sábado, 7 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21523: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Na RDA, em fevereiro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Felizmente que me aviara em terra antes de partir para uma RDA cheia de nevões e sempre com a temperatura abaixo de 0ºC, calçado ideal para não partir uma perna, ceroulas, casacão e gorro. Jamais esquecerei esta visita à fortaleza de Königstein, inexpugnável como repetia com o maior entusiasmo o guia, agitando-se entre flocos de neve. Inexpugnável em termos militares, mas houve fugas audaciosas, como a do General Giraud, em 1942. O museu não deixa de impressionar pelas riquezas acumuladas dos reis da Saxónia, a museografia e a museologia eram altamente atrativas. E no último patamar, felizmente em período em que os nevões estavam ausentes, saboreei a panorâmica dos Montes Metálicos e o serpentear do Elba. Voltarei ainda mais duas vezes a Dresden, e não me importaria de regressar amanhã, mais não fosse para entrar na Igreja das Mulheres que conheci ainda em estado de escombro. E entraria com o pé leve na Pinacoteca dos Velhos Mestres, pedindo, ufano, que me indicassem onde podia apreciar o quadro de André Pires de Évora.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (2)

Mário Beja Santos

Num ápice, chegámos à histórica e renomada Fábrica Planeta, conhecida em todo o mundo por produzir máquinas de imprensa, cortadeiras e maquinação, trata-se de uma empresa de consórcio de poligrafia, estão na vanguarda da maquinaria que produz publicações a cores. É um senhor entusiasta, de nome Wensel, que faz a apresentação, mostra-me folhas, rolos, máquinas impressoras e bobinas, máquinas para livros ilustrados. Sempre orgulhoso do que exibe, tudo isto é exportado, e refere mesmo exportações para Portugal, fala na Heska Portuguesa. Revela também orgulho nos fotolitos produzidos, por todas aquelas máquinas de alta produtividade, havia para ali máquinas que imprimiam dez mil folhas à hora. O senhor Wensel olha para o relógio, está adiantada a hora, o almoço espreita, despede-se efusivamente, sabe que vamos seguidamente para um lugar histórico com tanto ou mais renome que a Planeta, Königstein.
E lá vamos, com a barriga a dar horas, Königstein fica na província de Dresden e está junto da fronteira da República Checa, ouvirei dizer mais tarde que é a grande atração da Suíça Saxónica, pode ser que seja mas com toda esta neve não há sonho suíço que me tire do enregelamento. Lá em baixo corre o rio Elba a caminho do Mar do Norte, há montanhas a toda a volta, é uma panorâmica soberba, sobretudo a que se percebe dos Montes Metálicos, avistam-se encostas penhascosas, desfiladeiros em precipício, o olhar avança até ao outro lado, à Boémia. Entramos na fortaleza, há uma senhora na receção que nos conduz a uma cantina, felizmente aquecida. Atirei-me ao pão preto e à manteiga, depois chegou aquela sopa clássica de beterraba com pedacinhos de carne e natas, confortou o estômago, seguiu-se uma salsicha com chucrute, estou pronto, depois de uma taça de café, para enfrentar os densos flocos de neve que caem sobre esta sólida fortaleza que foi até ao século XIX uma reserva da Corte saxónica, tem a sua origem no século XV, ganhou valor militar na sua reconstrução no fim do século XVI, o guia irá igualmente dizer no decurso da II Guerra Mundial foi prisão para prisioneiros políticos, aqui se guardaram os tesouros artísticos da Pinacoteca dos Velhos Mestres de Dresden e foi simultaneamente campo de prisioneiros de guerra, houve fugas audaciosas.
Entrada da fortaleza de Königstein
Detalhe da fortaleza de Königstein
Pormenor da fortaleza de Königstein, com panorama do rio Elba e a República Checa ao fundo

O mínimo que ocorre dizer, mesmo a pingar do nariz, a sentir os efeitos no nevão e a procurar não patinhar na neve (à cautela, trouxera calçado apropriado, umas solas com aderência, bem quentinho no interior, é que a estrutura é muito mais do que impressionante, com as suas três pontes levadiças, a dimensão das torres e torreões, compartimentos que serviram de prisões, olhar para aqueles penhascos inacessíveis, de onde outrora se vertia azeite a ferver e havia armadilhas que funcionavam como paliçadas com pontas de aço. O guia é perentório: aqui nunca entrou um inimigo enquanto houve fortaleza. Canhões não faltam, muralhas também não, já desisti de contar os edifícios, as cisternas, as torres de vigilância e as casas-matas. Estamos a mais de 360 metros do nível do mar e a 240 metros acima do Elba. É uma fortaleza em cima da rocha, Augusto, o Forte, dava aqui festas. Lá no fundo há poços, o guia insiste em descer, obedeço, meio agarrado ao corrimão. Fiz bem em preparar-me para ouvir a oratória ideológica. Aqui esteve preso em 1919 e 1920 o cofundador do Partido Comunista Alemão, Fritz Heckert, juntamente com outros 49 companheiros de luta. Durante a I Guerra Mundial aqui se utilizou uma sala como igreja para oficiais russos prisioneiros. Ao guia não escapa eu estar de ouvido à escuta. Vai-me mostrar o local por onde o General Henri Giraud se escapou em abril de 1942, uma fuga espantosa até à Suíça. Mais tarde veio a saber-se que contou com apoios de gente de Vichy, histórias. E a visita termina com uma passagem pelo museu da fortaleza de Königstein, tudo bem exposto, o guia parece ser muito humano, acha que já debitou o essencial, convida-me, com Petra e Gerald, a ir beber um chá. Creio que nunca bebi um chá com tanta satisfação, a alegria de ver as estranhas a aquecer. É fevereiro, anoiteceu ainda não passava das cinco da tarde, Gerald sugere regressar cuidadosamente a Dresden, agradeci-lhe a compaixão. O jantar foi saboroso, um pedaço de joelho de porco acompanhado por batata cozida e um molho a rescender a mostarda. O melhor seria ir mesmo para o quarto, mas não resisti a dar um passeiozinho para fazer horas. Espequei-me em frente da Semper Opera, na verdade a pedra que eu vi estava bem poluída, mas trata-se de uma construção circular de grande beleza. Amanhã de manhã, imagine-se, antes de partirmos para Berlim, deambularemos pelo Zwinger, terei de novo guia para visitar a Pinacoteca dos Velhos Mestres, e verei o interior da Semper Opera. Uns bons anos depois, aqui regressarei e terei o privilégio de assistir a uma récita da ópera Arabella, de Richard Strauss.
Castelo de Königstein, vista parcial
Semper Opera, a casa de ópera de Dresden

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