Queridos amigos,
Paulo Guilherme vai arrumando as suas memórias da Guiné, tem ainda fotografias, foi recolhendo ao longo dos anos correspondência avulsa, metodicamente envia a Annette episódios que ele classifica como mais relevantes, mês a mês, estamos em janeiro de 1969. Aqui e acolá, manda a efabulação dos acontecimentos, surgem lacunas, é o caso do Natal de Missirá de 1968, marcou-o profundamente aquela festa, irrepetível pelo que ele conseguiu arregimentar de ajudas, ninguém se negou enviar-lhe as vitualhas da Consoada, houve cabrito para a população, pão fresco, arroz feito à moda portuguesa, com base em cebola frita, alho e calda de tomate, um regalo. Mas Paulo quis contar pessoalmente a Annette as alegrias daqueles momentos, perdeu-se esse episódio o que ganhou a comunicação destes cinquentões arrulhados. O que é mais surpreendente é como Annette vai gravando na sua própria pele o passado remoto do seu amoroso, ela própria estuda a História de Portugal, vive eufórica à espera da chegada de Paulo, nunca o presente foi tão intenso à custa da descoberta de um passado, para ela totalmente improvável, um ano antes. Assim se vai fundamentando o milagre da Rua do Eclipse, para aqui converge uma clamorosa paixão, aqui aportam documentos de uma guerra que ocorreu num pequeno ponto da chamada Alta Guiné, aqui se configura e molda o futuro promissor de dois amantes que aproveitaram um acaso para ressuscitar as suas vidas.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (22): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon amoureux, Estou felicíssima porque tu chegas dentro de dois dias, felizmente que as minhas reuniões fora de Bruxelas coincidem com a tua vinda, terei reuniões em Lille, amanhã, e em Eindhoven logo a seguir, sigo diretamente de Lille para lá, a reunião acaba por volta das quatro horas, estarei em Zavantem à hora que indicas. Entretanto, vou conhecendo pormenores da tua família, quanto adorei a história da tua mãe, o falecimento da tua avó de sangue com bilharziose dois meses depois da tua mãe nascer, o teu avô entregou a sua custódia aos padrinhos de batismo. Tocou-me muito aquele pormenor de ele abrir um lenço e mostrar umas jóias que eram da tua avó Amália, seria um agradecimento, havia ainda outras duas filhas para que era preciso descobrir acolhimento e a tua nova avó respondeu-lhe: “Compadre, a partir de hoje a Gigi é nossa filha, a filha que eu não pude gerar e que vai ser a candeia dos meus olhos. Reparta essas jóias por quem vai receber a Fernanda e a Lídia, a Gigi terá a seu tempo todas as joias que os novos pais lhe puderem oferecer”. Mandaste muito mais fotografias da tua mãe, tu não sabes se estas imagens foram tiradas em Malanje, N’dalatando (Vila Salazar) ou mesmo Lucala, de que tu guardas uma bandeira em seda, datada de 13 de março de 1913 e referente à constituição da Coletividade Recreativa e Musical de Lucala, vi a fotografia, que pormenor de trabalhos na seda! Vi com a lupa que a primeira imagem é referente ao Natal de 1916, tem a tua mãe dois anos, sorridente, com um ar maroto abraçada pela sua nova mãe, por detrás da Dona Ângela, visivelmente mais velho, o Sr. Costa. Meu Deus, como era possível aquelas roupagens em clima tropical húmido! A segunda fotografia, tu não vais acreditar, pareceu-me um cenário de estúdio, como sabes melhor do que eu, os fotógrafos concebiam arranjos de estúdio espantosos com carros e aviões, cadeiras estofadas, imitações de fachadas de casas, mas estive a ver ao pormenor, acredito que a imagem foi tirada com paisagem natural, abraça a tua mãe a Tia Lucília, a irmã da tua Avó Ângela, que ternura, como a força do amor pode superar a voz do sangue. Obrigado pela lembrança, meu adorado Paulo, indo a este passado, e sabendo como tu respeitas tanto, posso perceber outras coisas que reforçam o meu sentimento por ti.
