quarta-feira, 21 de abril de 2010

Guiné 63/74 – P6206: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (IX): Coincidências de Aniversários ou algo mais?


1. O nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, enviou-nos, em 20 de Abril de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas e Amigos,
Mais liberto dos meus compromissos teatrais, eventualmente espicaçado pelo nosso camarada Alberto Branquinho, eis-me a enviar um texto desde o meu Buarcos lindo...

BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO - IX
Coincidências de Aniversários ou algo mais?

Li há dias que o nosso Blogue, a nossa querida Tabanca Grande, vai completar seis anos nos finais do corrente mês de Abril e alguns camaradas nossos têm-se referido de forma elogiosa, atribuindo com toda a justiça, ao nosso Comandante Luís Graça e aos seus co-editores, o êxito deste espaço magnífico de diálogo e de discussão, que eu leio diariamente e onde aprendo sempre qualquer coisa.
Deixarei para os mais talentosos de escrita os elogios rasgados, os louvores e os aplausos públicos que o Luís merece, encómios esses aos quais eu me junto, por antecipação, sem qualquer rebuço.

Decidi então contribuir para o aniversário do nosso Blogue com uma história passada em Mafra em finais de Abril de 1971, para mim de enorme importância e altamente marcante para toda a minha vida.

Demorei todo este tempo a trazê-la a público pois tinha a necessidade absoluta de conhecer alguém que também a tivesse vivido para poder, em quaisquer circunstâncias, testemunhar o ocorrido.

Fui incorporado em Mafra no dia 11 de Janeiro de 1971, tendo feito a recruta no quarto pelotão da 1ª Companhia, pelotão comandado por um homem de elevada educação e cultura, sempre preocupado em transmitir aos instruendos o que a sua experiência de combatente na Guiné lhe ensinara: o então Alferes Mário Beja Santos, que hoje faz o favor de ser meu amigo.

O segundo ciclo, julgo que se estendeu de Abril a Junho, cumpri-o no primeiro pelotão da 4ª Companhia, pelotão constituído por elementos escolhidos para o curso de capitães milicianos, também chamados “capitães de proveta” e não me recordo do nome do comandante desse pelotão.

Os meus camaradas que passaram por Mafra, terra a que nunca mais voltei, mas que espero visitar quando a reforma da minha mulher lhe bater à porta, lembram-se da foz do Lisandro, recordam-se do Vale Escuro, da Aldeia dos Macacos e da travessia da lagoa que existia na Tapada e do rigor muitas vezes descomedido da revista às botas, às armas e à barba que nos permitia, ou não, sair daquele convento para petiscar aqui ou acolá, beber um fininho ver um pouco de televisão ou conversar, em grupos de dois três elementos, sempre em andamento por causa das “escutas”.

Estaria Abril, particularmente chuvoso nesse ano, já na parte final quando uma desgraça aconteceu na travessia da lagoa.
O exercício não seria mais difícil do que por exemplo o andar no pórtico, ainda hoje abomino essa palavra, ou saltar para o galho, mas as chuvas tornaram a lagoa num charco barrento que tornava a travessia mais difícil, sobretudo para os últimos elementos desse pelotão, pois a lama já revolvida, o ter de manter a G3 acima da cabeça e o peso da mochila, tudo isso provocava nos mais temerosos um receio a roçar o medo.
Um cadete atrapalha-se a meio da travessia, um camarada vai em seu auxílio e é puxado para o fundo, um terceiro volta para trás tentando socorrer os outros dois que, na sua aflição o arrastam também para a morte.
Penso que os corpos só foram encontrados por mergulhadores da Marinha.

Mas a minha história não termina aqui e o que se passou a seguir constitui na minha opinião, a maior homenagem que poderíamos prestar aos nossos camaradas mortos; nós cadetes, simples soldados cadetes, homens arrancados aos estudos, outros com os cursos já feitos, que de um momento para o outro passam a ser números de uma máquina sem coração, não fomos cadetes, fomos Homens.

Com o refeitório cheio de algumas centenas de nós preparados para o almoço, em sentido obrigatório como era da praxe, recebemos a ordem talvez do oficial de dia:

- SENTAR!

