segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5587: Notas de leitura (46): Os Anos da Guerra, de João de Melo (1): Alguns olhares sobre a literatura da guerra da Guiné (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2009:

Queridos amigos,
“Os Anos da Guerra” merecem ser conhecidos por todos nós.
Há ali prosa de muito valor. O João de Melo editou e reeditou esta antologia em 1988 e 1998. Seria bom que ele a voltasse a actualizar. Aliás, neste momento há já editores que pretendem antologias referentes à literatura dos três teatros de operações. Espero que se tome em conta que a escolha dos autores é do João de Melo e não deste humilde escriba, por favor, não façamos confusões.

Um abraço do Mário com votos de um 2010 cheio de sucessos pessoais, saúde e alegrias familiares


OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (1)


Beja Santos

Apresentação

“Os Anos da Guerra, 1961 – 1975, Os Portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, com organização de João de Melo (Publicações Dom Quixote, 1988 e 1998) é uma obra de referência para o estudo da literatura portuguesa que tem a Guerra Colonial como pano de fundo. É não só a primeira recolha antológica dos principais escritores intervenientes ao tempo como se trata igualmente de uma (ainda hoje) desassombrada apresentação da problemática da literatura da Guerra Colonial, em que João de Melo equaciona, sem quaisquer complexos, fenómenos habitualmente tratados de modo disperso: a geração literária dos escritores que combateram a Guerra Colonial: em que medida a nova literatura de guerra é memória e anti-memória; se a literatura do período da colonização foi, de algum modo, precursora dos escritores de guerra; e se podemos dispor de uma visão de conjunto sobre todos estes prosadores.
Dado o caudal informativo e a necessidade de circunscrever o itinerário desta incursão à literatura que tem a Guiné como palco, propomos que esta recensão contemple as seguintes realidades: o ensaio de João de Melo sobre o impacto que a Guerra Colonial teve nas literaturas de língua portuguesa; ouvir os escritores que combateram na Guiné num tema raramente abordado que é o dos preparativos para a guerra, aqui se incluindo a recruta, a especialidade, a formação de unidade, etc.; e dar voz aos relatos decorrentes dos aspectos da comissão militar, pondo a funcionar, no auge da dor, a memória e a anti-memória. Convém recordar que se trata de uma recensão, nas situações em que me propuser extravasar as opiniões do autor expresso-o claramente, e os autores que irão ser mencionados sobre a guerra da Guiné decorrem, única e exclusivamente, da escolha de João de Melo. Esses autores são: Álvaro Guerra, Filipe Leandro Martins, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Urbano Bettencourt, José Luís Farinha e Sérgio Matos Ferreira


