sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26035: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte II e última) (Belmiro Tavares)


CCAÇ 675
Guiné 1964 / 66


Retalhos do nosso pós-guerra - III


Belmiro Tavares

Vamos transcrever, agora, um texto da autoria do nosso médico, Alfredo Barata, onde ele relata as peripécias de duas viagens que ele fez a Farim, em dias consecutivos, para “apanhar” o avião que o levaria a Bissau; dali, seguiria para Lisboa em gozo de merecidas férias.
Apreciemos a sua escrita e o conteúdo!



A MINHA IDA À GUERRA

“Para não ter de dormir numa cama estranha, num ambiente estranho, numa terra estranha, aproveitei o transporte da LDM; resolvi deixar a bagagem em Farim e voltar, rio abaixo, até Binta. A viagem de regresso com os mesmos companheiros foi mais calma. Entardecia. A lancha empurrava as águas paradas, levantando com o seu barulho bandos de pássaros e macacos que, na margem, escolhiam poiso para aquela noite. No dia seguinte, de madrugada, embarquei novamente a caminho de Farim, Bissau e Metrópole. Desta vez ia só, sem o bulício da véspera. O dia começava a amanhecer, cinzento e húmido; mais tarde viria o sol brilhante e quente. Agora pairava uma neblina ténue junto ao tarrafo que escondia os ramos mais altos que, pouco a pouco, se ia desvanecendo com o romper da claridade. No interior do barco, a tripulação tomava o seu café. Em cima, o piloto olhava, atento, o rio pela vigia largamente aberta na cabine blindada, cortando curvas para encurtar caminho.

Encostado à torre da peça desguarnecida, eu passava os olhos pelas margens do rio sempre belo, pensando comigo mesmo: – Aqui é a foz do Caúr, mais adiante Tambato Mandinga. Mas há aqui uma aberta nas árvores das margens… Se não me engano… Que deixa ver as moranças da tabanca… Sim, é ali. (Já lá tínhamos chegado e, com efeito, era ali). De repente, ali mesmo, um clarão reluz, e outro e mais outro.

Antes que me pudesse aperceber do sucedido, caí, não sei se obedecendo ao instintivo "deitar" das instruções de combate, se por ter sentido uma pancada quente e indolor no flanco esquerdo que me puxava para o chão. As ideias de baço, de hemorragia, de esplenectomia passaram no espírito, desapareceram rapidamente; logo verifiquei que tudo não passava de um ferimento muscular parietal.

Entretanto a lancha virara de bordo, a fim de conseguir melhor posição de tiro. O artilheiro subiu ao seu posto de combate e com umas rajadas potentes de calibre de 20 mm "calou" o tiroteio inimigo. Aproveitei para acenar para o local onde deveriam estar os terroristas para que eles, quando fizessem o relatório da "operação", não dissessem que tinham abatido um alferes da tropa de Binta. A lancha voltou ao seu primeiro rumo e continuou, Cacheu acima, a caminho de Farim. Fez-se o balanço da situação. Quando souberam que tinha sido atingido de raspão, os homens da lancha excederam-se em cuidados pondo ao dispor o material de enfermagem de bordo e oferecendo café quente que aceitei com agrado. Estava em jejum e à minha volta percebia um estranho cheiro a carne assada que depois, me apercebi que provinha das minhas feridas. Discutia-se o ataque; uns diziam que tínhamos sido atingidos com uma bazuca, outros, como eu, sustentavam que os rebentamentos ouvidos não passavam de granadas de mão lançadas da margem… para "ronco". Os malandros tinham visto um oficial, a 80 metros, de pé, isolado na cobertura da lancha, feito "pato" com as mãos nos quadris e esperaram que o alvo ficasse no enfiamento de tiro para abrir fogo.

Pouco depois desembarquei em Farim. O "Dakota" já tinha chegado e, quando alcancei o Comando, já o avião se preparava para descolar. Ainda não era dessa vez que ia para Bissau. Teria de esperar mais um dia, talvez dois, e, à noite, dormi numa cama estranha, num ambiente estranho e numa terra estranha”.


********************

Vamos agora narrar uma mão cheia de acontecimentos da sua vida que são – pensamos – dignos de registo e devem ser do conhecimento dos vindouros. Vamos começar, precisamente, pelo mais antigo.

Após o seu nascimento, o senhor seu pai, deslocou-se à Conservatória do Registo Civil para proceder ao registo do seu nascimento. Após ligeira conversa, o funcionário público, ciente do seu papel, informou que ao neófito não podiam ser atribuídos quatro sobrenomes:
- Mas está certo! – respondeu o pai da criança, acrescentando: - O Meu filho chama-se Alfredo Roque e tem apenas três sobrenomes – Gameiro e Martins Barata.

E elaborou-se o registo!

O nosso bom João Semana não seguiu uma das carreiras dos seus pais, aliás como fez o mano mais velho que não descarrilou, seguindo arquitetura.