Como fez barulho o silêncio que se seguiu!

Ninguém, ninguém se mexeu!

Impávidos, serenos, comovidos, com os olhos brilhantes, ninguém, ninguém obedeceu!

Músculos retesados, firmes no nosso querer e na nossa razão, pêlos eriçados, ninguém, ninguém, nem os “engraxadores” hesitaram.

Foi chamado o Comandante Maior.

- SENTAR!

Trovejou uma voz ainda mais potente, como se a estridência do grito fosse directamente proporcional ao número de riscos amarelos que o ombro suportava.
Ninguém, ninguém cumpriu a ordem.

- DESTROÇAR!

E lá foram os cadetes, olhando-se com respeito, olhos nos olhos.
Não me apercebi de medo em nenhum rosto.
O meu íntimo regozijava.
Fomos para a sala nº 10, todos, sem excepção para uma reunião espontânea que foi interrompida quando recebemos ordem para ir de fim-de-semana.
Seria quarta ou quinta, não me recordo, sei apenas que o rigor muitas vezes despropositado da revista às armas, foi substituído pelo deixa andar.
Era preciso mandar estes gajos para fim-de-semana em passo de corrida.

Como foi isto possível?

Afinal… era possível.

Um abraço de parabéns para toda a Tabanca Grande.
Vasco Augusto Rodrigues da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

28 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5370: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (VIII): As “licenciaturas” dos tigres do Cumbijã.

13 comentários:

Anónimo disse...

Caro Amigo Vasco da Gama. Terminas com um:"Afinal...era possível." Somos muitos os que acreditam que:-Foi.É.E será sempre...possível! Um grande abraco do José Belo.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Vasco: Que bom saber do teu regresso. E que história, daquelas que eu gosto com "mural ao fundo"...

Quanto aos parabéns, aceito-os com modéstia e agradeço-os em nome de todos os tabanqueiros, em geral, e dos meus editores, em particular (que às vezes levam na pinha, com relativa injustiça)...

És um amor!

Anónimo disse...

Caro Amigo Vasco da Gama
Em sentido te saúdo.
Com respeito,com amizade e com vontade de dizer alguns palavrões.
Que mortes inglórias!
Conheci há pouco tempo Mafra e os seus enormes espaços onde terão prestado serviço militar 15.000 homens por ciclo de recruta.
Pareceu-me um sítio frio, esmagador pelo tamanho e comprimento das salas e corredores, onde teria impossível cultivar "afectos" .
Ainda bem que me enganei.
Um grande abraço,
JERO

Anónimo disse...

AMIGO VASCO EU TIREI O CSM EM SANTARÉM E IA-MOS HÁ CARREIRA DE TIRO A MAFRA E COM O MEU PELOTÃO IA ACONTECENDO UMA TRAGÉDIA PARECIDA COM A TUA, QUANDO ESTAVA-MOS A JOGAR GRANADAS PARA O FOSSO HOUVE UM COLEGA MEU QUE SEGUROU MAL NA GRANADA AGARROU-A AO CONTRÁRIO E QUANDO TIROU A CAVILHA SALTOU A OUTRA PARTE QUE AGORA NÃO ME LEMBRA O NOME E A NOSSA SORTE FOI QUE O CAPITÃO QUE ESTAVA A DAR A INSTRUÇÃO ESTAVA ATENTO, MAS MESMO ASSIM AINDA APANHAMOS COM PEDAÇOS DE PEDRA EM CIMA.COMO TE DISSE HÁ POUCO ESTE É MAIS UM DESABAFO MEU.

UM ABRAÇO DO TAMANHO DA GUINÉ PARA TI E TUA FAMÍLIA.

AMILCAR VENTURA EX-FURRIEL MIL.º MECÂNICO AUTO DA 1ª. COMPª. DO BCAV 8323 BAJOCUNDA 73/74

Manuel Reis disse...

Amigo Vasco:

Já conhecia a tragédia da morte dos 3 cadetes. Conhecia-a antes de iniciar o Curso de Cadetes em Outubro de 71, em Mafra. Aí passou a ser do conhecimento geral dos que foram incorporados no meu turno.