A Guerra Colonial nas literaturas de língua portuguesa

O escritor João de Melo começa por questionar em que termos é que uma colonização pode ser encarada como um acto prolongado de guerra colonial. Não se trata de uma provocação pois estando em jogo um longuíssimo período de colonização com literatura, haverá que perguntar até que ponto as obras de escritores como Castro Soromenho (porventura o maior romancista da sociedade colonial angolana) Baltazar Lopes, Manuel Ferreira ou Alexandre Pinheiro Torres devem, ou não, ser inseridos na galeria onde irão ser posicionados os escritores que estiverem envolvidos numa das três frentes da Guerra Colonial. A pergunta ainda poderá ficar mais complexa se se pretender também saber se esta literatura pode acolher a chamada literatura de guerra e de resistência (ou seja, aquela onde se faz um apelo veemente à paz e à completa libertação dos povos, podendo-se aqui incluir escritores como Sophia de Mello Breyner, José Cardoso Pires, Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão, entre outros). É João Melo que responde à questão, dando-lhe a simplificação para efeitos do seu ensaio: nesta literatura que se vai pôr em antologia só lá cabe quem a viveu, militares e familiares, quer nos preparativos quer no teatro de operações. Convém não esquecer que houve quem escreveu em perfeita sintonia com o regime (caso de Reis Ventura, Armor Pires da Mota, Couto Viana ou Rodrigo Emílio de Melo), houve quem denunciasse a guerra antes da mesma findar (caso de Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco ou Álvaro Guerra) e sobretudo há que ter em conta aqueles autores que fizeram do tema da guerra o corpo central da sua obra: serão estes os autores incluídos na antologia organizada por João de Melo, o escritor a quem agora passamos a palavra:
“Nos livros portugueses da guerra, a ideia do absurdo, da angústia, da sem-razão, ainda que aparentemente obsessiva, está longe de confundir a solidão com a solidariedade. O inevitável dessa literatura é ela aparecer iluminada na sua consciência histórica: o homem que escreve não é o mesmo e porventura nunca esteve do lado do agressor. Daí que uma boa parte das suas fascinações resida na sondagem e na aproximação ao outro, isto é, daquele que estava do lado de lá e que era então o inimigo. Para muitos de nós, que lá estivemos e que só raramente víamos o inimigo, o guerrilheiro era um misto de anjo e de demónio da nossa guerra interior...”. Para João de Melo não existe uma reconhecida obra-prima no conjunto dos livros citados. E ele explica porquê: “Talvez todas elas, na medida em que se completam, e outro tanto pelas diferentes paixões e pelos níveis confessionais e estéticos que ao fim ao cabo as distinguem entre si. De resto, é de supor que estejam por vir os livros da distância, da frieza e de uma outra e objectiva narratividade. Na minha já longa relação com a literatura de guerra, fui muitas vezes confrontado com a existência de um sem-número de textos inéditos, o que prova que a literatura é talvez o único domínio da sociedade portuguesa a desaceitar o tabu de um passado que forjou e modificou para a vida uma nova geração de homens. Actualmente, ela é, com efeito um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja – essa literatura – muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade portuguesa do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continuo a comprazer-se com um espectáculo da sua própria violência interior”. João de Melo escreveu este texto em 1984, seguramente que há pontos de vista que se podem considerar ultrapassados, nos 25 anos posteriores a literatura enriqueceu-se e os tais livros da distância, da frieza e de uma outra e objectiva narratividade continua a aparecer. Mas esta questão não cabe nesta curtíssima apreciação do importante livro “Os Anos da Guerra”.


Os preparativos

Filipe Leandro Martins escreveu: “O Pé na Paisagem” em 1981. Nascido em 1945, em 1967 fez o curso de sargentos nas Caldas da Rainha e é destinado à especialidade de atirador. Mobilizado para a Guiné, escolheram-no para o curso especial de minas e armadilhas. Desertou em 1968 e exilou-se na Bélgica. Foi jornalista profissional desde 1976. O texto escolhido por João de Melo intitula-se “O couro selvagem das botas”, tal como se resume:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo solo provinciano à uma da tarde da estação e ouvi alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de me voltar...
Havia quem puxasse gorjetas para o cabo os despachar mais depressa e lhes escolher uma caserna boa, e o cabo arrecadava a massa e ria destas espertezas enquanto as levas de rapazes iam desaparecendo nas goelas das casernas, tragados pelos sargentos e amanuenses, e logo abandonados à mercê da máquina que aprendemos depressa a recear e a reconhecer no seu poderio misterioso de regulamentos e castigos ao menor deslize, que se levantava como parede velha, ameaçadora e sombria frente aos nossos mais pequenos desejos, muro pesado que nós ajudávamos a erguer – argamassa e medo, argamassa e medo – para não sair dali a sete pés”.

(Continua)
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 22 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5519: Notas de leitura (45): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa - II (Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Senhores:

Aceito e respeito totalmente a atitude tomada por aqueles que desertaram. Mas é estrenho que muitos só tomaram aquela, depois de saberem que eram mobilizados para a Guiné Porque não o fizeram quando foram chamados para cumprir o serviço militar?

Aníbal Vilhena Magalhães

Aníbal Magalhães disse...

Senhores:

Não sou anónimo como aparece no comentário.
Aníbal Vilhena Magalhães
Mail: avxmagalhaes@sapo.pt

Anónimo disse...

Faltam muitos anos de livros para explicar esta guerra.

Mas faltam livros principalmente escritos pelos excritores em lingua portuguesa, mas de origem africana, luso-africana, e afro-lusitana e até de terceiros.

Pois que por enquanto, o que se vai lendo resume-se muito "ao nosso ponto de vista", ou seja, muito curto, principalmente para quem acompanhe blogues dos que andaram na guerra.

Aliás, a internet vem alterar, e talvez ultrapassar muitos dos conhecimentos e curiosidades que os livros nos proporcionam.

Antº Rosinha