Graças a Deus! O nosso mui ilustre amigo, Dr. Alfredo Barata, não seguiu a tradição. Assim, a Medicina Portuguesa e a nossa CCaç 675 ganharam um grande médico sempre pronto a dar tudo pelos seus feridos e doentes.

Concluído o curso de medicina já casado e aprovado no COM (Curso de Oficiais Milicianos) em um dos primeiros dias de maio de 1964, apresentou-se, no RI 16, em Évora, sendo logo incorporado na CCaç 675. No dia 8 de maio, muito compenetrado, partiu connosco, no navio Uíge, rumo à Guiné longínqua e… maleitosa.

Em meados de 1965 apareceu, de surpresa, na vila de Farim, uma senhora loira que, muito confusa e perdida, no meio daquele emaranhado de itinerários variados, procurava o caminho mais curto que a conduzisse em segurança, até à aldeia mais badalada da Guiné. Talvez se falasse tanto de Guilege como de Binta mas por motivos bem diversos. Recorreu aos serviços do BCav 490 que, logo, enviaram uma mensagem via rádio a anunciar a presença de tão ilustre senhora, naquela vila. Tratava-se, apenas, da mui dedicada esposa do nosso preclaríssimo amigo, o dr. M. Barata. Como, ali, (em Farim) não havia transportes públicos (e privados também não) uma coluna de viaturas militares, partiu, imediatamente, para trazer, até Binta, a mui digna esposa do nosso conceituado médico.

Podemos afirmar que todos, sem exceção, deram o seu melhor para que aquelas férias (algo forçadas) fossem, minimamente, agradáveis; ficou hospedada, com o marido, num hotel 5 estrelas super e ninguém ousou cobrar-lhes qualquer verba pela luxuosa estada – serviço distinto… à moda da CCaç 675.

Lamentamos! Mas nem sempre foi possível evitar à ilustre veraneante um ou outro momento de certa confusão ou até aflição mas ela não se preocupou porque… o seu marido estava por perto. Era quanto lhe bastava!

O nosso médico gostava de se divertir com certas brincadeiras, mesmo que “picantes” e até com certas traquinices, mas, neste caso, apenas com graduados (oficiais). Que o diga o alferes Tavares! Este oficial sofreu de uma otite bilateral; o nosso bom Galeno tratou dele com lavagens que chegaram a ser bidiárias. Em uma destas lavagens, o dr. Barata usou, propositadamente, água fria. O Tavares sentiu umas tonturas inclementes e o Dr. Barata ria que nem um desalmado. Logo ele pediu desculpa ao seu paciente e continuaram a ser bons amigos, como teria de ser. Ele terá herdado esta veia “cómica” ou brincalhona da senhora, sua mãe.

Ele contou que na primeira vez que levou a namorada (a tal jovem loura) a jantar em casa dos seus pais, a senhora, sua mãe, serviu a sopa a todos mas, no prato da futura nora, colocou uma barata. A jovem candidata a esposa do nosso médico nada disse; pensava como haveria de sair daquela embrulhada. A senhora, mãe do nosso médico, apercebendo-se da enorme confusão que iria naquela cabecinha loira retirou o prato da sua frente e comentou:
- Apenas pretendia averiguar se gostava mesmo de Baratas!

O nosso excelente médico gostava de disputar uma sempre agradável partida de xadrez; acontece que na CCaç 675, apenas o Moura, o primeiro-cabo operador cripto, n.º 2542 (vulgo Cifra) tinha arcaboiço para o enfrentar mas… não dispunha tempos livres para aquele desporto muito especial. Aliás, ele ainda hoje participa em campeonatos de xadrês lá na sua terra natal.

O doutor Barata decidiu” viciar” o Tavares e ensinou-lhe as regras básicas daquele desporto; durante cada jogo, ele corrigia os erros e sugeria a melhor saída. Era um bom ensinador, o dr. Barata! Um belo dia, iniciaram a partida e, pouco depois, precisamente, ao terceiro lance, o Tavares alertou, contente:
- Xeque ao teu rei!
O bom do nosso médico olhou, fixamente, para o tabuleiro e, volvidos uns largos segundos perguntou escandalizado:
- Sabes o que fizeste?
- Dei xeque ao rei! - Respondeu o Tavares, eufórico.
- Não deste um xeque qualquer! Tu deste xeque-mate! Como ocorreu ao terceiro lance, chama-se “xeque Pastor”! Nunca pensei que tal pudesse acontecer-me, principalmente, com um principiante! Isto não pode repetir-se!

O Tavares nunca tinha ouvido falar em “xeque Pastor” mas… ficou entusiasmado. Com certa frequência, brindava-o com este dito:
- Olha que eu dou-te um Xeque Pastor!
Ele respondia:
- Isso nunca mais acontecerá!

Mas foram sempre bons amigos e durante a viagem de regresso, a bordo do já velhinho Uíge, passaram largas horas com o tabuleiro entre eles.

Em 1969, o Tavares pediu ao dr. Barata que o ajudasse a escrever os envelopes para a convocatória da confraternização daquele ano. Como ele tinha uma vida bastante ocupada, sugeriu que o Tavares se deslocasse ao Instituo do Cancro, durante certa noite, porque ele estava lá de serviço. Escritos os envelopes, lá mataram o vício jogando umas partidas de xadrez. Era já alta madrugada quando o Tavares saiu daquele Instituto. Foi, cremos, a última vez que se digladiaram, um de cada lado dum tabuleiro de xadrez. Nesta época, o Tavares já não era o tal principiante; no Colégio Militar havia muitos e bons xadrezistas.

Ainda em Binta, aquando do aparecimento da luz elétrica (finais de setembro de 65) cada um comprou, em Farim, uma ventoinha. Ambos defendiam que a sua soprava mais e melhor que a do outro. Para solucionar o diferendo “inventaram” um anemómetro “made in Binta”: um fio pendurado no teto da sala, com as ventoinhas frente a frente e à mesma distância do fio (medições com régua e esquadro) ligavam-nas, e em simultâneo mas… o diferendo continuava.
Alguém passou rente à janela e, ao aperceber-se daquele aparato, terá comentado:
- Coitados! Até são bons rapazes! Mas… já estão “apanhados do clima”! Se o nosso capitão não prepara para eles uma daquelas duras batidas, lá para as bandas de Sanjalo, aqueles dois ainda vão parar ao HM 241, em Bissau. Acabarão a comissão… antes do tempo!

Apesar de tudo, não chegaram a uma conclusão digna.
Decidiram, então, defender a “honra das ventoinhas” com cortantes espadas mandingas, meio ferrugentas, na mão. Alguns diriam que foi apenas para a fotografia; mas existem mesmo fotografias que comprovam que houve luta renhida mas… inconclusiva; no entanto, esqueceram-se de nomear “padrinhos”! Ficou provado que nenhum deles tinha queda para a luta com espadas… tão ferrugentas.

Um dia, o dr. Barata teve de assistir a um parto difícil; uma jovem africana (etnia mandinga) encontrava-se em sérias dificuldades para dar à luz, pela primeira vez. Dentro da “morança”, o dr. Barata tinha, à sua direita, o fur. mil. enf. Oliveira; à sua esquerda, encontrava-se uma “parteira” nativa, pronta a cortar o cordão umbilical com um ferruginoso facalhão que, só por si, infundia profundo respeito. A certa altura, o Oliveira segredou ao seu chefe:
- A sua “colega” está com ar compenetrado! Mas o seu “bisturi” mete respeito!

Todos terão rezado cada um ao seu Deus para que tudo corresse bem! Mãe e filho salvaram-se! Era o mais importante! Binta precisava de aumentar a população ativa!

O soldado n.º 2227, Henrique Cambalacho (mais conhecido por Sorna perdido e achado… estava a dormir) era um dos nossos guarda-redes. Um dia, ao fazer uma “espantosa” defesa, a bola bateu-lhe com força na cara, ou ele bateu com o pescoço no poste. Foi logo tratado e mandaram-no repousar… não fosse ele o Sorna. Acordou com grandes dificuldades para respirar e gritou por ajuda. Ninguém lhe deu troco, porque se tratava do “Sorna”. Logo, alguém se apercebeu que a cavidade bocal era demasiado pequena para uma tão grande língua. Foi levado, à pressa, para a enfermaria. O dr. Barata mal teve tempo de o submeter a uma traqueotomia… de emergência. Safou-se, à tangente!

O dr. Barata, apoiado por uns tantos voluntários, foi o responsável pelo projeto (não proviesse ele de uma família de arquitetos) e construção de um posto de socorros para os nativos, nossos vizinhos e um parque infantil para a miudagem de Binta. Entretanto, já vinha a preparar um grupo de jovens africanos que sentiam ganas de ser enfermeiros. Quando entendeu que estavam devidamente preparados, autorizou-os a dar “picas”… ao pessoal da tabanca. Inicialmente, eram supervisionados pelos nossos enfermeiros mas, em breve, passaram a trabalhar sozinhos. Sempre que se deparavam com casos mais intrincados… “passavam a bola” à nossa equipa de eficazes enfermeiros.

Há tempos, já acamado, segredou-nos que gostava de voltar à Guiné com a CCaç 675 para reviver aqueles tempos gloriosos, os anos de 1964/66.

Tinha tantas e tão admiráveis qualidades, o nosso médico! Até era saudosista, também!

E por aqui nos quedamos! Temos pressa de “chegar” aos nossos companheiros de todas as horas. Esperamos que ninguém esqueça que a Gloriosa CCaç 675 está acima de tudo e de todos.

Ninguém a esquece, a CCaç 675 merece!

Nota: Acrescentamos aqui as duas “baixas” ocorridas este ano:
- Sold. at. 2328, Joaquim Ferreira Martins, natural de Santo Tirso;
- Sol. eng. Joaquim Nunes Sequeira, natural de Sintra.

Agosto de 2024
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Nota do editor

Vd. post de 10 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26029: CCAÇ 675 - Guiné 1964 / 66 - Retalhos do nosso pós-guerra - III - (Parte I) (Belmiro Tavares)

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