Queridos amigos,
Annette Cantinaux está eufórica nas suas férias do Natal português, o seu apaixonado põe-a a viajar em vários transportes, não falta o elétrico 28, desta feita começaram na Basílica da Estrela, já viram a árvore de Natal do Terreiro do Paço, banquetearam-se com o bife da Portugália, ela não esconde o seu assombro por aquela casa forrada de estantes e quadros de toda a espécie, onde até se corre alguns riscos de tropeçar em pilhas de livros. Tem tido enormes surpresas, muitos daqueles trastes vieram da Feira da Ladra de Bruxelas, ela está neste momento a folhear um álbum que diz por fora Vilar Formoso, Lisboa, Fátima, Coimbra, boas fotografias, quase sempre mostrando um jovem com ar decidido, ela até ficou muito impressionada com a fotografia do Rossio naquele ano de 1951, parece o mesmo que eu já vi, disse para si. Annette não resistiu a perguntar porque é que tu juntas isto a estas coisas, um tanto seraficamente ele respondeu-lhe que quer estar rodeado de boas memórias na velhice. Estamos a 24, nessa noite virão os filhos de Paulo e respetivos cônjuges, um amigo que é pintor surrealista, um guineense e um vizinho nonagenário que não tem família, como comunicarão logo se vê, o mais fácil será o guineense Abudu Soncó pôr à prova o seu francês, a felicidade do encontro virá por acaso e para glória do nascimento do Deus Menino.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Très chère Josephine, não pude infelizmente despedir-me de ti antes de partir para Lisboa, sei que estás em Mariemont a passar as férias de Natal com os teus pais, cheguei a Lisboa um pouco antes das festas, o Paulo tem-me proporcionado passeios encantadores pela cidade, por razões profissionais já aqui tinha vindo três vezes, mas sempre de raspão, tu sabes o que é a vida de intérprete, desembarcamos com um dossiê debaixo do braço e uma mala de viagem com rodas, toma-se um táxi para o hotel, horas depois estamos atrás de uma cabine de interpretação, por vezes há a deferência em convidar-nos para jantar, o dia seguinte poderá ser a mesma coisa, excecionalmente podemos ter um dia por nossa conta, às vezes consigo programar ficar mais um dia para bisbilhotar o local, com Lisboa não tem sido o caso e daí o fascínio de calcorrear uma cidade com o meu amoroso a dar-me a mão.
O Paulo queria que eu visse a animação natalícia no centro da cidade, mas antes levou-me a uma basílica gigantesca, chamada Estrela, confesso-te que não me impressionou muito aquela arquitetura sobredimensionada, mas íamos ali por outro motivo, o Paulo queria-me mostrar um presépio que saíra das mãos de um barrista de génio, retive o nome Machado de Castro. O postal que tenho para te mandar é eloquente na humanização das figuras, no equilíbrio das formas e na transparência da espiritualidade. De há muito afastada da prática religiosa, ali fiquei especada e, para minha surpresa, desfiei orações que aprendera em casa dos meus pais adotivos. E seguimos para a Baixa, num elétrico que desceu e subiu por ruas apertadas, muito comércio, quase à moda antiga, e assim chegámos a uma praça dedicada ao poeta nacional, Camões. Descemos uma rua cheia de bulício, em dado momento Paulo segurou-me o braço e entrámos numa ourivesaria, com interior requintado, julguei que estava na Praça Vandôme, qualquer coisa semelhante à loja Cartier, o Paulo pediu para vir anéis de senhora, nada de brilhantes, pérolas ou diamantes, perguntou por engastes de safiras ou esmeraldas. Obsequiosa, a funcionária foi tirando peças de umas vitrinas e expô-las num pano de veludo na minha frente. “Annette, escolhe o que te der mais prazer, a partir de agora és a minha noiva comprometida”. Apanhada de chofre, não pude reter a emoção, há muito tempo que não andava tanto a pé, trouxera uns ícones gregos para presentear o Paulo, coisas simples, mas um dia ele quis entrar numa loja do Grand Sablon dedicada à Arte Sacra e vi como os seus olhos brilhavam de contemplar a iconografia oriental. Escolhi uma peça, ajeitava-se perfeitamente ao meu dedo anelar esquerdo, só tremia a pensar no preço, ele falava em escudos, passou um cheque, nem me atrevi a perguntar o montante da joia. A funcionária entregou-me uma caixa, olhei-o com ternura e ele não fez mais nada, beijou-me ali mesmo, passou-me as mãos pelo cabelo, beijou-me delicadamente a mão, os funcionários da ourivesaria mantinham-se impávidos, estas cenas apaixonadas devem fazer parte da profissão.