A propósito, tu perguntaste-me o que gostaria de visitar em Lisboa, nas férias do Natal. Imagina tu que fui encontrar numa das minhas estantes o catálogo de uma exposição que visitei em Antuérpia salvo erro em outubro de 1991, tinha o nome em português Feitorias, a Arte em Portugal no Tempo dos Grandes Descobrimentos (fins do século XIV até 1548), fiquei deslumbrada, até descobri elementos da História anterior à Bélgica que desconhecia completamente. Os portugueses instalaram-se primeiramente em Bruges e daqui partiram para a Antuérpia, precisavam de comerciar produtos portugueses e africanos e levar mercadorias para o comércio de escravos. Fiquei impressionada com o intercâmbio cultural que se realizou, feliz por saber que a pintura flamenga da mais alta qualidade estava nos vossos museus, como Gérard David, Hans Memling, Quentin Metsys e até o meu tão apreciado Albrecht Dürer, pois gostaria muito de ver o quadro dele alusivo a São Jerónimo. Uma noite destas, pude ler com cuidado o catálogo da sua edição francesa, vários historiadores debruçam-se sobre as condições excecionais que os portugueses encontraram para a sua aventura marítima quando a demais Europa vivia em permanente conflito, o vosso sistema de alianças que de vários ziguezagues encontrou o seu eixo nos Ingleses, e li apaixonadamente o mundo científico que fundamentou a vossa aventura náutica e até adormecer contemplei com profunda admiração todas aquelas obras de arte de várias proveniências adquiridas com o comércio euro-africano e euro-asiático. Nesta exposição das Feitorias não vieram duas obras-primas da Arte Portuguesa, os Painéis de Nuno Gonçalves e a Custódia de Belém, atribuída esta a um dos vossos maiores escritores, Gil Vicente. Pois gostaria muito, se formos ao Museu Nacional de Arte Antiga, de as visitar.
São Jerónimo, pintado por Albrecht Dürer, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Chegaram os documentos e imagens referentes a janeiro de 1969, que acontecimentos tu descreves!
Primeiro, regressavam vocês a Missirá e apareceu na estrada um guineense com o pavor estampado no rosto, à cautela mandaste parar a coluna, não se tratasse de um expediente para uma emboscada, levaram o homem para Missirá e ele contou que houvera um ataque a embarcações civis à entrada do Geba estreito, tu não sabias de nada ainda, nesse dia enviaras um furriel a Mato de Cão, receberas instruções para ires a Bafatá falar com o Comandante do Agrupamento, ele queria a tua opinião quanto à eventualidade de se criar uma tabanca em autodefesa entre Missirá e Finete, em Canturé, apoiavas a ideia desde que entregassem um pelotão de milícia e dessem armas à população, reforçarias assim o sistema defensivo, mas em termos logísticos já não era possível, estava em marcha a criação de um novo aldeamento perto de Bambadinca, tu dizes chamar-se Nhabijões, não havia meios para Canturé. Este homem espavorido fora apanhado à mão quando se atirara à água, em desespero desatou a correr para dentro do mato e assim apanhou a estrada, todo esfarrapado e sempre a olhar para trás, com medo de possíveis seguidores.
Segundo, a tal viagem que fizeste de avioneta sobrevoando o Cuor e regulados limítrofes, a tua estupefação quando viste terrenos cultivados na região de Gambiel, a cerca de quatro quilómetros em linha reta de Missirá, nesta altura, e era essa a grande surpresa, tu já percorreras todas aquelas florestas, daí a tua surpresa quando lá do alto avistaste uma miríade de caminhos que saíam de Madina em direção a Belel e para mais longe e que derivavam para os tais terrenos cultivados no outro lado do rio Gambiel. Mal refeito do choque, fizeste um patrulhamento até Gambiel, que na carta que acabo de receber tu tratas como um dos locais mais belos do mundo, um verdadeiro Éden tropical, altíssimas palmeiras de Samatra como que vergadas sobre as bermas do rio, numa grande extensão, pensaste então que tinha sido obra do tal cartógrafo, Armando Cortesão, que por ali andara umas boas décadas antes. E vocês meteram-se pela mata para explorar do lado de cá onde é que havia terrenos lavrados. É nesse afã de quererem passar despercebidos, confiantes no sombreado da floresta impenetrável que, como trovões, ouviu-se o silvo de três morteiradas, um estrondo medonho, afinal vocês tinham sido avistados, os guerrilheiros procuravam intimidar. Tu ripostaste também com fogo de morteiro e dois destemidos bazuqueiros teus avançaram para terreno aberto, completamente destemidos, um verdadeiro combate nas duas margens do rio Gambiel. É nisto que uma morteirada estoira perto desses dois bazuqueiros, levantando rios de lama mas igualmente fazendo erguer aqueles dois homens, teme-se o pior, um deles levanta-se prontamente e pega no seu armamento, outro parece inanimado, geme baixinho, leva-se o ferido para dentro da segurança da mata, tem as pernas estilhaçadas, presume-se haver gravidade, findou a patrulha, regressa-se a Missirá, o bazuqueiro de nome Abdulai Djaló, conhecido entre vós pelo nome de Campino, e evacuado para Bissau, regressará uma semana depois, com as duas pernas entrapadas, tinham sido felizmente estilhaços superficiais, no mês seguinte, escreves nos teus apontamentos, este Campino viverá a teu lado, hora a hora, a agonia de uma operação que teve contornos horríveis, mesmo à entrada de Madina estoirou uma armadilha que matou e sinistrou e irá obrigar a uma retirada que teve aspetos catastróficos, onde não faltou um brutal ataque de abelhas, entre tanto sofrimento, tu prometes contar em breve o que aconteceu.
