1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2010:
Queridos amigos,
Telefonei ontem ao escritor Armor Pires da Mota que me prometeu emprestar todos os seus livros relacionados com a Guerra da Guiné. A sua obra, tal como a de Álvaro Guerra e José Martins Garcia, ocupam, em minha opinião, um lugar cimeiro em tudo o que se escreveu, “do lado de cá”, entre os anos 60 e 80. São companheiros de grande nível literário, de que nos temos que orgulhar.
Conviria que também relançássemos um olhar sobre escritores que defenderam a Guerra Colonial, por imperativos ideológicos.
Impressiona-me como os escritores de primeira água possam estar obliterados.
Valerá a pena darmos todos uma opinião sobre o assunto.
Um abraço do
Mário
OS ANOS DA GUERRA:
ALGUNS OLHARES SOBRE A LITERATURA DA GUERRA DA GUINÉ (5)
Beja Santos
Recordatória
Entrámos na recta final dos textos compilados pelo escritor João de Melo, na sua antologia referente à literatura da Guerra Colonial, e no que toca ao teatro de operações da Guiné. Importa recordar que estes textos prendem-se com obras publicadas ou inéditas ao nível dos anos 80 e 90. Conviria, no caso de se encontrarem gritantes lacunas, que fizéssemos chegar ao autor informações sobre outros livros publicados e que não vêm referenciados em “Os Anos da Guerra”. Mas uma antologia é mesmo isto: uma escolha arbitrária, um olhar pessoas perante um oceano de palavras impressas ou de que o autor teve conhecimento, quando são textos inéditos. O importante é o levantamento de tudo quanto conhecemos, publicado ou por publicar. Para que os historiadores, amanhã, não nos censurem pelo alheamento.
Carta número cento e dezassete
“O comandante chegou contrafeito, lavado, perfumado, preparado para a festa de anos de um dos filhos do administrador da povoação. E esperou que o longo comboio cinzento de viaturas, regressado pela tropa de segurança à estrada, ondulasse como um farruscado bichinho-da-seda de ficção ao passar pela porta de armas. Do jipe que comandava a força escorregou sem convicção para a sala de operações o capitão responsável, irresponsável para as patentes acima, popular entre os soldados pelas longas horas de conversa, pelo cuidado na resolução de problemas pessoais aqui e acolá e pelo medo na hora da verdade”.
“Em duas horas e meia os restos do camião ficaram atrelados ao pronto-socorro. O capitão refugiou-se no carro de combate mais à mão e daí mandou levantar a segurança, cabeça mascarada pela portinhola pequena da vigia. Os mecânicos voltaram ao coio de guindastes e o oficial da oficina moldou-se a um dos guarda-lamas, arma apontada sem jeito a impor às tripas um coração decente.
Lentamente, o rebocador chegou ao alcatrão guiado pelo chefe dos sapadores, alguns metros à frente, a carpir pelos poros em peque o rabo é o mais difícil de esfolar.
A coluna refez-se, agora o monstro adiante, vítima de farsa a ser abocanhada sem sucesso por outro desventrado, logo ao seguir ao carro de combate do reconhecimento. Movimento marcado pela cabeça, cortejo de passeio de fim-de-semana no rio do desespero. Dançavam sombras em chacota, fugidias nas bermas, quando os holofotes dos carros de combate devassavam a desfazer-se em preces e desculpas os renques desalinhados, e as danças mais rígidas e a música mais estranha provocavam um toque arrependido a tempo no nervo do indicador.”
José Luís Farinha, “De camuflado no peito e na cabeça”, 1978
Uma granada sob o coração
“Os soldados de guarda disparavam para o mato às cegas, sem verem ou ouvirem o que quer que fosse, um alvo ou uma ameaça, porque mais ou menos por ali se tinham sumido os dois rapazes que, possessos de súbita violência, se haviam atirado numa corrida doida até desaparecerem nos desconhecidos, inexistentes, mas familiares caminhos da floresta mãe da vida, da liberdade, da justiça e de tudo o que os homens da floresta sabem, de tudo o que aprenderam com cada árvore, flor, erva, rio, charco, réptil, ave, insecto, cada ser vivo que bebe na terra o segredo de viver, subsistir, iguais no instinto de matar, na inevitabilidade de ser morto. Vimos se sumiram no imenso mar verde das suas indubitáveis origens.
Tornou a colocar a granada ao peito num dos muitos gestos difíceis, imprecisos, que a todos foram necessários para ajustar equipamentos e pegar em armas, à pressa, flutuando a custo no ar denso, com um esbracejar de náufragos, extenuados, corpos-soldados-de-chumbo que eram homens e o sabiam na carne, só o sabiam na carne. Sugeriram-lhe que deitasse fogo à aldeia antes de se ir embora e ele recusou porque a sua guerra não era a mesma em que se estava a debater, a sua ainda não tinha começado, seria uma guerra de ganhar ou perder e não aquela, se bem que duvidasse que essa outra guerra alguma vez chegasse.”
“Foi logo a seguir. Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado e quedas e ramos partidos e pragas e explosões e o gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse «Ai, mãe!» e morreu.
Atrás da sua árvore levou a mão ao bolso e tirou-a, a reluzente granada com quem os seus dedos andavam calhados de amor e vício, puxou a argola amarela num repente de furor e ficou um momento a mira-la, a cavilha apenas presa pelos dedos brancos de força enquanto, desfocado, o cadáver do ventre sangrento o olhava fixa e friamente; jogou-se para a luz, para lá do escudo eleito, e atirou-a para de onde vinha a morte sonora e invisível que semeava surpresas de sangue.”
Álvaro de Guerra, “O disfarce”, 1979
Falta-nos agora José Martins Garcia, um escritor fundamental dos anos 70, que deixou registos de valor indiscutível sobre a sua experiência na Guiné. Ele e Sérgio Matos Ferreira irão pôr termo a esta viagem antológica em que tivemos como bordão as escolhas do escritor João de Melo
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5611: Notas de leitura (50): Os Anos da Guerra, de João de Melo (4): O Tempo em Uane e O Bando Armado (Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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