quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Trata-se de um curiosíssimo relato de uma viagem onde não faltam os ingredientes de um rei crudelíssimo, a surpresa da chegada de um branco, coisa nunca vista, quem o escreve é um francês de nome Max Astrié, que era vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Tudo se passou em 1879, a presença portuguesa confinava-se a Bolama no que toca aos Bijagós, a França não escondia o seu apetite em espartilhar a presença portuguesa na Senegâmbia. 

Max Astrié deslocava-se a pedido de um explorador lendário que queria intensificar os negócios na região. É um relato cheio de vivacidade, com algumas pitadas de sensualidade, feitiçaria e a descoberta das belezas inconfundíveis dos Bijagós. Uma belíssima descoberta, afianço-vos.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (1)

Beja Santos

Folhear os primeiros anos do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa dá azo às mais deliciosas surpresas. No Boletim, 6.º Série, N.º1, de 1886, li e reli com enorme prazer a viagem à Ilha de Orango, o seu autor foi Max Astrié, Vice-Cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Sou responsável pela tradução livre, desde já me penitencio de alguma interpretação desaforada. Releva a forma clara, de pronta apreensão, deste relato surpreendente daquele que terá sido o primeiro branco a pisar o solo de Orango, a maior das ilhas do arquipélago dos Bijagós. 

É uma narrativa cativante, um texto digno de ombrear no que há de melhor de literatura de viagens do século XIX.
Primeira página do relato de Max Astrié

Vamos ao que ele escreve. 

O arquipélago dos Bijagós situa-se na costa ocidental de África, entre a Senegâmbia e a Serra Leoa, se bem que nas cartas escolares figura em face da Senegâmbia. As ilhas são mal conhecidas. Só a ilha de Bolama foi colonizada pelos portugueses, vai para dois séculos, e serviu durante muito tempo como entreposto do tráfico de escravos.

Aimé Olivier de Sanderval,
Visconde de Sanderval
Em 1878, encontrava-me em Bolama e recebi de Marselha, via Lisboa, o seguinte telegrama: ''Max Astrié aceita missão explorar arquipélago Bijagós? Caso afirmativo, vir Marselha''. 

Após uma semana de hesitações decidi-me a aceitar e um mês mais tarde embarquei para essa cidade. O telegrama que me fora enviado viera de Mr. Olivier, Visconde de Sanderval, ilustre viajante que tinha explorado, correndo os maiores perigos, grande parte do Futa Djalon. 

Era um homem de cerca de 45 anos, barba negra, olhar expressivo, másculo e enérgico. Falou-me com uma comunicação calorosa, acreditava que estas regiões eram muito auspiciosas para o futuro comercial da França. Cheio de confiança, embarquei em Bordéus em 20 de Outubro de 1878 num barco que irá naufragar, um mês mais tarde, nas costas americanas.

Contraí febre-amarela, estive dois meses em Rufisque (Senegal) e um mês ao largo de Bissau, desembarquei em Bolama em 1 de Fevereiro de 1879. Fiz os meus preparativos para começar as minhas explorações em Orango, e por dois motivos: é a mais importante do arquipélago; havia rumores que faziam tremer os mais decididos, pois dizia-se que os Bijagós das outras ilhas que se aventuravam a ir a Orango não regressavam – a ilha era governada pelo rei Oumpâné Caetano, que havia chegado ao poder pela força das armas, um déspota sempre pronto a praticar actos de crueldade. 

O navio austríaco encalhara meses antes nos bancos de areia da ilha. Toda a tripulação ficara detida e posta a ferros e só fora libertada pela intervenção do sobrinho do rei. Foi ciente destas situações que para ali embarquei em 5 de Fevereiro, era o único branco a bordo.

Na véspera, recebi do agente consular da França em Bolama a seguinte carta: “Caro Mr. Astrié – tomei conhecimento que tem intenção de se aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio ter o dever de o desaconselhar com toda a firmeza de tal projecto. Deve saber que o rei desta ilha se dá à prática de actos atrozes, como foi o caso de alguns marinheiros austríacos ali naufragados. Não se vá expor a perigos que lhe irão causar grandes prejuízos pessoais, que levem à necessidade da intervenção do governo francês. Os melhores cumprimentos, segue-se a assinatura”.

