sábado, 10 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21438: Os nossos seres, saberes e lazeres (415): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
Vir a Viana e não visitar Santa Luzia é como ir a Roma e não ver o Papa. Os comentários sobre o templo gigantesco que o arquiteto Ventura Terra traçou naquele monte sacro que permite uma das mais deslumbrantes panorâmicas que a Natureza permite, nem sempre são lisonjeiros, e aqui se cita José Hermano Saraiva que acha que lhe falta alma. Daqui a um século falamos. Também se disse cobras e lagartos do neomanuelino e do neogótico e veja-se como o Palácio da Pena e a Quinta da Regaleira se transformaram em poderosíssimas atrações turísticas. O tempo urge, toma-se novamente o funicular, depois da lavagem de alma que aquela vista purificada propiciou, e desce-se, sem perda de tempo, para desfrutar o património da Misericórdia de Viana do Castelo, não há que enganar, a igreja, a sua riqueza azulejar, a decoração do teto, a aparato das talhas, as pinturas, o esplendor do órgão, é uma unidade que dá pelo termo da magnificência do Barroco, é incomparável, a sua visita é obrigatória. E depois aproveita-se o remanescente da luz do dia para ir à Viana moderna, a última etapa neste lugar onde a Ribeira Lima entra no Atlântico.

Um abraço do
Mário


No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (10)

Mário Beja Santos

José Hermano Saraiva, no primeiro volume de O Tempo e a Alma, Círculo de Leitores, 1986, depois de se ter debruçado sobre os monumentos notáveis de Viana e antes de anotar o que era a Viana moderna, fala do Monte de Santa Luzia, dizendo o seguinte: “Ali, o mais notável é o miradouro, vista emocionante. Foi a vista que atraiu o santuário, o hotel, o elevador. O tema é inevitável perante estes monumentos modernos: gosta, não gosta, e a negativa é a resposta mais fácil. O projeto do santuário é do arquitecto Ventura Terra, e as obras foram realizadas entre 1890 e 1930, embora depois disso se tivesse ainda trabalhado muito. Anteriormente, tudo o que havia era uma capela, onde se chegava por uma tortuosa vereda entre mato cerrado. O arquitecto planeou conforme o gosto do seu tempo: uma igreja que combina elementos tradicionais numa mescla revivalista a que se chamava estilo românico-bizantino. As dimensões são impressionantes para a parcimónia portuguesa; as cúpulas e as rosáceas aspiram deliberadamente à escala monumental, mas o conjunto parece mais um grande jazigo do que uma alegre casa de Deus. Algo falta. Os arquitectos medievais dispunham de um ingrediente essencial para conferir autenticidade e emoção aos edifícios que planeavam: um forte sentimento religioso. A régua de cálculo não tem esse valor, e não sei se o computador o sabe encontrar. Em todo o caso, a importância relativa da basílica revela que Viana não parou e que não se envergonha da contemporaneidade”. É um texto um tanto agridoce, uma no cravo, outra na ferradura. Viajar no funicular é entusiasmante, com aquele cruzamento com a composição que desce, é também assim com os ascensores de Lisboa. Trepam-se os degraus e aguarda-nos um dos cenários mais desafogados com que a Natureza nos privilegiou.
Santa Luzia e o funicular fazem parte da proposta das visitas obrigatórias em Viana. O monumento dá pelo nome de Templo do Sagrado Coração de Jesus. Quem subir ao zimbório tem à sua disposição uma paisagem incomparável. No seu exterior podem ver-se várias peças graníticas da primitiva capela, pedras de um arco de 1694; capitéis e instrumentos usados na construção. Ninguém deve fugir à viagem pelo funicular, mesmo que se possa ir de carro facilmente. É a mais longa viagem de todos os funiculares do país, com os seus 650 metros. Quem já teve oportunidade de em Paris visitar o Sacré-Coeur, de onde aliás se tem uma vista soberba sobre a cidade, encontra similitude com este gigantismo, e até nas afinidades decorativas. Dizer-lhe que falta alma, como acima observou José Hermano Saraiva, é um tanto excessivo, é uma outra abordagem da espiritualidade, basta olhar atentamente para a pintura da cúpula e lembrar o que Almada Negreiros, numa dimensão mais modernista, deixou na Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa.
De seguida, apresento uma sucessão de imagens captadas neste miradouro de Viana e no seu monte sagrado. Não há nada que se compare em panoramas de mar, de campo e cidade, de rio e de montanhas. Carlos Ferreira de Almeida, no seu livro sobre o Alto Minho, escreve: “Lá muito em baixo vêem-se os telhados cúbicos da cidade, as docas e o mar azul, contornando de espuma a praia longa. Lá no fundo há um rio adormecido entre veigas e ínsuas, e, ao lado, o anfiteatro das montanhas com os seus aldeamentos. Daqui podemos mirar grande parte das freguesias que o concelho de Viana tem”. Tempo houvesse, e metia-me ao caminho, para vasculhar estes arrabaldes de Viana: visitar Areosa e Carreço, e depois Afife, gostava de ver o antigo casino remodelado, e nunca fiquei indiferente aos aspetos agrestes da Serra d’Arga. Duvido ter condições quando se fizer o trajeto de Viana para Ponte de Lima poder parar nas freguesias, já não haverá com certeza luz do dia, quantas vezes, a ler a Carlos Miguel de Abreu de Lima de Araújo o Aurora do Lima se falava em Cardielos, Lanheses, São Romão de Neiva, que deu aso a que ele me explicasse o trabalho dos sargaceiros, do mesmo modo como ele me contava o que há de empolgante no Auto da Floripes. O que não se vê hoje, ficará para a próxima.
É a meditar nos trajes à vianesa, no ouro disposto nas ourivesarias, na magnificências das perspetivas que Santa Luzia oferece que regresso à cidade, saio do funicular e embrenho-me nas ruas até à Praça da República, vou visitar a Misericórdia e o seu conceituado anexo, uma igreja que é monumento nacional, uma Misericórdia, cuja confraria apareceu em 1520 e que nos legou um património fabuloso e que contrasta, pela exuberância, com a severidade da fachada tardo-medieval dos velhos Paços do Concelho.

