1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Dezembro de 2009:
Meus queridos amigos,
Que 2010 vos traga os maiores sucessos, com saúde e muitas andanças no blogue. Regresso 2.ª feira, agora só penso nos projectos do próximo ano, bem gostaria de ter coragem para voltar à Guiné.
Um abraço e a muita estima do
Mário
OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (3)
Beja Santos
Recordatória
“Os Anos da Guerra”, com organização do escritor João de Melo, editados por Publicações Dom Quixote em 1988, que igualmente reeditou a obra em 1998, constitui o primeiro esforço sério para mostrar ao grande público, sob a forma de antologia, os prosadores marcados pela Guerra Colonial. Nas duas edições anteriores, referimos alguns aspectos essenciais do ensaio de João de Melo sobre o impacto da Guerra Colonial nas literaturas de língua portuguesa e apresentámos alguns parágrafos dos escritores Filipe Leandro Martins e Álvaro Guerra acerca dos preparativos (recruta, especialidade, formação de batalhão, etc.). Os dois últimos textos destes preparativos saíram da pena de dois escritores açorianos, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. José Martins Garcia, já falecido, nasceu na Ilha do Pico em 1941, e em 1966, sendo professor do ensino secundário na Horta, foi chamado ao serviço militar, tendo embarcado para a Guiné como oficial de transmissões. Foi Leitor de Português em França, entre 1968 e 1971, e professor de Literatura Portuguesa, durante quatro anos numa universidade americana e mais tarde na Universidade dos Açores. É autor de obras incontornáveis sobre a guerra como Katafaraum É Uma Nação (1974) e Lugar de Massacre (1975). Álamo Oliveira nasceu na Ilha Terceira, em 1945. Prestou serviço militar na Guiné entre 1967 e 1969. Poeta, dramaturgo, encenador e animador cultural é autor daquele que será porventura o livro mais anárquico e libertário que se escreveu sobre a guerra da Guiné, Até Hoje (Memória de Cão), em 1987.
Competência
“O soldado-cadete Ramalho pousou no alferes dois olhos surpreendidos. E ficou de boca meio aberta, como alguém que nunca tivesse pensado no assunto.
- Um homem – prosseguiu o alferes – não se bai abaixo por causa de um arranhão no pé. Você nunca compreendeu isso?
O soldado-cadete Ramalho escarrou para o lado.
- Que é que isso quer dizer? – bramiu o pequeno alferes. – Quer que lhe ensine a ter maneiras?...
- Agora? – inquiriu o outro, com os olhos reduzidos a duas frestas.
- O rapaz tem razão – comentou Gwlyx. – o meu alferes teve muitos meses para lhe ensinar o que quis... e agora... francamente quando ele diz que tem um pé partido...
- Qual partido, qual carapuça! Toca alinhar!
Alinharam, mal barbeados, cobertos de pó, estourados, os soldados-cadetes, “doutores” do primeiro pelotão da primeira companhia. E iniciaram a marcha de regresso ao acampamento, com o soldato-cadete Ramalho na retaguarda, apoiado ao ombro do Gwlyx, e com a arma em bandoleira, mas no ombro esquerdo. Alguns metros andados, o Ramalho declarou ao camarada que sentia latejar o pé.
- Que chatice! – confidenciou – Tens de dizer a essa besta que eu não dou nem mais um passo.
O Gwlyx abandonou o Ramalho na berma da estrada e foi retransmitir a mensagem ao alferes, mas suprimindo o vocábulo “besta”. Veio o alferes em pessoa observar o queixoso, começando por declarar:
- Tenho um horário, percebe? Tenho ordens a cumprir, percebe? Tenho de regressar com o meu pelotão à hora exacta, percebe? E o senhor está a atrasar a marcha. Faça um esforço e marche como os outros.”
“Avançaram. Há muito que terminara a refeição da tarde e o acampamento preparava-se para resistir aos ataques nocturnos que o inimigo não deixaria de desencadear. Circulavam terríveis boatos quanto à ferocidade do inimigo: viria pela calada, iludiria as sentinelas inexperientes, destruiria as barracas, faria prisioneiros e mortos simulados. Diziam os soldados-cadetes melhor informados que, em tais circunstâncias o melhor era ser-se imediatamente morto. O inimigo deixava os mortos no solo e estes teriam apenas a maçada de reconstruírem as barracas; quanto aos prisioneiros, tinham de acompanhar o inimigo até um problemático acampamento, às vezes situado a muitos quilómetros de distância. Depois de um dia esgotante, mais valia a morte simulada.
- Afinal, quem é o inimigo? – interrogou o Ramalho.
E encontrou forças para rir, enquanto o médico Tww lhe arrancava, enfim, a bota.
- São cadetes de outras companhias – explicou o médico – que não gramam a companhia dos “doutores”. Vão gozar que nem pretos, quando nos deitarem as barracas abaixo.”
José Martins Garcia
Destino: Guiné
“Era pela ilha que João se deixava escorregar, a memória atada a todos os tempos, lugares, pessoas, sonhos intemporais.
Ilha redonda ou pão de milho, hóstia desconsagrada de franja roída, suas gentes voltadas para o mar – o deus do pão e da aventura e também do medo e da saudade. João vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida.”
“Cento e vinte e sete!, o nosso capitão chama-te.” A memória partida, o horror do nome em número, um vago 127 dependurado ao pescoço na chapa picotada pelo diâmetro a quebrar em caso de morte e poder, enfim, ter direito ao nome. “O nosso capitão chama-te!”, os olhos que se abrem num despertar de insónias. Lisboa é já uma mancha sem telhados. O sol mais freco pela brisa. O mar, manso que nem um são-bernardo, tece ondas pequeninas como Penélope em seu tapete líquido de azul e infinito. E João, perdido naquele barco enorme, no meio de mil duzentos e cinquenta e três homens, lá ia a caminhjo da guerra como se fosse voluntário dela. Destino: Guiné.
Álamo Oliveira
A partir de agora vamos entrar no palco da guerra. Na Guiné, iremos partilhar esperança, sofrimento, sede e afectos com Álvaro Guerra, Urbano Bettencourt, José Luís Farinha e José Martins Garcia.
(Continua)
Cheguei a Mafra na tarde de 11 de Novembro de 1967. Abriu-se uma porta monumental e um cabo quarteleiro perguntou-me: “A menina não sabe que vem para a tropa, aqui não há cabelo comprido?”. Fiquei embuchado, tivera a preocupação de cortar o cabelo na véspera e bem rente. Foi assim que eu fui praxado, voltei ao barbeiro, parecia que me estava a desparasitar. Deram-me um capacete, um capote, uma espingarda e uma baioneta, mais uma mochila, assinei um papel em que receberia como pré 17 tostões por dia. Percorri pela primeira vez os corredores do Convento, perguntei a mim próprio porque é que tinham nomes das campanhas de África e dos locais em que combatemos na Primeira Guerra Mundial. É, infelizmente, a única fotografia que guardo dessa recruta. Ao meu lado, está o Paulo Gustavo Simões da Costa, meu compadre, é padrinho da minha filha Joana. Lamento ter esquecido o nome dos outros dois. Oxalá o Paulo Raposo me possa ajudar. Encontrei esta fotografia na selecção do material que estou a organizar para o meu livro “A Viagem do Tangomau”.
Foto e legenda: © Mário Beja Santos (2009). Direitos reservados.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5600: Notas de leitura (48): Os Anos da Guerra, de João de Melo (2): Os preparativos e Sinfonia para uma guerra (Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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