Esta missiva não me deteve. A minha decisão estava tomada e parti com o apoio solícito de toda a população. Quando nos aproximámos de Orango, distingui à volta uma grande fogueira uma dezena de negros que gesticulava com vivacidade e em direcção do nosso barco. 

Passámos toda a noite a questionar se estas demonstrações não escondiam quaisquer propósitos para impedir o nosso desembarque. Apesar disso, no dia seguinte, ao amanhecer, preparei o pequeno bote, distribuí armas por todos os meus acompanhantes e dirigi-me resoluto para a costa. Quando desembarcámos, chegou um grupo de negros, homens, mulheres e crianças que gritavam e nos lançavam olhares espantados. 

A palavra Toubaba era constante nos seus bramidos. Alguns estavam armados de azagaias. Ordenei aos meus acompanhantes que formássemos um grupo compacto e convidei o meu intérprete a parlamentar com os autóctones. Nesse momento, um negro aproximou-se de mim, saudou-me com a mão e voltando-se para o intérprete falou nestes termos: “Diz ao branco que a embarcação está assinalada deste ontem e o rei envia-me para lhe dizer que o convida a vir à tabanca” e fez sinal para o seguirmos.
Vista geral da Ilha de Orango
Pormenor do Parque Natural de Orango

A tabanca do rei ficava a cerca de quilómetro e meio. Durante o trajeto ia-se juntando mais gente. Alguns minutos depois, chegámos a um laranjal, no meio do qual estava a casa do rei, que não era mais do que uma casa circular composta de uma paliçada de bambus e com um teto de palha. O rei esperava-nos num alpendre, era uma espécie de peristilo informe onde habitualmente se praticava a justiça.

 Sua Majestade Oupâné estava sentada num escabelo em madeira. Era um homem de aproximadamente 35 anos, olhos penetrantes, nariz adunco, coberto com um pano que lhe cobria metade do corpo. Sinal característico: trazia na cabeça uma espécie de cartola, segundo o uso de todos os reis do arquipélago. Na sua coxa direita tinha uma ferida repugnante, supurando um pus esbranquiçado, indicativo de uma doença muito espalhada nos povos da costa ocidental de África. 

De vez em quando, o rei espremia esta fica asquerosa e limpava os dedos no seu ministro da justiça, que estava completamente nu. Ofereceu-nos escabelos onde nos sentámos. Muitos dos viajantes fantasistas têm o triste hábito de se apresentar dizendo que conversam directamente com os indígenas de que ignoram a língua, o que nos deixa supor que nunca tinham posto os pés no país de que falam. O meu intérprete, depois de conversar com o intérprete do rei, disse-me:

“Queira o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Não esquecerei que ao falar ele lê no fundo do meu coração e que ele sabe previamente se as minhas palavras estão de acordo com o meu pensamento. Queira o Irã que do teu lado não sejas mentiroso! Em breve, vou fazer um sacrifício a todos os deuses: fala, o que vens fazer a esta ilha?”. 

Todo o povo estava ávido por me ouvir, agrupara-se à nossa volta e eu via, não sem uma certa inquietação, o círculo fechar-se cada vez mais, eu sentia o odor nauseabundo que vinha daqueles corpos besuntados com óleo de palma rançoso, segundo o costume do país.

O rei provavelmente apercebeu-se, porque fez com o bastão que tinha na mão um gesto significativo e a multidão afastou-se uma dezena de metros. Fiz a Sua Majestade os presentes do uso: um lenço de fino algodão; uma faca para talhante; oito maços de tabaco em folha e um garrafão de aguardente. Depois, voltando-me para o meu intérprete, respondi nestes termos: 

“Diz ao rei que estou pronto a responder a todas as suas questões com sinceridade, porque os brancos em França não mentem nunca. Vim a Orango para fazer com ele comércio de coconote, amendoim e borracha. Trarei do meu lado, todos os produtos dos brancos, tais como a quina (planta para tingir), o tabaco e a aguardente”. 

