Caros Camaradas e Amigos
Envio-lhes este texto, escrito à pressão.
Eu, trapezista Mário Vitorino Gaspar, executei este número, e sem rede, saiu um pequeno e escasso rascunho de resumo do tema solicitado.
Cumprimentos à Tabanca Grande, e um grande abraço de amizade
Mário Vitorino Gaspar
Ao fim destes 40/50 anos, mudei muito, física e psicologicamente
(Resposta múltipla)
Jorge Rosa Pedreiro, Manuel Ferreira Jorge e eu
Passados que foram 47 anos do dia em que terminámos a Comissão, e chegámos ao cais de Alcântara desembarcando no paquete Uíge, a minha Família que era a CART 1659, separou-se. Sendo oriundos de diferentes pontos do país, só por mero acaso existia um encontro.
Recordações não faltavam, tinha memorizado cada um dos camaradas. Diariamente encontrava-me, nos dias de hoje, com eles. Vendo-lhe os rostos, esqueço os nomes. Se lembro os nomes esqueço os rostos de jovens que éramos.
No Livro “O Corredor da Morte", escrevi:
– “Os intervenientes, portanto Oficiais, Sargentos e Praças não possuem rosto, nem nome, embora em alguns casos se possam reconhecer”.
Encontro-me com o Jorge em Massamá. Igualzinho ao Amigo Manuel Ferreira Jorge que bebera comigo tanta cerveja. E os belos momentos passados. O Natal festejado a 23 de Dezembro, porque a 25 íamos ser vítimas de um ataque em Gadamael Porto do PAIGC, quando passava das 3 da manhã trajados com as túnicas dos muçulmanos, e ajoelhados junto à cama do Capitão, pedimos:
– Alá, Alá… Vinho para cá!...
Quando ouvia o meu nome da boca de alguém, parecia ter visto um desconhecido.
– Mudei assim tanto? – Perguntava-me o camarada.
Ficava quedo, tristonho e envergonhado.
Quando mirava o homem que pronunciara o meu nome, perguntava:
– Conhecemo-nos?
– Eu sou!…
Abraçava-o, respondendo:
– Passou tanto tempo, mas afinal és…
Teria eu mudado? Não, decerto que não! Fulano reconheceu-me, porque não o reconheci? Eu mudara, estava mais maduro. Casara, era pai.
Psicologicamente? Não era a mesma pessoa. Diferente daquilo que fora. A guerra? Talvez tenha influenciado, sou rígido, frio por vezes… Desconfiado, muito desconfiado. Ai, ai daquele que se aproxima por detrás, pareço ter radares. Os meus olhos observam os passos perdidos na retaguarda. Reajo e parece mais querer esbofetear o agressor. Mas não é decerto um agressor. É um amigo.
– Nunca faças isso… Viste bem o que poderia dar?
Mas, outras vezes, encontros diferentes:
– Conheço-te perfeitamente, és o… Não digas nada...
Após o sinal positivo do velho amigo:
– Sabia que eras tu! Estou mais gordo. Estou muito contente por te ver. Como vai a tua vida, o que fazes?
Ficava imensamente feliz.
Tenho de confessar não ser aquele ser sonhador. Deixei de ler; de ir ao Cinema e Teatro; não escrevo uma linha. Tudo aquilo que adorava fazer, abandonei.
Preocupado com o bem-estar da Família, o trabalho é uma outra Família, mas nada que se compare à Família da Guiné: aos camaradas da Companhia e todos os amigos dos aquartelamentos que percorria operacionalmente: Guileje; Mejo; Sangonhá; Cacoca; Cameconde; Cacine e, mais tarde Gandembel.
Encontros houve, reconheci o camarada de imediato. Era uma festa, voltavam as cervejas fresquinhas, sempre fresquinhas. Depois o adeus e…
Um dia não reconheci o meu grande amigo Jorge Pedreiro, um técnico da Indústria Vidreira da Marinha Grande, no único almoço de confraternização organizado pela CART 1659, os sempre ZORBAS. “Os homens não morrem” era o lema.
Olhava para ele, que diariamente confraternizava comigo na fome, na sede, na solidão. Olhei-o. Mas quem é? Ele também não me dirigiu a palavra, possivelmente julgara que estava zangado. Zangado com o mundo sim, com ele nunca. Quando o reconheci juntei a alegria com a tristeza. Muito contente de o ver. Estava diferente, muito diferente, mas arreliado por não o reconhecer. Como podia esquecer o Pedreiro? Verdade seja dita, no dia do Lançamento do meu Livro “O Corredor da Morte”, não reconheci alguns camaradas. Custa-me ter voltado a não reconhecer Jorge Rosa Pedreiro. Pedi-lhe desculpa, não mereço perdão!
Perdoou-me, há pouco tempo falámos…
Acho que mudei. Não tenho o direito de esquecer os meus amigos.
Na minha vida, em primeiro lugar a Família, e em segundo os Amigos.
Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor
Último poste da série de 27 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14307: (Ex)citações (263): Eu respondi à sondagem "4. Não, não mudei muito"... Mas acho que mudei, não sei se para melhor, se para pior (Hélder Sousa, ex-fur mil, trms TSF, Piche e Bissau, 1970/72)
1 comentário:
Meu amigo Mário Gaspar
(e "quase conterrâneo"....)
Este teu texto é muito interessante.
Através dele abordas uma questão que a muitos (para não dizer a todos) já ocorreu, certamente, e que é estar perante alguém que conhecemos, com quem privámos, com quem rimos ou sofremos, ou seja, com alguém com que interagimos (como agora se usa dizer) e, naquele preciso instante a sua imagem, por não corresponder à que tínhamos 'arquivada', não é reconhecida.
Pode parecer um drama, mas não é.
É antes sinal do tempo que passou sobre as nossas vidas. Todos mudámos e ainda mudamos. Fisionomicamente, com certeza. Psicologicamente, também, com mais ou menos profundidade.
Por isso, o que de mais importa é o que dizes no final:
"Pedi-lhe desculpa, não mereço perdão!
Perdoou-me, há pouco tempo falámos…"
Abraço.
Hélder S.
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