Outro episódio com um certo impacto na altura e que rapidamente se propagou nos seio dos movimentos estudantis refere-se à recusa do juramento de bandeira, por parte de alguns Cadetes.

Parabéns Vasco, por nos recordares a data do Aniversário do Blogue com este texto, um pouco trágico, mas bem concebido.

Os meus parabéns são extensivos também a toda a equipa que conduziu esta imensa nau,durante seis anos e sem grandes rombos, em especial o seu timoneiro.

Um abraço.

Manuel Reis

Torcato Mendonca disse...

Só um abraço meu caro Vasco da Gama.

Dizer não era preciso e um dia o NÃO foi mais forte e, por isso mesmo, hoje, 21 ou 22 de Abril...assim falamos.
Por vezes aparecem nuvens no ar...não! Coisa de vulcão na pantagónia ou lá perto...

Abraço do TM

Rui M Silva disse...

Meu Caro Vasco

Em Estremoz se constituiu a C.Cav 8351 que comandáste. E também na mesma altura se constituíram as suas irmãs - gémeas direi eu - a C.Cav 8350 comandada pelo Quintas e a C.Cav 8352 comandada por mim. Para além deste trecho em comum nas nossas vidas outros dois aconteceram. As nossas companhias foram destacadas para a Guiné praticamente na mesma altura e partilhámos uma àrea fulcral na guerra da Guiné, a tua comp. no Cumbijã, a do Quintas em Guileje e a minha em Caboxanque. O outro facto em comum relatas tu neste post. Recordo que nos recusámos também a usar a boina e que o comando de Mafra decidiu dispensar-nos, julgo que nesse mesmo dia, afastando-nos de Mafra por pelo menos três a quatro dias. Prometo voltar à Tabanca Grande e apresentar-me como mandam as suas normas.
Um grande abraço para ti e
Saudações a todos os tabanqueiros

Rui Pedro Silva

Juvenal Amado disse...

Vasco

Bem aparecido com esta esta estória tão próxima do dia em que se fez História.

Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não

Um abraço

Juvenal Amado

Anónimo disse...

Amigo Vasco

Não conhecia essa tragédia, apesar de ter feito a recruta e a especialidade em Mafra, nos anos 63/64.
O teu testemunho é ...,profundo.
Um abraço do teu camarada amigo,

Jorge Rosales

Joaquim Mexia Alves disse...

Meu caro Almirante Vasco da Gama, tratamento carinhoso a que me permito já há uns tempos.

Pois é, quando os homens querem e se unem...

História cheia de significado e que mexeu comigo, obrigado.

Agora uma curiosidade.

Então não é que entrámos para Mafra ao mesmo tempo?

Eu fiquei na 3ª Companhia, salvo o erro, no pelotão do Ten. QEO Preto, que tinha feito uma comissão em Moçambique.
O meu comandante de companhia era o Cap. Ribeiro de Faria, salvo o erro também.

Olha como o mundo é pequeno!!!

Grande abraço meu camarigo

Marcelino disse...

Amigo Vasco, as minhas saudações.
Vivi contigo esses momentos!...
O ambiente era de "cortar à faca"
Percebemos porque nos mandaram
rapidamente para fim-de-semana.

Hélder Valério disse...

Caro Vasco
Bem reaparecido!
E logo com uma histária dessas!
É verdade que já se está longe do fulgor inicial do "para Angola já e em força" e esses longos anos de guerra já encorajam muita resistência.
Um abraço
Hélder S.

MANUELMAIA disse...

CARO VASCO,

ESTE TEU TEXTO EVIDENCIANDO A FORÇA ENORME DA SOLIDARIEDADE E DO RESPEITO PELA VIDA HUMANA QUE TODOS VÓS SENTISTES, FOI SIMPLESMENTE GRANDIOSO.

ESSE APRUMO E VERTICALIDADE SÃO AFINAL A RAZÃO PELA QUAL A GUERRA FOI SUSTENTADA ESTOICAMENTE PELOS MILICIANOS.

OBRIGADO VASCO.

MANUEL MAIA