domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6181: Notas de leitura (95): Até Hoje (Memória de Cão), de Álamo Oliveira (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A aventura continua, acabo de receber livros emprestados sobre obras de Amândio César, Alexandre Barbosa e Francisco Valoura. Chegou mesmo, pelas mãos do Manuel Joaquim um livro do Luís Rosa “Depois da Guerra”, edição de autor (1990) que muito provavelmente é a primeira versão de “Memórias dos Dias sem Fim”. Vamos ver.

Continuo a apelar a que não se esqueçam de me indicar títulos respeitantes a edições dos anos 90.

Um abraço do
Mário


O medo dos fantasmas é que nos aguenta aqui

Beja Santos

Álamo Oliveira (1945) é romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, director teatral, pintor. “Até Hoje (Memória de Cão)”, publicado pela Ulmeiro, em 1986, será porventura a sua única incursão ficcionista pela Guiné. É um livro assombroso e singular. Só poderia ter sido escrito por um ilhéu e um homem de coragem, capaz de se despir do seu íntimo, num texto de enorme elevação, lirismo e sofrimento incontido.

Tudo começa na Rocha Conde de Óbidos, naquele cais de Alcântara João só pensa na ilha e suas gentes: “Vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passara a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, faias do norte, quase bedum de esperma, queijo”. Daquele atlântico trazia memórias de vacas, burro e cão, cataclismos vulcânicos, uma infância em se andava descalço e limpo. Agora era o 127 e partia para a Guiné. Tem dias para sulcar os mares a pensar no pão duro da sua criação, a bordo do Uíge. Praticara jogos de guerra no Monte Brasil em emboscadas na estrada do mato, na sua ilha verde, rodeado de vacas pacíficas. Tinha 21 anos, não chegara a comprometer-se com a Isabel, partiu para a tropa, andou a saltar, a marchar e a rastejar, aprendeu a dar tiros de coice Mauser. Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, regista num caderno os seus estados de alma. As recordações desfilam, é menino e moço, aprende os frémitos do sexo e as masturbações colectivas.

Chega o alvorecer em que se avista África, uma massa verde, pequeninas ilhas, pássaros irreconhecíveis. O Uíge entra numa enseada que não é. João Machado vem em rendição individual, pertence ao contingente daqueles que substituem doentes, estropiados, desaparecidos e mortos: “Estão ali como peças sobresselentes, parafusos, panelas, agulhas, culatras, e mesmo corações, alvos, cabeças e, quem sabe, almas”.

A bordo de uma Berliet, atravessa Bissau a caminho do Quartel de Adidos, é uma paisagem nua, alguém lhe fala nos baga-baga, João nunca viu tantos rostos tensos. De novo a memória esvoaça para a ilha, para os inhames e café-cevada, a matança do porco, depois o discurso do capitão Gandra trá-lo à realidade. Cá fora do refeitório, uma fila interminável de negros, quase só crianças, as barrigas entumecidas pela fome, aguardam os restos da sopa. Ouve-se a cólera do capitão Gandra: “Cabo-dia, manda formar estas cavalgaduras imediatamente. As cavalgaduras formaram. Seguiu-se um silêncio que África inteira ouviu. As boas vindas estavam dadas”. Nos Adidos, aqueles soldados em repouso só pensam em salvar a pele. João quer resistir, o seu coração está na sua freguesia. Até que um dia é mandado para Binta, até teve o luxo de ir de helicóptero, iam evacuar uma negra grávida, a criança estava atravessada.

Binta não o comoveu, aparecia-lhe como lugar sem história, três casas de colonos já fugidos à guerra, quatro barracões de mancarra e uma tabanca de balantas e mandingas. Nomearam-no padeiro. Devagar, a sensualidade começa a tomar conta do relato de Álamo Oliveira: “O rapaz está agora à sua frente, grande como ele, tronco a brilhar de óleo suado, a pele lisa como cetim, os calções curtíssimos a realçar o corpo rijo. Tem o rosto oval, assim como mondligliano, boca desenhada a rigor, lábios fortes e molhados, o nariz regular, o queixo chaveta e cabelos muito castanhos e lisos, fartos, caídos à vontade. São os olhos castanhos que se fixam em João, protegidos por duas grandes pestanas. Chamo-me Fernando”.

Assim começa uma relação, uma cumplicidade, um encontro destinado a um desencontro trágico. São homens sós, Fernando vai ser abandonado pela mulher que lhe deixa a filha em casa dos pais. Isabel ainda escreve a João, é uma ânsia de tudo querer dizer, João sente o doce sossego da ilha, mas a aparição de Fernando está a pôr-lhe os sentimentos numa estrada de verdade. Em Binta, o cansaço é gelatinoso, fala-se desenfastiadamente do que se passa naqueles locais onde à noite se ouvem os rebentamentos, ali perto, em Guidage, há alguns perigos, e do outro lado, na mata do Oio, reside uma ameaça permanente. É na bebida que a guarnição entorpece o tédio daquele tempo lodoso. João confia-se cada vez mais a Fernando, o tempo passa e o afecto de ambos anda à deriva, João retrai-se, não se sente capaz de assumir o que lhe vai no coração.

Depois Binta é atacada e Zé Domingos mortalmente atingido, ficara no cais, completamente perdido de bêbedo. A atmosfera psicológica lança os soldados no marasmo, há gente completamente ensimesmada. É o caso do Mastigas que se fez pêndulo de silêncio, adorador dos grandes vazios. João continua a preencher o seu caderno. A chegada do correio é um acontecimento avassalador, como Álamo Oliveira descreve: “Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram... As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho... Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionado metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração”.

Com o andar do tempos, o álcool vai tomando conta de tudo e todos. Isabel casou com um imigrante, fartou de tanto silêncio, quem vive na ilha está pronto a partir para a América, mesmo que o amor venha depois. Depois o Mastiga suicida-se: “O tiro isolou-se como um deus chateado no seu claustro de silêncio. Na cama do fundo, o Mastiga está deitado desafiando a pontaria de todas as armas do mundo. Vão falar-lhe dessa indiferença, dessa coragem deitada, do tiro isolado e único. E a boca estoira-se-lhes num grito imenso de pavor. O Mastiga atravessara a cabeça com uma bala de G-3. Parecia uma flor vermelha, desfolhada sobre a almofada muito branca e aflita”.

Chegou a hora de uma LDM ir buscar toda a tropa a Binta, de novo embarca no mesmo Uíge que o trouxera, até Alcântara. João e Fernando vão ver “Música no Coração” no Tivoli e depois vão dormir numa pensão no Rossio: “No quarto número treze o amor ficara do tamanho da cidade e coubera inteiro numa pequena cama de ferro, pintada de esmalte branco. Não há sinais de proibição, códigos de viagem, espartilhos no coração. Os seus olhos brilham e dormem”. João vai regressar à ilha, Fernando promete escrever, só que as suas cartas nunca obterão resposta. Tudo está diferente quando ali chega, porque ele é que está diferente. “Poucos meses depois, sem grandes pré-avisos, João despediu-se da família e... emigrou. Até hoje”

É uma obra de grande inspiração lírica, com todo o desassombro a homossexualidade é narrada com afecto e desafectadamente. E não deixa de impressionar o peso esmagador da ilha, omnipresente em João e na tragédia de tanto encontro e desencontro. Para que conste.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

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