Queridos amigos,
Eram tempos novos, a URSS elegera um novo líder, Gorbatchov, trazia novas consignas, a reestruturação económica e a transparência, melhor dizendo queria alterar profundamente um sistema económico-financeira anquilosado e já corrupto, dentre em pouco um parente do líder defunto Leonid Brejnev será preso por mão baixa, cresceu a liberdade de criticar o pesadelo burocrático, Gorbatchov desdobra-se em viagens, promete desarmamento e apela aos Estados socialistas da Europa de Leste que se reatualizem. Os líderes da RDA tudo farão para não o ouvir, tive a oportunidade de conferir que o discurso político continuava na moda antiga.
E confesso que adorei Dresden, senti que os restauros naquela Berlim que fora reduzida a escombros estava a reaparecer graças a um trabalho colossal de requalificação. Irei ainda emocionar-me muito, conhecera o Museu de Pérgamo em 1981, fiquei embasbacado com as Portas de Babilónia e o Altar de Pérgamo, voltarei a visitá-los de boca à banda.
A Berlim de hoje é mais formosa, sem dúvida, graças aos arrojos arquitetónicos que começaram em Potsdamer Platz até às avenidas das embaixadas, não queria partir para as estrelinhas sem lá voltar.
Um abraço do
Mário
Na RDA, em fevereiro de 1987 (3)
Mário Beja Santos
Tenho direito a um início de manhã altamente cultural, contente com o pequeno-almoço de pão preto e uma boa xícara de café e uma peça de fruta, o tempo melhorou, faz um frio de rachar, mas não neva. Petra Petersen anuncia-me que temos de partir já, a bagagem a bordo, almoçaremos pelo caminho, dentro de dez minutos seremos recebidos por uma guia na Pinacoteca dos Velhos Mestres. E assim foi. O carro fica parqueado a pouca distância do Zwinger, avançamos para a porta grande da Pinacoteca, é uma senhora gentil que nos acolhe, escolheu doze obras para comentar e está previsto percorrermos as principais salas. Logo observou que nenhuma destas obras-primas foi afetada pelos bombardeamentos, em devido tempo este preciosíssimo acervo recolheu às caves dos edifícios mais resistentes, foi o caso da fortaleza de Königstein. A primeira grande surpresa é ouvir esta competente guia a apresentar-me a Madona de Pés Descalços de Rafael, é de ficar emudecido. A eficiente guia não perde oportunidade de me dizer que a Pinacoteca alberga mais de 70 mil obras-primas, é com prazer que me vai mostrar telas de Ticiano, Pinturicchio e muitos outros. No termo da visita, com uma expressão de quem vai pregar uma surpresa, diz que tem uma tela de um grande pintor português para eu admirar, e tinha mesmo, um quadro de André Pires de Évora. Agradeci imenso, o condutor olha para o relógio, temos ainda o passeio pedestre no interior de Dresden, contemplar o Elba e as suas pontes, há um outro guia dentro de 15 minutos que irá apresentar o Fürstenzug, houvesse tempo passaríamos toda a tarde a subir e a descer colinas para apreciar a belíssima arquitetura romântica, Arte-Nova e Arte-Déco que circunda a cidade, milagrosamente poupada nos terríveis bombardeamentos de fevereiro de 1945.
