quinta-feira, 4 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11803: Meu pai, meu velho meu camarada (39): Amadeu Simões Picado, ilhavense, 1º cabo quarteleiro, da arma de engenharia, integrou o corpo expedicionário português, em França, na I Guerra Mundial (1917/18), e emigrou depois para os EUA onde trabalhou quase sempre como pescador... Só o conheci aos 9 anos, em 1946... (Jorge Picado)


França > I Guerra Mundial > Corpo expedicionário português > c. 1917/18 > Um grupo de militares camaradas de meu Pai, que é o 1.º da esquerda sentado.


França > I Guerra Mundial > Corpo expedicionário português > 1918 >  Outro grupo de camaradas, estariam alguns na foto de cima  (?). Foi enviada em IX/X/18. Três são de Ílhavo: o meu Pai, é o da extrema direita e os outros conterrâneos chamavam-se, João Pinto e Manuel Silva. O civil era um "Monsieur" Francês ("muito meu amigo", nas palavras de meu Pai) e o 4.º militar era do Porto.

 Fotos (e legendas): © Jorge Picado (2010). Todos os direitos reservados

1. Texto e fotos enviados pelo Jorge Picado, em 28 de Fevereiro de 2010.  Certamente por lapso, o poste foi editado  mas não chegou a ser publicado. As nossas desculpas ao autor e aos leitores.

Recorde-se que o nosso amigo e camarada Jorge Picado [, foto à esauerda,] foi cap mil na CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, na CART 2732, Mansabá e no CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72 [... aos 32 anos, pai de 4 filhos, engenheiro agrónomo, filho de Ílhavo, com muita honra, acrescenta ele].

Assunto: I Guerra Mundial

Amigo Luís Graça:


No P5899 (*) de ontem, sobre a Exposição Portugal nas Trincheiras – A I Guerra da República, que publicaste, terminas referindo-te a antepassados de camaradas da Tabanca Grande que possam ter participado dizendo: "Mas haverá mais casos…que poderão chegar ao conhecimento do blogue"...

O camarada José Marcelino Martins no seu comentário dá nota de 2 dos seus antepassados que tinham o posto de 2.º Sargento e que também participaram naquela guerra.

Ia para dar também finalmente, já que quando este assunto foi anteriormente abordado tinha escrito algo, dar conhecimento do meu caso, mas como queria enviar umas fotos já muito velhinhas que não sei se terão qualidade para serem reproduzidas, remeto-te o texto e as fotos para tua apreciação.

Um abraço e se não for antes até ao almoço na Ortigosa.

Jorge Picado


2. O meu Pai também fez parte do Corpo Expedicionário Português na I Guerra Mundial em França (**)

por Jorge Picado 


Tendo nascido no final do séc. XIX, mais precisamente em 22 de Junho de 1895, e tomado o nome de Amadeu Simões Picado, mas já sem o apelido de "Bravo", que afinal sempre mostrou ser, ficou apto para todo o serviço militar quando foi às sortes, já que era um rapagão e pescador saudável e a sua incorporação no Exército deu-se em plena Guerra.

Sendo ele pescador, naqueles tempos, nas chamadas "Artes de Pesca" de Sesimbra, não se esqueçam que os Ílhavos foram rumando para Sul, pelas costas de Portugal, e não só, já que no Tejo embrenharam-se até por ele dentro, mas como ia dizendo pelo litoral fora até aos Algarves, formando diversas "colónias piscatórias", sempre que assentavam arraiais naquelas em que a pesca se mostrava pródiga, como pescador, portanto, mas talvez por não ser embarcadiço, isto é, não andar nos navios de pesca do "alto mar" ou mercantes, não foi cumprir o serviço militar na Marinha, mas sim no Exército.

Não era um iletrado, pois tendo frequentado a escola primária até quinze dias antes dos exames da 4.ª classe, só não concluiu a escolaridade nessa data, face a um castigo injusto que um professor, que não era o da sua turma, lhe aplicou.

Com a sua rebeldia, ou ele não fosse herdeiro de antepassados com apelido "Bravo" que muitas vezes se sobrepunha ao próprio nome, saiu repentinamente da sala, tendo de atravessar a sala do professor da sua turma que como Director da Escola tentava preparar melhor os alunos do tal professor para os exames finais e abandonou o edifício, apesar dos protestos do "seu" professor que veio atrás dele, mas não o conseguiu deter.

Por este motivo já não voltou mais à escola, nem a casa dos seus Pais, pois sabia que a severidade da sua Mãe, contrastando com a bondade do Pai, como contava, se faria sentir no seu corpo e o obrigaria a voltar à escola e humilhar perante todos, coisa que ele não admitia, passando a viver desde aí com uns tios e acabando por não fazer o exame da 4.ª classe.

Com aquela idade já o seu voluntarismo e o seu forte sentimento de não se submeter nem pactuar com injustiças, traçaram o seu caminho.

Em lugar de seguir as pisadas do seu irmão mais velho que, completando a instrução, se tinha tornado Oficial Náutico, ele que era dos melhores alunos da turma, iniciou-se como auxiliar nas "Companhas de Pesca" da Costa Nova, ou para aqueles que não conhecem esta maravilhosa e antiga região, na chamada "Arte Grande" ou "Arte de Xávega", prosseguindo como pescador, para depois seguir com outros familiares para as tais "Artes" de Sesimbra, até ser incorporado na Arma de Engenharia, na especialidade, como ele dizia com muito orgulho, de "Pontoneiro", construtor de pontes militares, feitas naqueles tempos com barcaças amarradas de braço dado, sobre as quais se colocavam os estrados que serviam de passadiços.

Desculpem-me este alongamento na descrição e, já agora, um pouco mais da sua iniciação na vida militar, não só para dar a conhecer um pouco mais a têmpera de que ele era feito, mas também como uma pequena homenagem que lhe quero prestar.

Todos que me lêem, com excepção daqueles que por fatalidade se viram órfãos de Pai muito cedo, foram durante a sua infância educados por Pai e Mãe. Ora eu, não sendo órfão, fui apenas educado por minha Mãe, já que só conheci o meu progenitor quando tinha 9 anos, em 1946. Podem crer que invejava muito os meus colegas de brincadeira que tinham diariamente ou pelo menos ao fim duns meses, aqueles que andavam ao mar, os seus Pais em casa e eu tinha um Pai de fotografia em cima dum móvel da casa…

Emigrante nos USA, desde o início da década de 20 do séc. XX, já depois de ter regressado de França casado e com a primeira filha, em consequência da II Guerra Mundial, a estadia naquele País depois de me ter concebido e ver-me nascer, como quinto descendente, mas quarto filho vivo, prolongou-se por quase 9 anos, em lugar dos habituais 4.

Por esse motivo, só quando regressou definitivamente da sua diáspora, já então eu andava no ISA [, Instituto Superior de Agronomia, ] em Lisboa, é que comecei a saber mais da sua vida, já que ele possuía uma "memória de elefante" e recordava todos os pormenores desde a sua infância, o que para mim era um espanto.

Assim, sobre a parte militar, contava ele todo ufano:

Ao chegarmos ao quartel, estava um militar sentado a uma mesa e outro em pé por trás. Sabes, eu ainda não conhecia as patentes, pois só depois é que vim a saber quem eram, e nós,  os tais mancebos, em fila, íamos entrando um a um e esse sentado perguntava o nome, a terra e a data de nascimento… Só depois se entrava e o tal que estava em pé dizia a um ou outro, para este lado ou para aquele.

Ao chegar a minha vez, disse o nome, a terra e, já por malandrice como fazia sempre, a data verdadeira em que nasci, 22 de Junho de 1895.

Responde-me o tal militar sentado, que depois vim a saber ser sargento:
─ Seu burro, que nem a data de nascimento sabe.

Quase nem chegou a terminar a frase porque levou logo como resposta e com o meu vozeirão:
─ Seu burro é você. Sei muito bem a data do meu nascimento, só não tenho é culpa que o burro do individuo que escreveu o registo, por burrice ou estar bêbado tenha escrito um 2 em vez de dois 2.

Abro aqui um parênteses para explicar que o tal funcionário que naquela época fazia os registos em Ílhavo, gostava muito dos copos e escrevia muitas vezes o que queria e não o que as pessoas lhe ditavam, valendo-se do analfabetismo quase geral da população. Por esse motivo muitos houve que só na adolescência, quando precisaram de documentos, para irem por exemplo para o mar, é que vieram a saber que não eram detentores do nome que julgavam ter e pelo qual sempre foram tratados, mas sim de outro pelo qual nunca foram conhecidos.

Mas voltando à incorporação do mancebo Amadeu Picado:

O militar ficou muito vermelho e o outro que estava em pé e que depois soube que era Capitão, não o deixou falar e disse-me muito calmamente.
─ Ainda que haja erro no registo, a verdade é que oficialmente a sua data de nascimento é a 2 e não 22, pelo que deve responder e escrever sempre como tendo nascido a 2. Passe para este lado, que era o grupo onde estavam muito poucos, já que quase todos iam para o outro lado.

Sabes, o Capitão estava a separar aqueles que iriam ficar com ele, escolhendo os que tinham mais estudos e se mostravam mais espertalhaços.

Passou a ser "o meu Capitão", obrigou-me a ir a exame da 4.ª, mesmo sem frequentar as aulas, pois eu mesmo assim sabia mais do que os outros, passei depois a ser o seu impedido, tendo sempre o seu cavalo todo bem tratado, indo buscar o seu almoço a casa, o que me valeu namoriscar a criada e antes da mobilização, deu-me uma caderneta militar nova e limpa de todos os castigos, já que eu não era muito domável àquela disciplina militar.

Para tristeza dele só não conseguiu que, depois de me fazer cabo, eu me inscrevesse para a Escola de Sargentos, como ele queria. Mas eu sempre lhe disse que era como as gaivotas e preferia os perigos do mar do que ficar preso em terra.

Portanto,  o meu Pai embarcou para França como cabo e não sofreu propriamente as agruras da frente das batalhas, já que ficou como quarteleiro junto do Comando do "Corpo" (?) de Engenharia, logo sempre na linha da retaguarda, quase sempre aquartelados num daqueles Chateaux, sede duma enorme propriedade agrícola.

O proprietário, que aí vivia com a família, convivia e dava-se muito bem com as tropas Portuguesas e, como o meu Pai dizia, até nisso tinha tido sorte pois era tratado pelo francês com muita deferência, se bem que só mais tarde viesse a desconfiar qual o motivo para tal.

É que os donos daquelas propriedades tinham apenas uma filha, por sinal também em idade de casar e,  apercebendo-se das qualidades do portuguesito, como ele dizia, começaram a pôr o olho nele para tomar conta da empresa agrícola. Só que havia ficado cá,  nesta vila maruja, uma costureirinha que lhe tinha já "costurado" o coração e, com muita pena do francês, nada feito.

Como já disse, depois de regressar da França passados dois ou três anos casou-se e,  após o nascimento da primeira filha, emigrou legalmente para os USA, onde mourejou muito quase sempre como pescador, com excepção dos tempos da "Depressão", em que teve de apanhar todos os diversos tipos de trabalho em terra que conseguia.

Envio então as duas fotos

1 – Um grupo de militares camaradas de meu Pai, que é o 1.º da esquerda sentado, em França.

2 – Outro grupo de camaradas, estariam alguns na foto 1 (?), e enviada em IX/X/18.

Três são de Ílhavo: o meu Pai, é o da extrema direita e os outros conterrâneos chamavam-se, João Pinto e Manuel Silva. O civil era (um "Monsieur Francês muito meu amigo", nas palavras de meu Pai) e o 4.º militar era do Porto.

Recordando as histórias que o meu Pai contava, seria este Francês que ele escreveu Monsieur, o tal grande agricultor cuja quinta tinha um palacete e que queria casar a filha com o meu Pai?

Abraços

Jorge Picado
____________

7 comentários:

Luís Graça disse...

A história mais recente de Ílhavo liga-a, de maneira extensa e profunda, à pesca do bacalhau, na Terra Nova, ao longo do se+c. XX. Mas também à marinha mercante e à marinha de guerra.
A maioria dos capitães que faziam companhas de longo curso (Terra Nova) eram ilhavenses. Muitos pescadores e marinheiros da frota do bacalhau também eram do concelho. Tenho lá bons amigos, na Costa Nova, a começar pelo nosso camarada Jorge Picado, o Zé António Paradela (arquiteto), e o João Vizinho (médico do trabalho).

Tony Borie disse...

Olá Jorge Picado.
Não te alongaste nada, ainda lia mais se houvesse, descreves com o coração a vida do teu pai, que foi a vida de centenas de jovens do seu tempo, não só do continente, como das ilhas, atravessaram o Atlântico, sempre procurando o melhor, sem dependerem de outros, o seu pensamento era, o que conseguissem era o fruto dos seus braços, bem haja essa geração, que levou e honrou o nome de Portugal por todo o mundo.
Tenho algumas histórias parecidas com a do teu pai no meu pequeno blogue, que se tiveres um minuto podes abrir a página em http://tonisaborie.wordpress.com
onde verás outros heróis e heroínas do tempo do teu pai, que eu fui encontrando por aqui.
Gostei e admirei a coragem do teu pai, e a tua, em repartires a sua história com os teus companheiros.
Um abraço, Tony Borie.

Luís Graça disse...

Foi uma época terrível para os nossos militares, sobretudo os que foram para as trincheiras... Em 1918, há uma pandemia de gripe pneumónica (estimam-se em mais de 100 mil o nº de vítimas mortais até 1919, no nosso país, cerca de 1,5% da população total).

Por outro lado, estima-se em cerca de 5000 o número de soldados do Corpo Expedicionário Português que regressam, do teatro de guerra na Flandres francesa, com tuberculose...

Luís Graça disse...

,,, Sem esquecer as baixas da terrível Batalha de La Lys, um dos maiores desastres da nossa história militar...

"Batalha travada em 9 de abril de 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, entre as forças da Alemanha e do Império Austro-Húngaro, por um lado, e a coligação de países em que se destacavam a Inglaterra, a França e Portugal, por outro. A batalha decorreu numa planície pantanosa banhada pelo Rio Lys e seus afluentes. As forças portuguesas assumiram a disposição de um trapézio, cuja face voltada para o inimigo se estendia por 11 km, e dispuseram-se em três linhas de defesa. Este foi um dos mais sangrentos confrontos em que esteve envolvido o Corpo Expedicionário Português, que aqui teve as seguintes baixas: 1341 mortos, 4626 feridos, 1932 desaparecidos e 7440 prisioneiros".

Fonte:

Batalha de La Lys. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-07-05].
Disponível na www: .

manuelmaia disse...

Caro Jorge,

Gostei da forma como falaste do teu pai e nos contaste aquele espírito de antes quebrar que torcer que definia os homens verdadeiramente grandes daquele tempo...
Teve a sorte do seu lado no que concerne à pacatez da zona onde esteve inserido, mas a vida é constituída mesmo assim, por sorte e azar...
Abraço
mm

José Marcelino Martins disse...

Caro Jorge

"As batalhas que Portugal travou" são a minha leitura preferida.

Este texto está nessa linha. O teu pai foi contemporâneo de parentes meus, avô e tios, nessa que foi considerada a Guerra das Guerras.

Abraço

Anónimo disse...

Primeiro que tudo quero pedir desculpa aos leitores e aos camarigos que publicaram comentários, sem que a minha presença neste espaço se manifestasse ao fim de tantos dias, mas a razão para tal motivo é bem simples.
Desde meados do mês passado que me encontro já na Costa Nova, onde não tenho tanta disponibilidade, nem o acesso facilitado da Net, como na residência habitual.
Assim, só agora tive conhecimento da publicação deste texto que tinha enviado já nem sei quando e que me surpreendeu também.

De facto, no que se refere ao tempo passado na guerra em França pelo meu Pai, não foi nada mau. Como ele mesmo o reconhecia, quase nem deu pela guerra.

Passou por momentos muito piores na sua actividade profissional, no mar, como pescador na costa portuguesa e depois na costa leste americana.

Nos EUA também sofreu, como todos aqueles desses tempos, que "apanharam" com os "anos negros da depressão" e tiveram que se "desunhar" para se sustentar. Mas com o seu "feitio" de "antes quebrar que torcer" ele agarrava todos os trabalhos que lhe apareciam, desde carpintaria a fazer cenários para filmes do Charlot nos primórdios deste actor que eram filmados ainda na costa leste, a construir vedações nas quintas, na distribuição de carvão e foi até Chicago procurar lá trabalho, quando ainda não falava uma palavra de inglês, usando o velho estratagema dos marítimos destas terras que reproduziam em português foneticamente, as palavras e frases do inglês.

Tony, a história do meu Pai nesse País é idêntica há de muitos outros emigrantes. Ele embarcou legalmente em Lisboa no dia 10/08/1920 no Navio ASIA que transportou 355 passageiros. Por curiosidade posso-te dizer que o acompanharam nessa viagem cerca de 250 portugueses de numerosos concelhos, incluindo 1 de Águeda. De Ílhavo eram 35, Vagos 24,Aveiro 12, enfim tenho a lista completa que obtive no site de Ellis Island.

Obrigado ao Camarigo Luís pela publicação e a todos que teceram comentários.

Abraços do JPicado

PS-Não estranhem as minhas futuras ausências, mas são fruto da época balnear.