(continua)
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Notas do editor

Vd poste de 3 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21412: Os nossos seres, saberes e lazeres (413): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 6 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21424: Os nossos seres, saberes e lazeres (414): Adão Cruz expõe as suas pinturas na Taberna do Doutor - Rua da Firmeza, Porto

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Beja Santos, continuamos em Viana. Obrigado.
O Prof. Hermano Saraiva tinha a máxima de pouca modéstia 'não sei e ninguém sabe'. Realmente, estar dentro da Basílica de Santa Luzia e dizer que não tal alma, e sendo a alma o que anima a vida, é não ter a noção da claridade. Julgo não haver interior com a mais deslumbrante claridade, que o interior da Basílica de Santa Luzia.
Subir ao zimbório e avistar toda a região é inesquecível, mas não gabo a idade de subir todas aquelas cansativas escadas até lá cima sem escolher a hora, não vá ensurdecer com o barulho dos sinos a dar as doze baladas do meio-dia.
Foi pena não ter havido possibilidade para passar na minha terra. Lá em Afife, bem no centro da aldeia, eleva-se o Monte de Santo António, também com uma vista deslumbrante sobre a veiga e o mar, nos calmos dias de verão o mar ergue-se à nossa frente como uma enorme montanha.
Ao longo dos tempos, no Casino, construído em 1935, apenas tem havido adaptações aos tempos modernos no interior, reparações no telhado, manutenção da pintura no exterior, mantendo-se igualzinho todo o edifício, o salão, e toda a envolvência, o palco e o pano de cena que é o primitivo. Quer isto dizer, que não tem havido grandes mudanças, e o mesmo acontece com a errada ideia do "Casino", nunca teve nada a ver com sala de jogo ou bailarinas espanholas.
Pra mim, a viver na zona de Lisboa, vai-se tornando cada vez mais difícil o ...havemos de ir Viana!

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz