Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"
Vidas por um fio (II)
Que bem estava assim de papo para o ar, quando minha mãe entrou no quarto e me disse:
- Meu filho, está lá fora o António e pede encarecidamente que vás ver o seu filho, que está a morrer.
Eu havia chegado nesse momento a Vale de Cambra para um fim de semana, vindo do quartel militar da Amadora onde aguardava o meu embarque para a Guiné. Estava cansado porque os trezentos quilómetros da altura, não eram os de hoje.
Em toda a minha vida clínica, vi muitas vidas por um fio. Mas nenhuma, como esta, se manteve tão enraizada na minha memória. O rapazito, de cinco ou seis anos, estava estendido numa pequena cama, inconsciente, branco como a cal, exangue. Tinha leucemia, segundo o diagnóstico de um pediatra de Espinho. A seu lado, sentada num pequeno mocho, a Tia Alzira esperava o último suspiro para o preparar.
- Amigo António, o seu filho está a morrer e precisa sem mal nem morte de uma transfusão de sangue. Tenho de o levar a qualquer lado.
- Nem pense, Sr. Doutor, o meu filho morre, mas morre em casa.
Foi aí que a minha força de jovem médico e o meu sangue na guelra me deram a crueza para lhe responder:
- Pois se você não mo deixa levar, ficará para sempre como culpado da sua morte.
Numa golfada de lágrimas, o pobre do homem, vencido, cedeu:
- Leve-o consigo, Sr. Doutor, para onde bem entender.
Eu tinha um velho Hillman Minx que era do meu pai.
Já noite cerrada, fui chamar um vizinho, o Urgel, e pedi-lhe que viesse comigo. Sentou-se no banco de trás com a criança ao colo e com a velocidade possível dirigi-me ao pequeno hospital de Oliveira de Azeméis. Contactei um colega que ali trabalhava, mais velho do que eu e que eu conhecia, a quem esmolei um pouco do sangue que por ali houvesse.
- Lamento muito, meu caro colega e amigo, mas não temos uma gota de sangue.
Corri para a minha carripana que eu muito desejaria que fosse um avião e rumei ao velho Santo António do Porto. Pouca gente se deve lembrar da urgência antiga do Santo António, com seus velhos claustros de paredes escuras e frias. O menino, deitado numa maca e embrulhado num cobertor, fez duas transfusões durante a noite. Ao raiar do dia abriu os olhitos espantados. A cal das suas pequenas bochechas tornara-se levemente rósea.
Foi internado na pediatria onde permaneceu nove meses. O diagnóstico de leucemia nunca foi confirmado, mas sim, uma grave doença hemolítica que, muito lenta e progressivamente, se foi compensando.
Hoje é pai de filhos e avô de netos.
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Nota do editor
Último post da série de 29 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25993: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (37): "Vidas por um fio"
2 comentários:
Só quem ama o próximo e a medicina faz aquilo que foi executado.
Obrigado Dr. Adão Cruz
Abraço
Eduardo Estrela
Adão, são histórias como estas que nos reconfortam: há homens que são "lobos dos homens", mas eu acredito no altruísmo, na solidariedade, na inteligência, na compaixão, na empatia, na coragem, nos valores mais nobres.... que nos distinguem de todas as outras espécies da ordem dos primatas a que pertencemos...
Às vezes tenho vergonha de ser classificado como um exemplar da espécie humana, "Homo Sapiens Sapiens"... Mas outras vezes reconcilio-me com a humanodade ao ler um microconto, fabuloso, como este que quiseste partilhar connosco, teus camaradas (de guerra e de infortúnio). O teu velho antepassado Hipócrates haveria, por certo, gostado de te conhecer.
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