Terceiro, descobriste os efeitos do rancor, a canalhice de uma denúncia, um pequeno grupo de milícias de Finete, seguramente apoiado pelo comandante, o pedante Bazilo Soncó, que só vive para se pavonear, com a sua farda imaculada, que houve as tuas sarabandas, pois tu exiges-lhe que ande no mato ao lado dos seus homens, coisa que ele não faz, entregou uma carta ao comandante de Bambadinca falando nos teus maus-tratos, que só tens olhos para Missirá e desprezas Finete, a carta era tão mal engendrada que o comandante te chamou e te pediu para descobrires por onde começava calúnia tão ruim, enquanto conversavas com o comandante já uma comitiva de Finete estava à porta para denunciar o golpe baixo dos intriguistas, tu foste a Finete e tudo se resolveu num ápice, não era possível expulsar Bazilo nem os seus poucos sequazes, a intriga morreu no choco e a malandragem neutralizada. E tu concluíste que as insidias não têm fronteiras e os gestos miseráveis não escolhem a cor da pele.
Obrigado por estes documentos, meu adorado Paulo, contribuem para te conhecer melhor, para estar cada vez mais próxima de ti. Tenho uma surpresa à tua espera, uma surpreendente exposição do Palácio das Belas-Artes, prepara-te para ver peças de uma qualidade insuperável da cerâmica chinesa. Vem depressa, vem com a tua fogosidade, aquele ímpeto que me sacia a alma e a carne, sinto-me dona do mundo com este privilégio do teu amor. Bien à toi, Annette.
(continua)
O esplendor do Geba
Uma escultura Bijagó, entre a alegria da festa e a devoção animista
Aos aviadores italianos, falecidos num desastre aéreo, nos anos 1930, Bolama
Monumento ao presidente Ulysses Grant, Bolama (monumento desaparecido)
____________Nota do editor
Último poste da série de 2 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21409: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (21): A funda que arremessa para o fundo da memória
5 comentários:
Olá Camaradas
Já disse que: "Quem não tem competência não se estabelece".
O desaparecimento da estátua de Ulisses Grant, o presidente americano que é responsável pela forma e até existência da Guiné, enquanto país é um exemplo elucidativo.
Era americano e não português e arbitrou a favor de Portugal, mas não era colonialista e, se era racista, era-o só para "gastos de casa".
Apear a estátua já era mau, mas fazê-la desaparecer é absurdo. Mas volto a lembrar que o país é outro, a bandeira é outra, o hino é outro e o povo é outro.
Para mim, tudo terminou em Set74 e nada tenho a censurar, mas estou autorizado a pensar, como cidadão do mundo, a ver do exterior.
Um Ab.
António J. P. Costa
Julgo que 1994, não me recordo bem, ter lido notícias que a estátua por ser de bronze teria sido partida aos bocados, e o Com. Alpoím Galvão, na altura comerciante na Guiné, teria comprado algumas partes. Depois ficou detido por isso, só sendo libertado mediante uma caução duns milhões de pesos ou francos fr.
Valdemar Queiroz
Olá Camaradas
A estátua, por ser de bronze, teria sido partida aos bocados? Qual a finalidade deste procedimento administrativo?
Na minha opinião se isso é verdade, só posso dizer que, se a estupidez fosse música os/as autores/as da graça que acabou por levar à detenção do Cmdt Calvão teriam uma grande orquestra.
Mas volto a lembrar que o país é outro, a bandeira é outra, o hino é outro e o povo é outro.
Por isso...
Um Ab.
António J. P. Costa
Pereira da Costa
Sendo por isso e não mais que isso, como não tenho nada que fazer descobri pelo meu companheiro, salvo seja, pc (não confundir com sigla partidária) num blogue BOLAMA MINHA TERRA a descrição da história e do desaparecimento da estátua de Ulysses Grant e do Cmdt Alpoim Galvão estar metido no assunto.
Afinal não é muito diferente da notícia que eu me lembrava.
Um Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Olá Camarada
Confirma-se a minha especulação, infelizmente.
Aquele povo tomou "os seus destinos nas suas próprias mãos" e embora eu possa fazer os comentários que quiser,não tenho qualquer direito de intervir nas suas acções ou omissões.
Os que assim não pensam e pretendem intervir na vida daqueles povos estão "numa de neo-colonialismo".
Um Ab.
António J. P. Costa
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