1. Mensagem de Mário Beja Santos, (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2009:
Carlos e Luís,
Para quem quer estudar os primórdios da resposta diplomática aos movimentos de libertação tem neste livro um interessante ensaio ao que aconteceu em 1961 num país de África que fazia agradavelmente o jogo do pau de dois bicos.
Um abraço do
Mário
CASABLANCA: O INÍCIO DO “ORGULHOSAMENTE SÓS”
Beja Santos
Em 1961, um jovem terceiro secretário de Embaixada, José Duarte de Jesus, passa a ser funcionário diplomático de Portugal em Marrocos. Vai viver um período febril, a eclosão do anticolonianismo, do terceiromundismo, das tensões entre Marrocos e a Argélia, dos movimentos de libertação portugueses e africanos. Convém não esquecer que é em Rabat que o PAIGC teve o seu primeiro escritório, é partir de Marrocos que vai chegar tudo o armamento e equipamento fornecido pela URSS, China e países da Europa de Leste. É esse o relato que nos traz “Casablanca, o início do isolamento português, memórias diplomáticas”, por José Duarte de Jesus, Gradiva 2006.
Um diplomata é um negociador dos interesses do seu país junto de potências onde está acreditado. Observa, aproveita as reuniões sociais e os actos de convívio para sondar e depois contar ao seu ministro. Recebe também incumbências, prepara viagens de estadistas, pede audiências a membros de governo para defender pontos de vista, para insinuar esses mesmos pontos de vista que lhe chegam do chefe da diplomacia. A diplomacia portuguesa nos anos 60 já não está marcada pela presença pessoal de Salazar nas Necessidades. Os EUA estão na Europa, são eles quem lideram a Guerra Fria. Portugal foi aceite nas Nações Unidas e será fundador da NATO, por conveniência de serviço; o comunismo chinês começa por ser um grande aliado de Moscovo até à incompatibilização; a Conferência de Bandung e depois os Não Alinhados vão fazer germinar a luta pela independência dos povos africanos. O quadro diplomático português do tempo podia ter qualidades mas não estava preparado para a guerra sem tréguas que marcará toda a década de 60.
O jovem diplomata José Duarte de Jesus aterra em Marrocos, jovem nação a viver uma grande instabilidade interna (os movimentos revolucionários empurram a Monarquia Alauita para uma linha repressiva e conservadora). O jovem Rei Hassan II apercebe-se que tem perigos nas fronteiras e que precisa de uma estratégia de cooperação com os aliados europeus do Mediterrâneo. A nossa missão diplomática em Marrocos era constituída por um embaixador e por um nº2, verdadeiramente um faz tudo: substituto legal do embaixador, conselheiro político, comercial, de imprensa e gerente de uma secção consular. O jovem diplomata, mal chegado, é confrontado com a Conferência de Casablanca, com algum significado para a política portuguesa. Aqui se debatem as questões da Argélia e do Congo, mas também a segregação racial e unidade africana. Por esse tempo ocorre a “Operação Dulcineia”, com o assalto ao paquete “Santa Maria”. Inicia-se entretanto a guerra em Angola, instala-se em Rabat o governo provisório da Argélia, nesta região do Magrebe procura-se fazer a ponte entre o Ocidente e o Terceiro Mundo.
Em Abril, representantes dos movimentos de libertação portuguesa comparecem numa reunião em Casablanca: lá estarão goeses, mas também Mário Andrade e Viriato Cruz, da MPLA, Miguel Trovoada de S. Tomé e Príncipe, Marcelino dos Santos da futura FRELIMO, Amílcar Cabral, do PAIGC. Os conteúdos desta conferência, dado o seu valor histórico, são amplamente reproduzidos. A embaixada portuguesa vive histórias dignas de James Bond, com personagens bizarros a disfarçarem-se de espiões sem nacionalidade, arrivistas, gente que promete dar informações e que afinal nada tem para dar. A saga Henrique Galvão-Humberto Delgado dominará os acontecimentos até ao final desse ano de 1961. Delgado e Galvão cortam relações, os assaltantes do avião desviado da TAP que lançam panfletos nos céus de Portugal regressam a Casablanca e nada lhes acontece, para fúria das autoridades portuguesas. Esse ano horrível conhece ainda o golpe de Botelho Moniz, os acontecimentos de Beja, às esperanças na Primavera de Adriano Moreira, depois a queda de Goa.
José Duarte de Jesus, metodicamente, elabora relatórios, sonda ministros, procura esclarecer as posições portuguesas. Hassan II é obrigado a um jogo duplo: reitera confiança na amizade luso-marroquina enquanto se felicita em público com o que se passou na Índia portuguesa e com as lutas de libertação que estão a dar os seus primeiros passos. Fala-se de Ben Bella e Ben Barka, da presença russa em Tânger e dos diferendos franco-marroquinos.
Em 1962, muda-se de embaixador numa altura em que Rabat está a viver uma intensa actividade diplomática, sendo mesmo palco de um esboço de potências que cobiçam um aliado para a Guerra Fria. Em Abril Holden Roberto tenta criar um governo provisório de Angola. Surge uma personalidade que virá mostrar ter uma grande influência no curso dos acontecimentos: Aquino de Bragança. Hassan II recebe às claras os representantes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas; a questão do armamento soviético tem o seu auge e fica-se a perceber que o rei manipula os elementos para chamar a atenção aos americanos. Há questões do Magrebe que se vão agonizar: será o caso do Sara espanhol mas também a presença espanhola em Ceuta e Melila. Esta é a história de uma comissão de um jovem diplomata. Pode ser entendida como um acto de um diplomata reformado que quer deixar memórias a pretexto de um momento excepcional em que pode ver a formação e o desenvolvimento do anticolonianismo português. Mas também pode ser olhado como um depósito histórico de um período e sobretudo o ano de 1961, que mudou a história de Portugal e de África. É este último olhar o que recomendo para perceber o princípio do isolamento português, que tornaria irreversível o fim da ditadura portuguesa.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5587: Notas de leitura (46): Os Anos da Guerra, de João de Melo (1): Alguns olhares sobre a literatura da guerra da Guiné(Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
José Manuel Duarte de Jesus foi embaixador de Portugal em Pequim entre 1993 e 1997. Tem mais livros publicados, por exemplo Faces da China, Lisboa, Ed. Inquérito, 2007.
Reformado (tem mais doze anos do que eu, somos ambos javalis, signo chinês) está hoje à frente da Secção Asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa, casa que o Beja Santos tão bem conhece.
Um abraço,
António Graça de Abreu
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