Apetecia-me ficar, mesmo nesta atmosfera gélida, a sentir estalar o gelo da noite debaixo dos pés. É uma cidade esplendorosa, nem me passa pela cabeça que aqui regressarei duas vezes mais, e com o coração aos saltos. Ala morena que se faz tarde, adverte o motorista, temos que galgar mais de 300 quilómetros até Berlim, depositar os trastes no meu hotel, mesmo junto da Porta de Brandeburgo, num canto da Unten den Linden com a Friedrichstrasse, e seguir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Uma das salas da Pinacoteca dos Velhos Mestres de Dresden
Um dos mais célebres quadros da Pinacoteca dos Velhos Mestres, a Madona de Pés Descalços de Rafael
Zwinger, o portento do Rococó alemão, Dresden
Fürstenzug, mural representando os governantes da Saxónia, com 23 mil azulejos da porcelana Meissen
À distância de mais de 33 anos, pasmo como guardei no caderninho a conversa havida com dois diplomatas no interior do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um edifício construído numa área nobre, perto da Catedral de Santa Edwiges, uma pequena aberração moderna que felizmente foi demolida nos trabalhos de embelezamento de Berlim transformada em capital da Alemanha. Era uma tarde morna, felizmente havia luz natural dentro da sala quando começou o primeiro monólogo, o pretexto era uma conversa informativa sobre a política externa da RDA. Que não se queria mais guerra em território alemão, fora neste território que começaram duas guerras mundiais, que uma guerra termonuclear não teria vencedores nem vencidos, de todos os países socialistas fazia o possível para diminuir a tensão armamentista oriundo do Washington, que na Europa havia vinte vezes mais armas espalhadas por todo o mundo, que a ideia de fazer um escudo defensivo para o mundo só se justificava para dar mais dinheiro aos advogados do complexo militar industrial. Aqui se interrompeu a primeira exposição, outro interveniente informou que a RDA não exportava situações revolucionárias, pautava a sua política externa para alcançar uma atmosfera de paz, estabelecera através do COMECON as melhores relações comerciais com o bloco socialista, não obstante tinha uma política comercial bem disponível para a RFA e havia até bons negócios com Portugal. A RDA oferecia cooperação técnico-científica em vários continentes. Havia agora ajustamentos graças ao pensamento de Gorbatchov, fazer da Europa uma casa comum, para a RDA não havia propriamente uma novidade, desde que se assinara a Ata Final de Helsínquia, em 1975, só se pensava no desanuviamento, que começava exatamente nos dois países alemães. Lamentava-se muito a propaganda ocidental hostil referindo atentados aos direitos humanos e prisões arbitrárias na RDA, tudo falso, aceitavam-se críticas ao regime socialista, ninguém era preso pelas suas opiniões, salvo as altamente lesivas, conotadas com traição, espionagem ou incitamento ao regresso ao passado. A abertura a quem quisesse deixar a RDA era uma realidade, no ano anterior fora autorizada a saída de um bom número de cidadãos para a Alemanha Federal, e aí um dos oradores lamentou que os trabalhadores da RFA ainda não estivessem maduros para construir o socialismo.
A conversa começa a ser um tanto o mais do mesmo, há citações a torto e a direito da Ata Final de Helsínquia, dos sucessos do socialismo da RDA, e quando peço novo café para estar espevitado, o Dr. Zoske substitui o Dr. Vogel para dar opinião sobre as conversações Salt-3, para redução dos armamentos nucleares, aguardava-se agora um novo quadro de negociações entre Gorbatchov e Reagan, era nítido que este último estava a precipitar nova corrida armamentista, sonhava com uma Guerra das Estrelas, instalara-se um novo quadro de desconfiança entre o Ocidente e o Leste, a RDA era favorável ao abatimento dessas tensões, pugnada por um equilíbrio militar entre os dois blocos.
É nisto que os dois oradores se entreolharam e me deram a saber que por hoje chegava, amanhã haveria nova pratada de informações, que o ilustre convidado pudesse sair da RDA ciente de que a política externa do país era a mais pacífica do mundo. Havia notícia de que esse mesmo ilustre convidado iria fazer uma visita guiada na Unten den Linden desde a Catedral até à Porta de Brandeburgo, e que amanhã também teria uma visita comentada no Bairro Nicolau.
Despedimo-nos com uma efusão controlada, conhecer metro por metro a Unten den Linden maravilha-me. Despeço-me de Petra e Gerald, voltamos a falar de Dresden e das alegrias de tão bela viagem. Amanhã há mais, ainda não sei irei fazer uma visita a um cemitério onde seria assaltado por um choro convulsivo, o velho combatente veio ao de cima. Eu depois conto.
Palácio da República, Berlim, anos 1980, ao fundo a torre de Alexanderplatz, o carro é o Trabant
A Catedral de Berlim, profundamente restaurada
Memorial aos Mortos da Guerra, obra de Käthe Kollwitz, Unten den Linden
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21523: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Na RDA, em fevereiro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)
Sem comentários:
Enviar um comentário