Presépio de Machado de Castro, Basílica da Estrela
Ícone grego, século XVIII
Ourivesaria Aliança, Rua Garrett, Lisboa
À saída da ourivesaria, apanhámos um táxi, percebi que o Paulo deu como destino a Feira da Ladra, fiquei a saber que ela funciona às terças-feiras e aos sábados, ao contrário da Place du Jeu de Balle que é diária, se bem que seja mais pujante aos sábados e domingos. Apeados, o Paulo quis-me mostrar em primeiro lugar o exterior e o vestíbulo do Panteão Nacional, um monumento barroco que creio que a cúpula só foi concluída há umas décadas atrás, as dimensões são impressionantes e fiquei assombrada com a beleza dos mármores, predominam os róseos bem inseridos na pedra branca. E entrámos na feira, verifiquei que o Paulo conhece alguns dos vendedores, fomos para uma enorme bancada de livros e quinquilharia, imagina tu que até encontrei um volume com o teatro completo de Albert Camus, edição da Gallimard, em muito bom estado, paguei uma quantia irrisória, o Paulo fez as suas compras, livros e peças de porcelana. Aproximava-se a hora do almoço e ele disse-me que íamos almoçar o bife da Portugália, lá fomos para uma cervejaria enorme e deliciei-me com uma peça macia de carne, um molho muito gostoso, embebi aos bocadinhos um pão inteiro, com batatas fritas também saborosas, seguiu-se um pudim flan e um café à moda portuguesa.
Um aspeto parcial do Panteão Nacional
A Feira da Ladra com vista para o Panteão Nacional e o rio Tejo ao fundo
Precisava de descansar, voltamos para casa. Ainda não te dei pormenores da decoração, as paredes estão forradas de alto a baixo com uma variedade de obras de que eu não consigo ainda ter o elemento de ligação, são quadros a óleo, gravuras e serigrafias, sanguíneas e carvões, aguarelas, desenhos de toda a espécie, fotografias, tapeçaria, pelos cantos as esculturas em madeira ou mesas a abarrotar de livros, livros em cima dos sofás e das cadeiras, também predomina o tema religioso, perguntei o que é que estava a ver e ele falou-me em registos, um deles impressionou-me muito, tinha uma imagem do que me parecia um santo, o Paulo explicou-me que era o Senhor Santo Cristo dos Milagres, uma imagem reduzida a um tronco, a decoração era impressionante, metia escamas de peixe, recortes de papel colorido, pérolas, tecidos acetinados. O Paulo sossegava-me, está descansada, quando vieres viver para cá grande parte destas coisas vai para casa dos meus filhos, pretendo que tu organizes um espaço que dê alegria de viver, onde sintas intimidade e não dependente da organização que fui dando ao meu ambiente.
A casa tem uma bela varanda, um balcão cheio de vasos e um armário onde ele guarda coisas, abriu esse armário e mostrou-me uma quantidade enorme de copos dizendo que os ia oferecer a uma organização que angaria fundos para ações de filantropia. Aí descansámos e o Paulo deu-me conta de como pretende organizar a Consoada. E explicou-me que a Consoada é para ele o momento dominante do Natal, é a festa do júbilo pela vinda do Menino, os entes-queridos devem estar juntos e saborear os alimentos da festa. Foi buscar um livro e mostrou-me o prato de bacalhau destinado à noite de 24. “Chama-se Bacalhau à Baltar, depois de uma primeira demolha meto-o em leite, no dia seguinte aqueço azeite com alhos e meto o bacalhau guarnecido com pão ralado, vai ao forno até tostar, é acompanhado por legumes salteados. E falou-me que já encomendara um conjunto de doces tradicionais, o bolo rei, as broas (tinha saudades das broas de milho, eram frequentes quando Portugal era um país muito pobre, praticamente desapareceram), compra também iguarias de que os filhos gostam, caso do bolo de amêndoa com gila e a siricaia.
Fizemos uma refeição ligeira, o Paulo tinha feito uma sopa de curgete com batata e muitos coentros, eu tinha trazido queijos, acabámos a beber uma taça de chocolate e o Paulo propôs uma saída, ir ver o Terreiro do Paço à noite. Confesso que teria preferido ficar em casa, mas ele fez-me o convite com uma expressão tão feliz, percebi perfeitamente que eu estava intimamente associada àquele passeio que disse logo que sim. E fiquei felicíssima, naquela noite escura, naquela ampla praça reconstruída como sala de entrada de Lisboa depois do Terramoto de 1755, uma praça cheia de harmonia, tens o Tejo a marulhar ali bem perto, aqui funcionavam ainda alguns departamentos do Estado, mas a razão de ser da visita era uma esplendorosa e policromática árvore de Natal, eu sentia-me tão feliz, tão agradecida às pancadas do destino, àquele momento em que um senhor desconhecido me pedira para almoçar comigo na hora do almoço para me pedir apoio para um romance em que a guerra da Guiné seria o eixo central, acedi e decisão mais feliz não podia ter tomado, já passo dos 50 anos e pareço uma garota apaixonada pronta a ressurgir e a acreditar que a felicidade nos dá sempre uma nova oportunidade quando estamos disponíveis.
A árvore de Natal no Terreiro do Paço
Caminhamos para o Natal, assentou-se que vai haver uma manhã de passeio cultural, a tarde é para preparar a Consoada. Outra grande surpresa. Ali para os lados do Castelo de S. Jorge está uma igreja um tanto escurecida na fachada, mas ele tinha organizado uma visita, imagina tu o nome da Igreja, do Menino de Deus, que ternura, está praticamente adossada às muralhas do castelo, é opulenta no seu barroquismo em que a pedra fria contrasta com os elementos pictóricos e a decoração das capelas, o teto é magnífico e o altar de uma enorme riqueza. Foi um bom princípio de manhã de um turismo inesperado, hoje não se trabalha em Portugal, até ao dia 26 ou 27 a vida será a meio gás, mas foi-nos proporcionado este passeio, sinto-me muito agradecida. No regresso a casa, o Paulo já me comunicou que vai fazer uma açorda de gambas, novamente muitos coentros, e uma salada de frutas, impõe-se a sobriedade, as pratalhadas do Natal vão aparecer durante a tarde. Falei-lhe na Baixela Germain, tinha ouvido dizer que a existente no património português era de uma enorme riqueza. Está na minha agenda, Annette, não regressarás a Bruxelas sem ver os Painéis de São Vicente, a Custódia de Belém, a Arte Nanban e a Baixela Germain, para além do nosso Bosch, que não tem rival.
Voilá, Josephine, o inacreditável aconteceu, a minha vida tem um novo sal, este homem não esconde um profundo afeto e sei que digo uma banalidade, amigas íntimas como somos espero que saibas que estou preparada para viver um grande amor, desta vez agarro as golas do destino com as duas mãos. Beijo-te com a maior amizade do mundo, conto ver-te em meados de janeiro, tens que saber ao pormenor o que foram estas férias de Natal e como a minha vida é um sonho.
Igreja do Menino de Deus
Baixela Germain, Museu Nacional de Arte Antiga
(continua
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21521: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória
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