabo Costa, em Bambadinca, polivalente maqueiro, barbeiro, sacristão e preparador de defuntos
____________Nota do editor
Último poste da série de 9 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21434: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (22): A funda que arremessa para o fundo da memória
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