À palavra aguardente, correu um prolongado murmúrio de aprovação na multidão. O rei ficou uns minutos sem responder; depois, voltou-se para o seu intérprete e disse com voz rouca: 

“Diz ao branco que compreendi todas as suas palavras. Iremos oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta”. 

E logo se retirou para sua casa após terem encarregado dois negros para cuidar de todos os pormenores da cerimónia.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21515: Historiografia da presença portuguesa em África (237): “Permanência": a última revista de propaganda imperial (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mário, obrigado por mais esta "pérola" que desenterraste do "pó dos arquivos" da Sociedade de Geografia de Lisboa...

Estou em pulgas para saber o que aconteceu em Orango ao "nosso" vice-consul... francês da Turquia em Bolama e Bissau!...

Para já, sei que ele estava vivo em 1889... No Arquivo Histórico-Utramarino há um processo contra ele, em 1889... E ainda era vice-consul!...

Quando tiver um "joelho novo", com uma prótese XPO, ainda quero ir a Orango!...A tua literatura alimenta as minhas fantasias de viagens que ainda gostava de fazer antes de arrumar as botas... Orango é uma delas...

http://ahu.dglab.gov.pt/wp-content/uploads/sites/24/2016/09/AHU-%C3%8Dndice-Parcial-Acervol20170102.pdf

Anónimo disse...

Luis.

Ainda hoje em Orango a aguardente de cana é o maior passaporte.
E se poderes assistir à parte do fanado dos homens que te autorizarem, depois de 6 meses mato incomunicaveis.
Tive a felicidade de assistir penso que foi em 1996, a saida do mato de rapazes com 14 que o fizeram juntamente com os pais com mais de 40.
Tinha sido o primeiro depois da independencia é impressionante...todos com as suas lanças com muitas dezenas de anos, as suas dança, todos com os seus panos vermelhos amarrados ao corpo e os seus barretes vermelhos. Dá para gastar muitas baterias a tirar fotos.
Já dormim em Orango muito perto de 345 dias a maior parte na minha tenda, percorrendo todas as suas as suas diversas ilhas.
Abraço

Antonio Marreiros disse...

Amigos,
Nunca falei muito da minha passagem pela Guiné quando vim viver para o Canadá(Victoria,BC). Tentei esquecer e dar lugar às novas experiências num país novo e língua diferente.
Com os anos e para não ter muitas saudades fui enterrando memórias e aprendendo os hábitos desta nova sociedade.
Só consegui manter contacto com 3 amigos que também fizeram a Guiné comigo e por um deles encontrei este blog.Nessa altura só tive coragem para ler umas quantas histórias e como não gostei da depressão em que fiquei abandonei o site e só hoje, já perto dos 70,voltei à Tabanca. Estou a fazer um esforço para lembrar e escrever uma pequena história, em inglês, da minha vida forçada de militae de guerra.
Estou a pensar que a minha neta, agora com apenas 7 anos, um dia vai querer saber as origens e o que fez o avô...
A pandemia trouxe outra realidade e uma necessidade mais forte de procurar linhagens e realidades de juventude sobretude que estou fora de Portugal e das minhas raízes.Por isso tem sido mais fácil ler este mar de informação dos camaradas da Guiné e uma recolha de nomes e termos que afinal ainda estavam na meu vocabulário e apenas adormecidos.
António José se Sousa Marreiros,Ex-alf. miliciano em rendição individual na Companhia C.Caç 3544 (os Roncos) em Burumtuma (1972) e meses depois transferido para Begene/Guidage, C.Caçadores 3, até Agosto 1974
Um abraço a todos e que continuem bem!

Valdemar Silva disse...

António Marreiros.
Então por Burumtuma, quer dizer que fez a estrada Nova Lamego-Buruntuma e passou pela Ponte Caium.
A minha CART11 (1969-70), de soldados fulas, esteve fixada em Nova Lamego (Quartel de Baixo) e depois mudamos para Paunca, mas estávamos em intervenção em toda a zona leste e também fomos a Buruntuma em operações.
Ponte Caium, ninguém acredita haver um "Quartel" em cima duma ponte naquelas condições.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz