segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10363: Estórias do Juvenal Amado (44): O nosso Tenente Raposo

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 30 de Agosto de 2012:

Meus caros Luís, Carlos, Magalhães e restante Tabanca Grande
Mais uma recordação do 3872
Juvenal Amado


ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO (44)

O Nosso Tenente  Raposo

Na minha Companhia foram vários os oficiais mobilizados, que tinham construído carreira na Guarda Fiscal ou na GNR. Foram cumprir comissões de serviço com o fim de progredir na carreira e assim almejarem uma melhor reforma, uma vez que já estavam perto da mesma.

Foi o que se passou com o nosso Tenente Raposo, que era 1.º Sargento praticamente a entrar na idade da reforma. Quando formamos Batalhão e antes de embarcarmos já era Alferes do Quadro. Já na Guiné mas bem no início da comissão, a reforma do então Capitão que comandava a Companhia, também ele sem dúvida nenhuma foi para a Guiné pela mesma razão, de idade mais avançada e saúde pouco conveniente para aquelas paragens, o nosso camarada rapidamente chegou a Tenente e a Comandante de Companhia. No fundo para os militares profissionais, especialmente para os de secretaria, a guerra era uma forma de ganhar uns cobres e alcançar carreiras, onde a subida era mais rápida e a reforma mais confortável. Também é verdade que militares do Quadro era uma espécie em extinção, e à falta deles fazia o Exército recorrer a expedientes destes e outros.

Mas o grande enlevo dele era a Guarda Fiscal. Passava a vida a fazer cercos aos soldados, que via como potenciais futuros elementos dessa organização mas também para a GNR e PSP. Assim levou alguns que por sinal não se deram mal com isso, a julgar pelo bem-estar que ostentam nos nossos almoços anuais.

Outros houve, que usaram da boa-fé do nosso Tenente, para colherem algumas benesses, ao darem-lhe a entender, que estariam também inclinados a seguir essas carreiras.

Escusado será referir que quando já de malas aviadas para casa, lhe deram o nega e a coisa deve ter sido bem difícil de digerir.

Na foto, da esquerda para a direita: Tenente Raposo, Sarg Silva, Caramba (com o pipo), Santos (de cócoras) e Grijó.

O nosso Tenente era um daqueles oficiais que muito gostava de arranjar trabalho para todos aqueles em que poisasse os olhos. Mal apanhava algum soldado a passar nas imediações do seu gabinete, ele o requisitava e invariavelmente lhe dizia vai buscar isto, traz-me lá aquilo, sabes quem é fulano? Vai-lhe dizer que estou à espera dele. Isto passava-se a toda a hora e a todos instantes, pois os mais directos subordinados dele passavam a vida a desenfiar-se e mesmo de folga não estavam livres de serem chamados. Invariavelmente dizíamos que sim, apressávamos o passo como quem ia cumprir a ordem rapidamente e nunca mais lhe aparecíamos. Por vezes, horas depois, víamos o tipo que ele mandou chamar e dizíamos-lhe: “Olha que o tenente anda à tua procura”.

Quando estava de oficial de dia, ou nas chamadas nas formaturas da manhã, onde meia Companhia respondia pela Companhia toda, não era novidade o homem ameaçar com tabefes no focinho a toda a hora e nós gozávamos dizendo, que ele lá em casa só tinha peles a forrar as paredes.

Depois da leitura da ordem do dia, ele perguntava sempre se alguém tinha alguma coisa para dizer e se tivesse e ficasse calado tudo bem, mas se falasse e se o que dissesse não lhe agradasse, estava o caldo entornado. Assim aconteceu comigo por causa dos preços da cantina que já contei noutra estória.

Fiel ao ditado que cão ladra não morde, o bom do nosso Tenente nunca bateu em ninguém e ninguém teve castigo grave por sua causa.

Um dia o Aljustrel disse-me quando eu estava de reforço com ele:
- O Tenente vem sempre com pezinhos de lã para ver se apanha um de nós distraído, hoje vou-lhe pregar um cagaço.

Bem mo disse, bem o fez. Quando o Tenente vinha sorrateiro, o Aljustrel levanta a voz e, ao mesmo tempo que grita “quem vem lá, nem mais um passo”, mete uma bala na câmara da G3. Aquilo no mais completo silêncio gelou o homem. Depois já refeito, ralhou para lá os trinta farrapos, e a brincadeira custou ao Aljustrel uns reforços à “benfica,” o que era da praxe. Nada que não estivéssemos habituados pois eram quase dia sim, dia não. No meu caso fui muitas vezes já no posto chamado para sair da escala, pois ia numa coluna na madrugada seguinte. Bom, um homem habituado à disciplina e respeito na Guarda Fiscal, é bom de ver que não se entendia com aquela tropa macaca que lhe tinha calhado na rifa.

Na noite em que o Alferes X, meteu a granada descavilhada debaixo da cama e por causa dela saiu pelo telhado, tinha o Tenente Raposo estado a guardá-lo até dez minutos antes, o que o deixou muito abalado.

Quem o queria ver era de papelinho na mão para apontar uma ocorrência, ameaçar com uma “porrada”. Quando havia coluna a Bafatá, especialmente quando acabávamos de receber o pré, todos queriam ir “arejar” o patacão, o nosso herói olhava para as viaturas apinhadas de voluntários, fazia a chamada para os que estavam na lista, e mesmo estando lá quase o dobro, ninguém arredava pé até ele começar a barafustar depois de contar e recontar o pessoal.

- Raios partam a minha sorte, logo me fui meter com uma canalha destas - dizia furibundo exibindo um ar de vítima.

No Xime a caminho de casa > O Caramba e o Tenente Raposo

Quando fomos atacados entre as primeiras rajadas do Lourenço e os RPGs deles, ainda ouvimos o nosso Tenente a perguntar com a voz irada:
- Quem que foi a besta que deu os tiros? - Gritava depois no meio das explosões pelos homens do canhão, quando não tínhamos canhão nenhum. Decerto traria um papelinho na mão para apontar a ocorrência.

Nunca mais o vi depois de desembarcar, e atendendo que já era pessoa de idade, possivelmente já faleceu. Quando me encontro com o Caramba, que o sabia levar muito bem, falamos dele com algum carinho. Disse-me que o chegou a ver em Évora, já era ele Major e possivelmente na reforma.

Incontornável falar da CCS do 3872 sem falar do Tenente Raposo.

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10305: Estórias do Juvenal Amado (43): Olha o Silva!!!

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Juvenal

Tens o condão de referires coisas que depois me fazem lembrar episódios passados comigo. É o caso essa cena do sentinela enfiar bala na câmara da G3 e inquirir sobre quem aparece.

Quanto ao 'fresco' que é o teu 'retrato' sobre mais alguns aspectos do quotidiano, é mais um bom contributo para a caracterização da vida naquele tempo e naqueles lugares.

Abraço
Hélder S.